domingo, abril 06, 2014

"Sei Lá", um filme de 2014 (2/3)

[ 1 ]

Há que reconhecer ao produtor Tino Navarro e ao realizador Joaquim Leitão a força de uma convicção: acreditam na possibilidade de fazer um tipo de cinema que, sem preconceitos, tenta jogar em padrões dominantes de consumo (televisivo). Resta saber se este esvaziamento criativo de Sei Lá pode ajudar a consolidar algo de consistente. As minhas dúvidas fundamentam-se, antes do mais, na contemplação dos efeitos terríveis de quase quatro décadas de telenovelas, em particular na formatação simplista do trabalho de actores e actrizes: mesmo com personagens patéticas, precisamos de ver a nobreza dos intérpretes — sem isso, o cinema não existe.
É, aliás, bizarro o modo como uma questão fulcral de todas as épocas do cinema — a materialização da dimensão humana através do labor específico dos actores — tem sido tragicamente secundarizada no pensamento de muitos projectos do cinema português das últimas décadas. Na melhor (?) das hipóteses, tem-se acreditado que pode haver uma espécie de transferência simbólica dos actores de telenovelas para o espaço específico do consumo cinematográfico. Infelizmente, na maior parte dos casos, tal crença está "apoiada" num imenso vazio de reflexão sobre o cinema enquanto sistema peculiar de linguagens.
Não se trata, entenda-se, de situar aquela transferência no mero plano estatístico dos números de bilheteira, "bons" ou "maus", do filme A, B, ou C. Trata-se, isso sim, de constatar a cruel degradação da arte de representar que, de forma mais ou menos consciente, a matriz telenovelesca tem imposto a actores e actrizes. Em boa verdade, tal matriz tende a instilar a ideia de que representar face a uma câmara não passa de uma arte banal de fazer pose, mais ou menos temperada por um narcisismo pueril, na medida do possível recheando tal pose com sinais codificados de "olhos", "mãos" e "locução"... A resistência a tais códigos e à sua agressiva formatação não constitui, por si só, qualquer garantia artística — em todo o caso, uma coisa é entender a câmara como uma entidade orgânica da mise en scène, outra, bem diferente, é encará-la como instrumento fútil de "apanhados".