quinta-feira, abril 03, 2014

"Sei Lá", um filme de 2014 (1/3)

O impacto do primeiro livro de Margarida Rebelo Pinto, Sei Lá, envolveu um valor sintomático: através de uma crónica de amores nem sempre muito românticos, deparava-se-nos um novo quadro social em que a igualdade da mulher se dizia através de uma assumida ironia, para além de qualquer drama existencial. Não por acaso, a desarmante sinceridade do livro atraiu algumas fúrias moralizantes, nem sempre muito hábeis a disfarçar o seu congénito machismo.
Quinze anos depois do fenómeno Sei Lá, que resta? Pois bem, um filme que começa por sofrer de um drama muito português: o de não existir uma base mínima de produção que, melhor ou pior, consiga rentabilizar fenómenos deste género num tempo relativamente breve. Quinze anos depois, dir-se-ia que já nem a pertinência histórica funciona, a ponto de o sentido lúdico do livro se “transferir” por inteiro para o domínio formatado e repetitivo da telenovela. E não é fácil construir uma longa-metragem (“paródica”, “realista” ou o que se quiser) quando pouco mais resta do que uma descarnada dicotomia “mulheres/homens” cuja densidade temática mal permite sustentar um spot em tom de farsa.
Nesta perspectiva, Sei Lá ilustra mesmo um sintoma de decadência narrativa que, década após década, os criadores (?) de telenovelas têm injectado no espaço do audiovisual português. É um sintoma que, com alguma inevitável ironia, podemos chamar sociológico. Decorre da confusão entre "informação" e conhecimento — uma coisa é inventariar sinais dispersos que possam remeter para as nossas vivências comuns; outra coisa, bem diferente, é sustentar um discurso sobre tais vivências. E a telenovela tem sido apenas isso: uma máquina de formatação das narrativas e das mentes de que o filme Sei Lá não é, enquanto tal, responsável, mas cujos valores, infelizmente, integra sem qualquer distanciação.