segunda-feira, fevereiro 17, 2014

"Her": o homem e o computador (3/3)

Her - Uma História de Amor é a prova muito real das singularidades temáticas e criativas do realizador Spike Jonze: desta vez, os enigmas do comportamento humano passam pela identidade das máquinas (e por uma voz de computador...) — este texto integrava um dossier sobre o filme, no Diário de Notícias (12 Fevereiro), tendo sido publicado com o título 'Quando alguém toca em alguém'.

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A nossa cultura libertária gerou a ilusão de que superámos os constrangimentos morais herdados do séc. XIX e, por isso mesmo, mantemos uma relação despreocupada com os temas sexuais. A televisão aí está para nos desmentir: o Big Brother, sempre com um sorriso, consegue fazer-nos recuar à mais eufórica estupidez hedonista. Veja-se também o que aconteceu em torno de Ninfomaníaca, de Lars von Trier: a sua descrição como um filme de imagens “chocantes” recalcou o facto de se tratar de uma longa e dolorosa (o sexo não é simples, hélas!) deambulação confessional, com as palavras a ocuparem o lugar central.
Neste contexto, Her – Uma História de Amor é um objecto que, com genial contenção, reage à cultura do “visível”, valorizando as palavras como elementos que não são estranhos à atracção sexual e, acima de tudo, participam desde o primeiro momento no desafio de viver o amor e, mais do que isso, de o dizer.
Theodore (Joaquin Phoenix) surge como um comovente ser humano à deriva nas gratificações virtuais de um mundo futurista, afinal tão parecido com o nosso: como fazer amor com a voz de “Samantha” (Scarlett Johansson) que habita o seu computador? Spike Jonze define-o mesmo a partir de uma única imagem com claras conotações sexuais: ele imagina-se a ter relações com uma mulher grávida. De facto, há uma candura desarmante em tal imagem: porventura sem o saber, Theodore deseja menos o afecto do corpo feminino e mais o regresso ao calor primordial do seu interior. Em boa verdade, Her – Uma História de Amor coloca em cena o mais cruel fantasma político: o de, através das nossas bem amadas comunicações, computadores e telemóveis, estarmos a viver um processo regressivo de infantilização. Ainda assim, não desesperemos: na imagem final do filme, alguém toca em alguém.