quinta-feira, dezembro 05, 2013

Adèle, Emma e a insensatez do amor

De que falamos quando falamos do envolvimento amoroso de duas pessoas? Adèle e Emma, por exemplo... Abdellatif Kechiche mostra, por A + B, que a formatação telenovelesca é uma escandalosa impostura — este texto foi publicado no Diário de Notícias (27 Novembro), com o título 'Manual da insensatez'.

Seria uma pena que um filme tão belo, admirável e inteligente como A Vida de Adèle acabasse por se fixar no imaginário colectivo como um retrato do “sexo” entre duas mulheres... É verdade que estamos perante a história de amor de Adèle e Emma (Adèle Exarchopoulos e Léa Seydoux, respectivamente, ambas para além de qualquer categoria excepcional em que as possamos inscrever). E não é menos verdade que a vibração dos corpos e a comoção dos gestos desempenham, aqui, um papel fundamental, de uma só vez figurativo e narrativo.
Mas o que está em causa é de outra natureza. Decorre do horror existencial que o sinistro Big Brother injecta na vida social, reduzindo qualquer contacto sexual a uma caricatura obscena de troca de hormonas (onde está um político português, da direita, esquerda ou de um lugar sem nome, capaz de denunciar esse quotidiano apocalipse cultural?). E tem a ver com a urgência cultural e simbólica de falar do sexo – e mostrar o sexo – para além de toda essa conjuntura em que tudo está condenado a ser mecânico e infinitamente triste.
Talvez possamos dizer, por isso, que o filme de Abdellatif Kechiche cumpre uma velha lição “freudiana”: nem tudo é sexo, mas a sexualidade atravessa tudo. Convenhamos que não é simples lidar com isso, porque isso é também o mais difícil de compreender, a ponto de o olhar adulto ser, talvez, aquele que começa a consolidar-se quando cada ser aceita reconhecer que nem tudo poderá ser recoberto pela transparência determinista dos moralistas ou das telenovelas. A Vida de Adèle é um objecto totalmente imerso nas angústias do nosso tempo, nessa paisagem em que o liberalismo dos corpos colide com o enigma das identidades. Será preciso acrescentar que estamos perante uma prodigiosa reflexão sobre a insensatez do amor?