David Michôd é um nome a ter em conta: o seu Reino Animal (2011) traz-nos o melhor da actual produção cinematográfica australiana — este texto foi publicado no Diário de Notícias (14 Outubro), com o título 'Caneas do lado da morte'.
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Na espantosa cena de abertura de Reino Animal, David Michôd apresenta-nos o jovem Joshua (James Frecheville), personagem que nos vai conduzir ao interior da macabra família Cody, acolhido pela avó (Jacki Weaver), na sequência da morte da mãe. A cena, precisamente, mostra-nos Joshua sentado ao lado da mãe, inerte, vitimada por uma “overdose”; enquanto aguarda a chegada de uma ambulância, o seu olhar vazio segue as peripécias de um concurso televisivo de perguntas e respostas... Mais do que isso: quando os paramédicos colocam as perguntas de rotina, Joshua continua vidrado no pequeno ecrã, também ele imobilizado num bizarro torpor, como se algo da sua condição tivesse já passado para o lado da morte.
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| David Michôd |
O trabalho de mise en scène de Michôd (também responsável pelo argumento) é tanto mais espantoso quanto essa proximidade – dir-se-ia: esse intimismo – da morte se vai insinuando como um elemento visceral de todas as relações, não necessariamente resultante das cenas de “acção”. Dito de outro modo: Reino Animal recupera a dimensão trágica do género policial clássico, nada tendo a ver com a noção pueril, muito favorecida por algumas formas de “jornalismo”, segundo a qual as intensidades dramáticas de uma narrativa dependem da acumulação de efeitos especiais mais ou menos exuberantes.
Lembramo-nos da herança de Fritz Lang (1890-1976) e do seu cepticismo radical face aos valores que cimentam, ou destroem, as relações humanas. Escusado será dizer que, aos 40 anos e com uma filmografia para já dominada por títulos documentais, Michôd não pode ser comparado com o mestre que realizou A Verdade e o Medo/Beyond a Reasonable Doubt (1956). Em todo o caso, em tempos de crise, a fidelidade dos discípulos merece o máximo respeito.