sábado, agosto 17, 2013

Hollywood, índios e cowboys (3/3)

É verdade: os cowboys e os índios não desapareceram do mundo do espectáculo, quer dizer, das narrativas de Hollywood. A prova, eloquente e empolgante, chama-se O Mascarilha — este texto foi publicado no Diário de Notícias (11 Agosto), com o título 'Já não há espectadores para Johnny Depp?'.

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Há uma velha máxima da crítica de cinema que, na sua candura, vale a pena relembrar: nenhum filme é “bom” ou “mau” por causa das suas receitas de bilheteira. Fazer crítica, de facto, não é o mesmo que elaborar relatórios sobre orçamentos, campanhas e índices de frequência. Como contraponto, existe todo um discurso de profunda má fé que teima em sugerir que o “crítico” se julga acima das realidades muito concretas da vida económica dos filmes. Aliás, tal discurso derrapa muitas vezes para uma versão ainda mais estúpida: o “crítico” seria aquele que rejeita os filmes que têm sucesso...
Bem sei que atraímos, assim, um novelo de questões que estas escassas linhas não pretendem abarcar. Permitam-me apenas que recorde também que não se trata de defender toda a crítica: ao contrário do que pretende um cinismo também muito antigo, os críticos, “bons” ou “maus”, não são um rebanho de gente desmiolada, envolvendo os seus discursos diferenças profundas, muitas vezes inconciliáveis.
Vem isto a propósito do filme O Mascarilha, de Gore Verbinski, com Armie Hammer na personagem do justiceiro mascarado e Johnny Depp assumindo a figura bizarra do índio Tonto, o seu fiel companheiro. Se é importante esclarecer o meu ponto de vista, direi que se trata de um fabuloso e inteligente espectáculo, fazendo justiça à mais nobre tradição de Hollywood. Acontece que muitas leituras negativas que o filme tem suscitado nos EUA, especulando a partir das respectivas receitas, me parecem viciadas por um “economicismo” que importa questionar. Peter Travers (da revista Rolling Stone) começa mesmo o seu texto crítico com esta pergunta insólita: “Por que é que O Mascarilha é um tão grande falhanço nas bilheteiras?”
Dir-se-ia que Travers parece não se aperceber que a sua interrogação coloca menos em causa o filme e mais, muitíssimo mais, os espectadores. Porquê? Porque, apesar de tudo, apreciando mais ou apreciando menos o filme, seria interessante referir que O Mascarilha é a mais radical negação dos modelos de espectáculo (super-heróis, ostentação tecnológica, argumentos que se podem reduzir a dois breves parágrafos...) que têm triunfado nas bilheteiras; a sua revisitação da epopeia do Oeste envolve, de uma só vez, a reconversão simbólica da memória dos índios, os efeitos civilizacionais da construção do caminho de ferro e a própria relação história/mito no interior do “western”.
Que Travers não se interesse por isso, é um problema dele. Que haja muitos espectadores cuja formação e sensibilidade os afasta de tais propostas, eis uma conjuntura que suscita alguma inquietação. Não para “culpar” o público... Antes porque este é mais um sintoma de apagamento de toda uma cultura popular (cinematográfica e cinéfila) que já foi de todos nós. Como se já nem houvesse espectadores para admirar a excelência de um actor como Johnny Depp.