quarta-feira, março 20, 2013

História(s) de Macau

Um filme para dar conta de um lugar vivido e imaginado, intensamente passado, mas sempre presente — este texto foi publicado no Diário de Notícias (13 Março), com o título 'O desejo de fazer história'.

Antes de chegarem à montagem final de A Última Vez que Vi Macau, João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata, fizeram Alvorada Vermelha, curta-metragem de 20 minutos com imagens (de um mercado de Macau) recolhidas durante o trabalho de rodagem da longa-metragem que agora estreia nas salas. As suas componentes decorriam já de um essencial princípio de trabalho: quanto mais o cinema se aproxima do concreto das coisas, mais as suas imagens e sons parecem libertar-se de qualquer dependência naturalista, apelando ao gosto multifacetado da efabulação.
Eis uma moral narrativa que conhecemos desde Hitchcock: na sua vontade de ver o detalhe mais ínfimo, o grande plano pode apresentar-se como uma galáxia de medidas e significações incomensuráveis; do mesmo modo, a amostragem que o documento envolve coabita, lado a lado, com os artifícios mais depurados da ficção. Não se trata de escolher uma coisa “ou” outra, mas de compreender que, ao contrário do que todos os dias a televisão promove, as imagens e os sons ensinam-nos a olhar com uma coisa “e” outra.
Inútil, por isso, resumir A Última Vez que Vi Macau a partir de qualquer pressuposto descritivo. As memórias do passado, individual e colectivo, projectam-nos num misto de nitidez e incerteza que nos faz respeitar a complexidade de qualquer desejo de fazer história: a história não se faz porque, juntando os factos e as referências, ganhamos seja o que for; a história faz-se porque essa soma é também um modo de sentirmos aquilo que perdemos. Daí a pedagogia, a um tempo cinematográfica e filosófica, deste filme: somos aquilo que somos porque nunca voltamos àquilo que imaginámos ser. Pela consciência dramática, por vezes irónica, dessa vulnerabilidade, circula a mais depurada lição de amor.