sábado, fevereiro 16, 2013

As fotografias de Freddie Quell

Freddie Quell é a personagem de The Master/O Mentor interpretada por Joaquin Phoenix: faz fotografias e, nas suas imagens, reflecte-se a dificuldade de encontrar um lugar no tempo que lhe foi dado viver — este texto foi publicado no Diário de Notícias (10 Fevereiro), com o título 'Fotografias da memória americana'.

Muito se tem falado da relação discípulo/mestre vivida pelas personagens interpretadas por Joaquin Phoenix e Philip Seymour Hoffman no prodigioso filme de Paul Thomas Anderson, O Mentor (é pena, de facto, que não se tenha optado pela palavra “mestre” para traduzir o original The Master). Tal relação representa um dado fundamental para a compreensão de uma paisagem social – o começo da década de 50, com marcas ainda muito próximas da Segunda Guerra Mundial – em que a procura de novos valores envolve tanto de emocional como de conceptual.
Freddie Quell (Phoenix) descobre em Lancaster Dodd (Hoffman) uma ambígua promessa de redenção: a seita religiosa de Dodd oferece a Quell uma vivência que, afinal, tem tanto de protector como de devorador. Daí a fundamental importância simbólica dessa personagem eminentemente trágica que é Peggy Dodd (Amy Adams), mulher do “mestre”: como uma espécie de emanação perversa da dramaturgia clássica dos filmes de John Ford, ela é a figura maternal que assegura uma compulsiva ordem moral, agora transfigurada em cega militância.
O que tem sido menos falado é o facto de Quell ser alguém que faz fotografias, primeiro como tentativa (falhada) de encontrar uma profissão estável, depois assumindo-se como retratista oficial do próprio Dodd. Não é um detalhe pitoresco. Corresponde mesmo a uma lógica profunda, e profundamente trabalhada, da mise en scène de Anderson: o mais discreto elemento realista pode envolver subtis ressonâncias simbólicas. Neste caso, Dodd é a expressão muito carnal de uma contradição indissociável da relação com as imagens: por um lado, há nele um desejo de elaboração iconográfica do mundo que, por vezes, o leva a rebelar-se contra as poses e os valores que ordenam esse mundo (veja-se a cena desconcertante em que agride uma das pessoas que fotografa); por outro lado, tal elaboração pode ser insuficiente para responder ao seu próprio impasse identitário: ser ou não ser, eis a questão.
Vale a pena lembrar que um dos factores decisivos no labor narrativo de Anderson é, justamente, a sua sofisticada relação com o património americano de imagens, de Hollywood e não só. Assim, numa das cenas iniciais, os soldados que ouvem uma prelecção sobre as possibilidades profissionais do seu futuro estão longe de ser tratados como banais figurantes: nos seus rostos podemos ler as marcas do desgaste físico e psicológico da guerra, numa evocação muito clara de um documentário, Let There Be Light (1946), de John Huston, que o próprio Anderson referiu como uma das suas inspirações. Huston filmava a pesada herança traumática da guerra; Anderson revisita essa herança para questionar as raízes da América moderna. Num caso como noutro, deparamos com a espantosa riqueza de um cinema que nunca abdicou de reflectir sobre as complexas relações entre o individual e o colectivo.