domingo, fevereiro 17, 2013

A independência de Hushpuppy

É bem verdade que as fronteiras das diversas áreas de produção cinematográfica, em particular nos EUA, são cada vez mais voláteis; Bestas do Sul Selvagem é uma excepção, pertencendo, inequivocamente, à área dos independentes — este texto foi publicado no Diário de Notícias (13 Fevereiro), com o título 'Realismo, fantasia e utopia'.

É bem verdade que a noção de “cinema independente” (no contexto americano, antes do mais) há muito deixou de ser coisa estável: as fronteiras de produção tornaram-se muito mais voláteis, desaconselhando qualquer descrição “purista” dos filmes e seus criadores; além do mais, por vezes, tal noção surge banalizada como um rótulo supostamente intocável para sancionar projectos da mais rasteira mediocridade.
Com um orçamento inferior a 2 milhões de dólares (cerca de 1,5 milhões de euros), Bestas do Sul Selvagem, de Benh Zeitlin, representa um regresso às origens, exibindo um estilo visceralmente independente, não por acaso sancionado pelo Festival de Sundance (onde, em Janeiro de 2012, venceu o Grande Prémio do Júri, na secção de drama). Aliás, o sintoma mais significativo de tal estilo nem será o facto de Zeitlin ter encontrado os seus protagonistas, incluindo a maravilhosa Quvenzhané Wallis (com apenas cinco anos, na altura da rodagem), na própria região do Louisiana onde decorre a acção: Bestas do Sul Selvagem é também um objecto filmado em película de 16 mm, o que, na era de todas as digitalizações, lhe confere um look antigo, a fazer lembrar experiências independentes (e também dos grandes estúdios) durante as décadas de 60/70.
Apetece dizer que o grão da película, com as suas cores sensuais e o seu peculiar efeito carnal, instala um clima de imediato realismo. Ao mesmo tempo, as dramáticas aventuras de Hushpuppy (Wallis) definem-se a partir de um ponto de fuga fantástico, porventura utópico, que baralha todos os modelos e classificações. Num ano de excelência para a produção dos grandes estúdios de Hollywood (Lincoln, Zero Dark Thirty, etc.), Bestas do Sul Selvagem é mais um eloquente exemplo da pluralidade interna do cinema americano.