segunda-feira, outubro 25, 2010

"Mistérios de Lisboa": filmes grandes e grande cinema


Com mais de quatro horas de duração, o filme Mistérios de Lisboa tem "apenas" o tempo necessário e suficiente para o seu próprio projecto — este texto foi publicado no Diário de Notícias (24 de Outubro), com o título '4 horas e 26 minutos de grande cinema'.

Há em Portugal uma cultura da ignorância cinematográfica cuja estupidez tem mais poder que o mais rudimentar bom senso. Por exemplo, em relação à duração dos filmes de Manoel de Oliveira, ditos “intermináveis”. Pois bem, para nos ficarmos pelos dois últimos já estreados, Cristóvão Colombo – O Enigma e Singularidades de uma Rapariga Loura, a soma das respectivas durações (insisto: não a duração de cada um, mas a soma das respectivas durações) é inferior à duração de qualquer Harry Potter.
Escusado será dizer que os filmes não são “bons” nem “maus” em função das respectivas durações. Harry Potter é uma apoteótica mediocridade, não por durar o que dura, mas porque vai lavando os cérebros das nossas crianças, impingindo-lhes uma noção de espectáculo que se esgota na banal agitação visual de “feiticeiros” e “efeitos especiais”. Em todo o caso, aquela visão métrica do cinema decorre de um imaginário (predominantemente televisivo) que castiga de forma torpe tudo o que não se submeta à geometria restritiva dos seus valores.
Vale a pena voltar a suscitar a questão a propósito de um filme que aposta numa duração completamente atípica e, convenhamos, arriscada em relação aos padrões correntes de consumo: Mistérios de Lisboa, a notabilíssima adaptação de Camilo Castelo Branco pelo chileno Raúl Ruiz, dura nada mais nada menos que 4 horas e 26 minutos.
Apoiado num subtil trabalho de argumento de Carlos Saboga, e também sabendo valorizar um magnífico conjunto de actores portugueses frequentemente castigados pelas rotinas das telenovelas (Adriano Luz, Maria João Bastos [ambos na foto], Ricardo Pereira, Afonso Pimentel, etc.), Ruiz propõe um retorno à primitiva vocação romanesca do cinema. A reconstituição histórica não é, aqui, um fim em si mesmo, mas uma paisagem paradoxalmente realista onde é possível ancorar uma teia de eventos e paixões que remete sempre para a mesma interrogação, romanesca por excelência: até que ponto cada personagem reflecte as convulsões da sua alma ou é produto das determinações, morais e sociais, a que deve corresponder?
A longa duração surge como o resultado “natural” de uma estratégia narrativa que integra, com elegância e ironia, o próprio conceito de folhetim. E escusado será dizer que essa ironia não é alheia ao facto de Mistérios de Lisboa ter sido concebido também como uma série televisiva (para a RTP, em seis episódios de uma hora). Ruiz e o seu produtor, Paulo Branco, demonstram, assim, que há vias alternativas para a normalização “telenovelesca” da ficção televisiva. Sendo antes do mais formal e narrativa, essa é também, nos dias que correm, uma decisiva opção estrutural: o desafio que se renova é o da defesa (económica e institucional) de um cinema que não abdique dos seus valores específicos e, em simultâneo, da possibilidade de uma televisão que recuse tratar os seus espectadores como autómatos do consumo.