segunda-feira, março 26, 2018

No museu de Todd Haynes (1/2)

Todd Haynes (no cenário de WONDERSTRUCK)
Quase com um ano de atraso (integrou a competição de Cannes/2017), Wonderstruck, de Todd Haynes, chegou às salas portuguesas — este texto foi publicado no Diário de Notícias (21 Março), com o título 'Todd Haynes propõe uma viagem pelos labirintos da memória'.

Nascido em 1961, o americano Todd Haynes já nos habituou aos mais insólitos e sedutores ziguezagues criativos. Afinal de contas, a sua obra inclui objectos tão contrastados como Velvet Goldmine (1998), evocação do glam rock inspirada em David Bowie, e Carol (2015), belíssima história de amor próxima da estética dos melodramas da década de 50, com Cate Blanchett e Rooney Mara. Mesmo assim, é com surpresa que acolhemos Wonderstruck – O Museu das Maravilhas, uma fábula juvenil que teve a sua estreia mundial no último Festival de Cannes.
A própria classificação de “fábula juvenil” é discutível, quanto mais não seja porque Haynes quis conservar no seu filme algo da dinâmica visual do livro em que se baseia, com o mesmo título, já editado no mercado português (com chancela da Asa). Não é, de facto, uma narrativa tradicional. O autor, Brian Selznick, apostou em explorar as possibilidades de um modelo que já experimentara em A Invenção de Hugo, também adaptado ao cinema, por Martin Scorsese, em 2011. Assim, esta história de duas crianças separadas por meio século (1927-1977) evolui através de uma permanente interacção entre as palavras e as ilustrações, de tal modo que o livro tem nada mais nada menos que 630 páginas.
Há em Wonderstruck um segredo recoberto pelas camadas do tempo, circulando pelos labirintos da memória. De modo a preservar a possibilidade de descoberta do espectador, digamos apenas que se vai estabelecer uma estranha cumplicidade entre a jovem Rose (Millicente Simmonds), a viver em Nova Iorque, na década de 20, e um rapaz de nome Ben (Oakes Fegley), originário do Minnesota, nos anos 70. Três elementos são essenciais no desenho dessa cumplicidade: em primeiro lugar, a actriz de teatro Lillian Mayhew (Julianne Moore, a trabalhar pela terceira vez sob a direcção de Haynes), por quem Rose nutre um profundo fascínio; depois, o facto de Rose e Ben serem ambos surdos; finalmente, o fantástico edifício do Museu de História Natural, em Nova Iorque.

Uma sensualidade interior

É provável que Wonderstruck – O Museu das Maravilhas não seja o filme mais perfeito de Haynes, mas não há dúvida que é um dos mais envolventes e encantatórios. Sobretudo porque a sua realização aposta na criação de uma ambiência de angustiado maravilhamento, em tudo e por tudo ligado à surdez dos seus jovens heróis. Dir-se-ia que se trata de criar um tempo narrativo em que todos os sons são sensuais e interiores — e tanto mais sensuais quanto mais interiores.
Para conseguir os seus objectivos, o realizador contou com dois fundamentais colaboradores, qualquer deles ligado a vários títulos da sua filmografia. Em primeiríssimo lugar, o director de fotografia Ed Lachman, aliás já com duas nomeações para os Oscars conseguidas com filmes de Haynes: Longe do Paraíso (2002) e Carol — as suas imagens estão marcadas por essa nostalgia de um tempo utópico, intimamente ligado aos anseios e ilusões da infância. Depois, o músico Carter Burwell, capaz de compor uma banda sonora reminiscente da pulsão romanesca do classicismo de Hollywood.
E não deixa de ser curioso sublinhar que, entre as entidades produtoras de Wonderstruck, surja o nome dos estúdios Amazon. Na prática, a actual produção americana está marcada por uma certa nostalgia dos modelos clássicos que, paradoxalmente, passou a manifestar-se nas margens dos estúdios tradicionais. Dito de outro modo: Todd Haynes continua a ser um genuíno independente.