domingo, março 25, 2018

A guerra de "O Capitão" (2/3)

Mais um belo filme para nos ajudar a revisitar e repensar as memórias da Segunda Guerra Mundial — este texto foi publicado no Diário de Notícias (17 Março), com o título 'Na intimidade do poder ditatorial'.

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Numa nota de intenções que escreveu para apresentar o seu filme O Capitão, Robert Schwentke propõe uma reflexão a partir de um contundente princípio filosófico: “(...) o horror é um conceito moral, não analítico”. Quer ele dizer que os crimes consumados pela personagem verídica do seu filme, o soldado alemão Willi Herold, não podem ser encarados como se a moral fosse uma espécie de purificação em que nos acomodamos. Como ele sublinha, não se trata de legitimar os seus actos, mas sim de avaliar as complexas relações entre o geral e o particular: “O inadmissível comportamento de Herold num contexto histórico particular permite entrever uma ponta de verdade sobre a condição humana em tempo de guerra.”
Qual é, então, a verdade do soldado Herold? Digamos que começa na solidão de alguém que perdeu todas as referências que lhe conferiam identidade. Ele não é exactamente um desertor, mas um “perdido” ou “disperso” (segundo a palavra alemã “Versprengte”). Tem 19 anos, vagueia pelos campos nos tempos finais da guerra e, a 3 de Abril de 1945, num veículo militar abandonado, encontra uma farda de capitão.
Veste a farda? Sim, mas dizer que Herold decide “disfarçar-se” de capitão será passar ao lado do misto de ingenuidade e monstruosidade que o define. De facto, ao envergar pela primeira vez a farda ele é “apenas” uma marioneta deslumbrada pelo símbolo de poder que encontrou — fala mesmo sozinho para a paisagem, celebrando a sua nova aparência. É quando aparece um outro soldado, à deriva como ele, que Herold reconhece a inusitada autoridade do novo guarda-roupa: ninguém o vê como soldado, todos o reconhecem como capitão.

Palavra e poder

Tanto bastaria para transformar O Capitão numa desencantada e, de alguma maneira, didáctica narrativa sobre o poder dos símbolos. Ou melhor: sobre o exercício do poder como um sistema de gestão dos símbolos — será preciso lembrar que isso confere ao filme uma perturbante actualidade política?
Em todo o caso, na dupla condição de realizador e argumentista de O Capitão, Schwentke visa algo ainda mais radical, porque mais íntimo. Acontece que Herold é também aquele que encontra na sua indumentária uma motivação para os actos mais cruéis: a farda não lhe serve apenas de esconderijo dos outros porque, em última instância, funciona como simulacro da sua consciência.
Como num jogo maligno, Herold descobre mesmo que a nova farda lhe permite utilizar algo que está para além do visível. A saber: o poder efectivo que um nome pode arrastar. Que nome? Adolf Hitler. Sem documentos para justificar as suas ordens, Herold evoca “Hitler” e consegue que a palavra se transforme em gesto de poder.
E não é todos os dias que deparamos com um actor como Max Hubacher (natural de Berna, Suíça, nascido em 1993). A sua interpretação de Herold envolve uma terrível ambivalência: por um lado, o seu olhar parece conter esse misto de crueldade e medo que encontramos nas crianças; por outro lado, ele vive, de facto, através de uma transfiguração caucionada pela farda que passou a envergar. No limite, a farda dispensa-o mesmo de se apresentar aos outros como detentor de um corpo. Talvez seja essa a definição do poder ditatorial: o corpo existe como um detalhe sem importância, tudo nele passou para o lado do símbolo.