domingo, janeiro 14, 2018

A imitação de Churchill

Ainda há quem considere que fazer história é imitar gestos e poses das suas personagens principais: tarefa menor que, pelos vistos, vai valer um Oscar a Gary Oldman — este texto foi publicado no Diário de Notícias (10 Janeiro), com o título 'Churchill com muita maquilhagem e pouco cinema'.

Winston Churchill em herói de filme de guerra? É verdade. Digamos que, por isso, A Hora Mais Negra merece o benefício da dúvida. Pela grandeza e importância histórica da figura retratada. Mas sobretudo porque já é tempo de o cinema, em especial no espaço anglo-saxónico, reagir à formatação imposta por muitos filmes de (super) heróis saturados de rotineiros efeitos visuais e bandas sonoras agressivas.
É mesmo verdade: estamos perante um filme que aposta na dimensão épica do primeiro-ministro britânico quando, em 1940, demarcando-se de algumas vozes do seu gabinete, mobilizou o país contra a ameaça nazi. Resta saber que ideias cinematográficas A Hora Mais Negra tem para lidar com tão fascinante personagem e tão complexo período histórico.
Decididamente, algum do mais recente cinema inglês parece querer compensar a falta de ideias narrativas com a ostentação de próteses nos seus actores. No recente Um Crime no Expresso do Oriente, Kenneth Branagh expunha-se ao ridículo de compor a personagem do detective Hercule Poirot com um bigode tão imponente que transformava cada cena num mero exercício de equilíbrio com o peso da maquilhagem... Agora, o departamento de caracterização empenhou-se em tratar o rosto de Gary Oldman de modo a criar um Churchill “mimético”, favorecendo uma interpretação tão mecânica que somos levados a supor que a maquilhagem tolhe os movimentos do actor.
A dimensão caricatural do empreendimento seria benigna, não se desse o caso de o realizador Joe Wright esbanjar, assim, as lições de uma nobre tradição do filme de guerra, fundamental na história do cinema inglês. Para nos ficarmos pelo essencial, podemos evocar o trabalho da dupla Michael Powell/Emeric Pressburger, com destaque para esse filme prodigioso que é Um Caso de Vida ou de Morte (1946). Era uma epopeia romântica centrada num piloto (David Niven) que, depois de morrer, negociava com um tribunal celestial a possibilidade de regressar ao mundo dos vivos — um objecto surreal que, num belíssimo paradoxo, nos diz mais sobre as vivências da guerra que o naturalismo simplista de A Hora Mais Negra.
Joe Wright, convenhamos, é o protótipo (muito na moda) do cineasta que entende a linguagem cinematográfica como um catálogo de tiques técnicos: um plano na vertical, de cima para baixo, ou movimentos de multidão registados em câmara lenta... e por aí se fica o seu conceito de “reconstituição” histórica.
De tal modo que o filme se vai perdendo no esquematismo da sua “mensagem”. Veja-se a cena em que Churchill entra no metropolitano, descobrindo a população com que, afinal, não convive, acabando por montar uma espécie de mini-comício de mobilização para a guerra... É bem possível que Joe Wright possa apresentar alguma caução factual como base da cena. Mas o problema é outro: o tratamento demagógico da situação anula qualquer possível verosimilhança histórica, correndo mesmo o risco de nos virar contra o herói. Há outra maneira de dizer isto: A Hora Mais Negra é um filme incapaz de se pensar politicamente.