segunda-feira, dezembro 25, 2017

A banalidade do racismo por George Clooney

SUBURBICON, Matt Damon
Actor de grande prestígio e popularidade, George Clooney continua afirmar-se um cineasta original e desconcertante, como o confirma, agora, com a adaptação de uma história dos irmãos Coen — este texto foi publicado no Diário de Notícias (23 Dezembro), com o título 'Um conto moral sobre os fantasmas da democracia'.

George Clooney dá-se bem com os irmãos Coen. De tal modo que Suburbicon [TIFF] recupera um “resto” do seu trabalho como argumentistas. Mais exactamente, esta é uma história que esteve para ser a base da segunda longa-metragem dos Coen, logo após Sangue por Sangue (1984). Acabou por ficar na gaveta durante mais de três décadas e o mínimo que se pode dizer é que exibe de forma muito clara as marcas dos seus criadores, não só no seu inquietante negrume, mas também através das contribuições técnicas, a começar pelo notável trabalho do director de fotografia Robert Elswit (aliás, também companheiro fiel dos filmes de Clooney).
Não que tais influências diminuam os méritos de Clooney, aqui confirmando que não assume as tarefas de direcção apenas para enriquecer o curriculum. Quer como realizador, quer como produtor, tem-se afirmado mesmo como um dos mais legítimos e talentosos representantes da grande tradição liberal de Hollywood a que pertencem também, por exemplo, Otto Preminger, Richard Brooks ou Sydney Pollack. Liberal, entenda-se, de acordo com uma lógica que transcende qualquer dicotomia partidária: Clooney é, afinal, um encenador das euforias e limites da liberdade individual, quer dizer, um observador empenhado, mas céptico, dos valores dominantes da colectividade.
Suburbicon é isso mesmo: uma história em que a transparência feliz da comunidade se descobre habitada por qualquer coisa de maligno, potencialmente destruidor, aliás, auto-destruidor. Convém evitar revelar ao leitor/espectador as peripécias delirantes e, mais do que isso, macabras que vão pontuando os acontecimentos. Digamos apenas que esta é uma parábola sobre a harmonia ideal, ou idealizada, da classe média americana nos anos 50 — depois da guerra, veio uma vaga de prosperidade que, na paisagem urbana, se traduz pela proliferação de pequenas cidades de muitas vivendas de rés-do-chão, cada uma delas com o seu relvado cuidadosamente tratado, uma varanda com cadeiras de descanso e, claro, uma garagem para o automóvel que todos passaram a possuir.

Harmonia e violência

No centro dos acontecimentos está o casal Lodge, interpretando com subtil ironia, sempre à beira da tragédia, por Matt Damon e Julianne Moore. Há também a irmã gémea da mulher (assumida por Julianne Moore com igual destreza), num triângulo que talvez não seja o que parece... Seja como for, a harmonia social começa a ser posta em causa quando um outro casal, os Mayers, se instala nos mesmos subúrbios de Suburbicon. Porquê? Porque a maioria dos habitantes se sente ameaçada, ou “apenas” ofendida, pela pele negra dos Mayers.
Mas não é apenas a discriminação racista, por vezes inequivocamente violenta, que Clooney expõe. Se é que podemos apropriar-nos de uma terminologia política e filosófica introduzida no pensamento ocidental por Hannah Arendt, diremos que Suburbicon é um filme sobre a banalidade do racismo. Da cortesia postiça do quotidiano à agressividade pura e dura, vão-se revelando os fantasmas da democracia e, em particular, a desvalorização da diferença individual, esse valor tão exemplarmente inscrito na mitologia nacional americana.
Clooney encena tudo isso com a paixão de um paradoxal realista: dar a ver as contradições inerentes à história do seu país é, afinal, começar pelo realismo para desembocar no conto moral. E não deixa de ser desconcertante que a maior parte da crítica dos EUA se tenha mostrado indiferente à energia simbólica de Suburbicon nos tempos agitados da presidência de Donald Trump. Escrito há mais de três décadas, o filme começou por ser pensado, como é óbvio, para outro contexto político e moral. Em qualquer caso, há nele uma energia dramática impossível de desligar do tempo presente — este é também o retrato sarcástico de uma América demasiado pequena para pensar em voltar a ser grande. Na visão de Clooney, essa é também uma forma inteligente de ser patriota.