sábado, agosto 26, 2017

A América de Paul Schrader

Paul Schrader
Foi você que disse Paul Schrader?... O argumentista de Taxi Driver já não é uma figura querida do mercado, mas continua a fazer grandes filmes (de pequenos orçamentos) — este texto foi publicado no Diário de Notícias (24 Agosto), com o título 'Paul Schrader assina “thriller” à moda antiga'.

É bem provável que o novo filme de Paul Schrader, Como Cães Selvagens [título original: Dog Eat Dog], se transforme em título obrigatório da programação de muitos cineclubes e associações culturais. Entretanto, a sua estreia acontece de forma ultra-discreta num mercado que, decididamente, no plano das promoções, quase só investe de forma clara nos “blockbusters” que os estúdios americanos produzem para a chamada temporada de Verão.
Há nisto um absurdo que envolve um cruel paradoxo. De facto, Como Cães Selvagens não é, nem de longe nem de perto, um filme esotérico que possa atrair a classificação pejorativa de “intelectual” (convém não esquecer que vivemos num país em que, no cinema e não só, o adjectivo “intelectual” continua a ser aplicado como forma de insulto). Nada disso. Estamos mesmo perante um daqueles “thrillers” de acção electrizante, com sangue, drogas e tragédia q. b., muito à maneira da mais tradicional produção de série B que os EUA geraram sobretudo nas décadas de 50/60. Acontece que Schrader, além de ser um dos mais legítimos herdeiros de tal tradição, é também um dos mais talentosos a aplicar as suas matrizes — a par, por exemplo, de Martin Scorsese (referência que, como veremos, não tem nada de acidental).
Como Cães Selvagens é a história, à moda antiga, de três ex-prisioneiros pouco recomendáveis. Troy e Mad Dog, interpretados, respectivamente, por Nicolas Cage e Willem Dafoe, confundem-se com os seus próprios fantasmas: o primeiro na ressaca de um período na prisão que baralhou todos os seus planos de reintegração social; o segundo vivendo a sua dependência da heroína através de acções de incrível brutalidade. Convocados por um chefe mafioso interpretado pelo próprio Schrader (ficam em aberto todas as ironias simbólicas...), Troy e Mad Dog juntam-se a um gigante de força a que chamam Diesel (Christopher Matthew Cook) com o objectivo de consumar um rapto para pedir um resgate...
Para simplificar, e também para não anular o prazer da descoberta pelo leitor/espectador, digamos apenas que as coisas não correm bem... E aquilo que poderia ser uma colagem de peripécias mais ou menos previsíveis de uma vulgar série televisiva, transfigura-se numa convulsiva e perturbante odisseia moral. Primeiro, porque Schrader sabe encenar cada momento como um teatro entre a vida e a morte, aplicando a sua câmara como um bisturi do submundo — veja-se a espantosa sequência nocturna entre Cage e Dafoe (ambos magníficos) que desemboca num diálogo tenso num salão de bilhar. Depois, porque este é um genuíno cinema de desmontagem das ilusões do quotidiano, expondo uma América visceral, ferida nas suas convicções, mas ainda habitada pela miragem de uma utopia redentora.

Taxi Driver & etc.

Redenção, justamente. Eis um tema fulcral da notável filmografia de Schrader. Será preciso recordar que o seu nome ganhou reconhecimento no mundo da cinefilia como argumentista de Taxi Driver (1976), de Scorsese? E que alguns dos seus títulos mais célebres como argumentista/realizador encenam personagens assombradas por “missões” que os ultrapassam? Como Richard Gere, no labirinto mercantil do sexo, em American Gigolo (1980). Ou Nastassja Kinski, entre as leis da razão e a pulsão animal, em A Felina (1982). Isto sem esquecer que Schrader voltou a trabalhar para Scorsese, escrevendo A Última Tentação de Cristo (1988) — com o mesmo Willem Dafoe que, agora, compõe o letal Mad Dog.
Encurtando a história de tão notável criador, fiquemo-nos por esta constatação: tendo perdido o apoio dos grandes estúdios (e também não encaixando nos estereótipos mais vendáveis do autor independente), Schrader tem-se mantido em actividade através de filmes de pequena produção, mais ou menos ignorados pelos mercados. Recordemos os exemplos brilhantes de Auto Focus (2002), com Greg Kinnear a interpretar a figura verídica de Bob Crane, figura das margens do cinema e da rádio, e The Canyons (2013), escrito por Bret Easton Ellis e protagonizado por Lindsay Lohan, sobre os bastidores da produção de filmes pornográficos — entre nós, foram ignorados pelas salas, tendo seguido directamente (e discretamente) para DVD.
Aos 71 anos de idade (nasceu a 22 de Julho de 1946, em Grand Rapids, Michigan), Schrader é, afinal, um dos grandes individualistas do actual cinema americano. A sua visão eminentemente crítica do “American Dream” envolve também a revalorização de narrativas ligadas a um frondoso património literário e cinematográfico. No caso de Como Cães Selvagens, tem como inspiração um romance de Edward Bunker (1933-2005), também actor de cinema, cuja obra terá sido uma forma de redenção da sua agitada existência criminal. Resta dizer que, embora chegando-nos de forma discreta, o filme foi um dos grandes acontecimentos da Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes de 2016.