segunda-feira, julho 31, 2017

Jeanne Moreau (1928 - 2017)

Nome fundamental na história do cinema europeu das últimas seis décadas, a actriz francesa Jeanne Moreau foi encontrada morta em sua casa, no dia 31 de Julho, em Paris — contava 89 anos.
Dizer que podemos ler e compreender a história do cinema moderno — mais exactamente, da modernidade no cinema — através de Moreau é uma espécie de axioma cinéfilo. O inventário do seu multifacetado talento apresenta-se absolutamente impressionante:
— das convulsões da Nova Vaga francesa, nomeadamente sob a direcção de Louis Malle em dois filmes de 1958, Fim de Semana no Ascensor e Os Amantes, até ao universo enigmaticamente simbólico de Manoel de Oliveira, em O Gebo e a Sombra (2012);
— da mágoa romântica de François Truffaut, em Jules e Jim (1962), mas também em A Noiva Estava de Luto (1968), até à suspensão trágica de François Ozon, em O Tempo que Resta (2005);
— do sarcasmo implacável de Diário de Uma Criada de Quarto (1964), sob o olhar de Luis Buñuel, até às convulsões emocionais de Rainer Werner Fassbinder no seu filme terminal, Querelle (1982).
Filmou ainda sob a direcção de cineastas como: Michelangelo Antonioni, em A Noite (1962), referência obrigatória da modernidade; Jacques Demy, no belíssimo A Grande Pecadora (1963), rodado em Nice; Orson Welles, por exemplo nesse telefilme tão esquecido que é História Imortal (1968); ou ainda Joseph Losey no prodigioso Mr. Klein (1976), com Alain Delon, sobre a França ocupada pelos nazis, e Elia Kazan no muito esquecido e admirável O Grande Magnate (1976), cometendo a proeza de adaptar o "inadaptável" The Last Tycoon, de F. Scott Fitzgerald.
A sua formação teatral — passou pela Comédie Française, período que considerou sempre essencial para o seu sentido de "disciplina" — conferiu-lhe disponibilidade para abraçar as mais diversas personagens, celebrando as suas diferenças, em vez de as submeter a uma "marca" ou "estilo" pessoal. Exemplo extremo da depuração da sua arte poderão ser os trabalhos ligados a Marguerite Duras, a começar pela adaptação de Moderato Cantabile (1960), com direcção de Peter Brook — valeu-lhe o prémio de interpretação feminina em Cannes. Com realização de Duras, surgiria em Nathalie Granger (1972); em Aquele Amor (2001), de Josée Dayan, segundo as memórias de Yann Andréa, interpretou a personagem da própria Duras.

>>> Três videos, três momentos de Jeanne Moreau:
— fragmento de Fim de Semana no Ascensor, com música de Miles Davis;
— trailer de História Imortal [legendas em espanhol];
— apresentação e entrevista na televisão francesa sobre Aquele Amor.






>>> Obituário no jornal Le Monde.

domingo, julho 30, 2017

Mick Jagger, o Maldisposto

Mick Jagger anda maldisposto... Ainda bem. Longe de qualquer satisfaction, num misto de desencanto e revolta, decidiu presentear-nos com duas novas canções, dois amargos hinos rock sobre o estado das coisas. Gotta Get a Grip fala de "um mundo de pernas para o ar / dirigido por lunáticos e palhaços" — a cada um a liberdade de aplicar a metáfora na paisagem que achar mais adequada... Por sua vez, England Lost faz o retrato de um país à deriva nas convulsões do Brexit, uma Inglaterra que o cantor tenta encontrar, "mas não estava lá".
Dois telediscos desenham o mapa desta gélida confissão política: Gotta Get a Grip numa agreste deambulação noturna protagonizada por Jemima Kirke, da série Girls; England Lost encenando, a preto e branco, as atribulações de um homem perseguido, interpretado pelo actor Luke Evans (Gaston, no recente A Bela e o Monstro) — pelo meio, fica também o "lyric video" de England Lost.






>>> Site oficial de Mick Jagger.

"Mad Men" — dez anos depois (4/4)

6 de Agosto de 1962
No dia 19 de Julho, assinalaram-se dez anos sobre a data de emissão do primeiro episódio da série televisiva Man Men — este texto foi publicado no Diário de Notícias (18 Julho), com o título 'Sob o signo de Marilyn Monroe'.

[ 1 ]  [ 2 ]  [ 3 ]

A acção do nono episódio da segunda temporada de Mad Men (emitido a 28 de Setembro de 2008) inicia-se a 6 de Agosto de 1962, um dia depois da morte de Marilyn Monroe. Eis um detalhe histórico que vale a pena recordar, em particular por contraste com as muitas séries mais ou menos medievais, eventualmente futuristas (hoje em dia, é mesmo moda considerar que uma coisa implica a outra). Até porque a evocação daquela morte não decorre de qualquer efeito naturalista (?), típico das narrativas que confundem a mera inventariação dos factos com uma forma de contextualização e, mais do que isso, um método de dramatização.
Sabemos da notícia da descoberta do cadáver de Marilyn através da manchete do jornal que Don Draper (Jon Hamm) recolhe de manhã, na porta do seu quarto no Hotel Roosevelt, em Manhattan — o casamento com Betty (January Jones) está mais fragilizado do que nunca e a tragédia que o jornal regista parece ser um eco dantesco de tudo aquilo que assombra o dia a dia das personagens.
Através do nome de Marilyn, Mad Men consegue a proeza de integrar um acontecimento emblemático da época retratada, sem o encerrar em qualquer simplismo simbólico. A morte de Marilyn instala-se mesmo na agência de publicidade como “coisa” orgânica que, afinal, contamina o comportamento de todos: homens e mulheres surgem remetidos a uma solidão primordial, distantes de qualquer dimensão mitológica ou ilusão espectacular, abrindo o caminho de um luto que a maior parte das personagens nunca pensou enfrentar. Não é todos os dias que a televisão sabe expor, assim, as linhas frágeis com que se tece o individual e o colectivo, ou melhor, o individual através do colectivo. Subitamente, Marilyn é apenas uma mulher que morreu — não poderia haver notícia mais radical.

sábado, julho 29, 2017

Luc Besson: Europa & América

Dane DeHaan, Luc Besson e Cara Delevingne
O francês Luc Besson volta a apostar na possibilidade de desafiar os americanos no seu próprio terreno — este texto foi publicado no Diário de Notícias (24 Junho) com o título 'Blockbuster à moda de Hollywood assinado por um francês'.

Será que a adaptação das aventuras de Valérian e Laureline é uma boa aposta para competir com os “blockbusters” americanos? A pergunta justifica-se, uma vez que estamos perante um projecto com o mesmo tipo de recursos técnicos e ambição espectacular das grandes “máquinas” de Hollywood, mas de raiz europeia, mais especificamente, francesa. Dito de outro modo: inspirado na banda desenhada de Pierre Christin e Jean-Claude Mézières, Valérian e a Cidade dos Mil Planetas é a mais recente proeza do produtor/realizador Luc Besson, neste caso acumulando as tarefas de argumentista.
Nas contas do mercado americano, decisivas para um objecto desta dimensão, os primeiros números indicam que Besson dificilmente conseguirá o sucesso de alguns dos seus títulos anteriores, nomeadamente O Quinto Elemento (1997), também uma aventura de ficção científica, com Bruce Willis no papel central. Estreado no dia 21, nos EUA, o filme ficou-se por um modesto quinto lugar no top de receitas, com um total de 17 milhões de dólares — é um valor muito fraco para um investimento de 200 milhões (cerca de 170 milhões de euros), segundo a revista Forbes a “maior produção de sempre do cinema europeu”. A comparação com a performance de Dunkirk, lançado no mesmo dia, é elucidativa: o épico de guerra de Christopher Nolan (já em exibição entre nós) custou 150 milhões de dólares, tendo rendido uns sólidos 50 milhões no fim de semana de abertura.

Sob o signo de Hollywood

Estamos, de facto, perante o tipo de aventura que, muito por acção do marketing de Hollywood, se transformou em componente “obrigatória” do Verão dos mercados internacionais. Aqui encontramos, algures no século XXVIII, um par mais ou menos romântico — interpretado por Dane DeHaan e Cara Delevingne, respectivamente Valérian e Laureline — numa missão inter-galáctica que os conduz ao planeta Alpha, um exemplo modelar de convivência de espécies provenientes de “mil planetas”.
A missão dos heróis não se esgota nos problemas de Alpha: face aos dramas que se deparam, está em jogo... “o futuro do universo” — assim mesmo, tal como está escrito na sinopse oficial, disponível no site do filme (valerianmovie.com). Dir-se-ia que os “blockbusters”, americanos ou europeus, gastam todas as energias, e também os seus monumentais orçamentos, na gestão dos complexos efeitos especiais, menosprezando o tratamento narrativo — o universo vai ser destruído e... chega.
Paradoxalmente ou não, o principal trunfo de Valérian e a Cidade dos Mil Planetas é a sua concepção visual. As imagens geradas por computador (CGI), permitem a criação de mundos alternativos, habitados por personagens caracterizadas pelas mais inesperadas variações sobre os parâmetros e formas do corpo humano.

A dança de Rihanna

As sequências iniciais são, sem dúvida, as mais sugestivas. As paisagens paradisíacas do planeta ameaçado pelos exércitos do Mal nascem de derivações “poéticas” sobre elementos da nossa natureza (areia, oceano, plantas, etc.), num jogo de formas e cores que, certamente não por acaso, faz lembrar os cenários, igualmente virtuais, utilizados por Besson em Love Profusion (2003), o belíssimo teledisco que dirigiu para a canção de Madonna. Os habitantes desse mundo ameaçado, pele cor de mármore e olhos muito brilhantes, surgem como uma sugestiva variação sobre os seres azuis, longilíneos, do filme Avatar (2009), de James Cameron.
Dir-se-ia que este obsessivo investimento no “look”, aliás sustentado por um sofisticado trabalho de direcção fotográfica do veterano Thierry Arbogast, colaborador habitual de Besson, vai secundarizado o labor específico dos actores. Dane DeHaan nunca consegue, nem mesmo através da ironia, emprestar algum fulgor ao seu Valérian, sendo sempre superado pela mais competente Cara Delevingne.
Em qualquer caso, Besson parece ter acreditado que a escolha de alguns nomes de prestígio para papéis secundários poderia ser um trunfo comercial. Clive Owen e Ethan Hawke fazem o que podem, o primeiro na figura de um militar, o segundo numa composição mais ou menos burlesca como patrão de um bizarro cabaret. A presença mais insólita é Herbie Hancock, lenda viva do jazz, interpretando o Ministro da Defesa como quem está a ler o teleponto de um noticiário televisivo...
Sobra a convidada mais especial: Rihanna. A super-estrela pop surge, não para cantar, antes para interpretar uma bailarina de nome Bubble, principal atracção dos espectáculos apresentados pela personagem de Hawke. O seu número de dança e transfiguração, dir-se-ia um teledisco puramente onírico, distingue-se por uma energia contagiante, a energia que, infelizmente, falta a quase todas as outras cenas do filme.

Angelina Jolie por Mert & Marcus

Mert Alas & Marcus Piggott fotografaram Angelina Jolie para aquela que é a sua primeira grande entrevista depois da separação de Brad Pitt. É o tema de capa da edição da revista Vanity Fair (com data de Setembro), com especial destaque para o novo filme de Jolie como realizadora: com produção da Netflix, First They Killed My Father adapta a memória de Loung Ung, que foi uma criança sobrevivente do regime sanguinário dos Khmers Vermelhos, no Cambodja — eis um video de apresentação do projecto; portfolio e artigo de Evegnia Peretz no site da VF.

quinta-feira, julho 27, 2017

O Dr. Estranhoamor no tempo de Trump

Peter Sellers, Dr. Strangelove
Vale a pena pensar os filmes a partir do contexto em que foram feitos, pensando também como falam para o nosso presente — este texto foi publicado no Diário de Notícias (23 Julho).

No nosso dia a dia mediático, não poucas vezes, somos levados a reduzir o exercício do poder político a um conjunto de peripécias anedóticas protagonizadas pelos grandes líderes. Observe-se o caso óbvio de Donald Trump: gastamos (ou somos levados a gastar) mais tempo com as suas diatribes públicas do que a pensar as questões radicais que a sua performance arrasta. Por exemplo: que acontece na dinâmica dos próprios valores democráticos quando elegemos (os americanos, neste caso, mas a questão é universal) uma personalidade com o perfil de Trump?
Há muitas formas de linguagem que nos podem ajudar a lidar com tal conjuntura. Do meu ponto de vista, o cinema continua a ser uma das mais ricas — e também das menos socialmente aplicadas. Nada disto decorre de qualquer pretensão de “intelectualizar” a relação com os filmes. Trata-se tão só de discutir a visão mercantilista e lúdica (de um ludismo mercantil, convém esclarecer) que passou a dominar o mercado audiovisual, bloqueando o simples prazer de mantermos uma relação viva com a infinita pluralidade do cinema e da sua história de mais de um século.
Donald Trump
Dr. Estranhoamor (1964), o lendário Dr. Strangelove, de Stanley Kubrick, pode ser um magnífico exemplo de tais virtudes cinematográficas — e tanto mais quanto acaba de reaparecer numa edição em Blu-ray (integra, aliás, um notável conjunto de uma dezena de clássicos lançado pela distribuidora Pris). Produzido em contexto de Guerra Fria, trata-se de uma sátira delirante, contundente e intemporal, sobre a utilização bélica da energia nuclear (no original, o título completo é “Dr. Estranhoamor ou: Como Eu Aprendi a Deixar de me Preocupar e a Adorar a Bomba”).
Para a história, o filme ficou também como uma extraordinária proeza de Peter Sellers, interpretando três personagens emblemáticas: Lionel Mandrake, um exuberante oficial britânico, Merkin Muffley, o hesitante Presidente dos EUA, e a figura central, Dr. Strangelove, ex-nazi e entusiasta da utilização da bomba atómica.
Entenda-se: a actualidade do filme não decorre de qualquer “comparação” maniqueísta, por exemplo fazendo equivaler a loucura atómica de Strangelove e os desastres democráticos de Trump. O que Kubrick coloca em cena é algo que, infelizmente, permanece actualíssimo. A saber: a diluição dos valores da democracia, a par da concentração de um imenso poder político (e militar!) nas mãos de alguns poucos cidadãos. Na sua vertigem burlesca, Dr. Estranhoamor é também um objecto de perturbante realismo [trailer].

Ronaldo sai do Real... aliás, não sai...

I. Esta notícia é do dia 16 de Junho, por acaso do jornal Record. E digo "por acaso" num sentido estritamente estatístico: por todo o mundo (e estamos a falar de uma dimensão, de facto, mundial) a notícia correu como coisa consumada — Cristiano Ronaldo tinha dito, claramente dito, que não voltava a Madrid nem ao Real Madrid.

II. Um mês depois, os mesmos meios de comunicação que tinham dado a dramática notícias, celebravam outra — veja-se a euforia pueril da Marca. Ou seja: Ronaldo vai continuar a ser jogador do Real Madrid!

III. Como? Importa-se de repetir...

IV. Infelizmente, o próprio espaço jornalístico recalca a discussão destas tão particulares dinâmicas mediáticas.

V. Poderá dizer-se que, quando surgiu a primeira notícia, havia razões consistentes para a divulgar. Talvez — mas não é isso que está em causa. O que está em causa é que os mesmos modelos de (des)informação que são capazes de trucidar na praça pública um político por causa de uma qualquer pormenor contraditório nas suas palavras, mostram uma sistemática indiferença pelas contradições discursivas dos jogadores de futebol — como se nem sequer fosse legítimo identificar as componentes anedóticas daquilo que dizem. Eis a narrativa mitológica: Ronaldo era um herói porque ia sair, continua a ser um herói porque vai ficar.

quarta-feira, julho 26, 2017

Elvis — as origens

Não, não se trata de uma mera acumulação de gravações mais ou menos acidentais, supostamente revelando uma outra dimensão do intérprete... Estamos perante um projecto de absoluto rigor e seriedade: A Boy From Tupelo — The Complete 1953-1955 Recordings faz o inventário de tudo o que Elvis Presley gravou para se transformar em... Elvis Presley. Muitos registos eram já conhecidos, inseridos nos mais variados contextos — incluindo as lendárias primeiras gravações no Sun Studio, iniciadas a 5 de Julho de 1954 —, o que, ainda assim, não lhes retira o valor de verdadeiras raridades. Mas há também algumas revelações absolutas, incluindo uma primorosa interpretação de I Forgot To Remember To Forget, de 29 de Outubro de 1955, no programa Louisiana Hayride.
Eis o filme-anúncio do triplo CD; na NPR, é possível escutar um total de 15 faixas.

O academismo de "Lady Macbeth"

É uma tendência dos nossos dias: o academismo televisivo, na sua obsessão clean, surge muitas vezes promovido a imaculado classicismo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (20 Julho), com o título 'O triunfo do maneirismo'.

Bizarro fenómeno dos nossos dias: o apagamento das memórias cinéfilas (o espectador comum conheço Pelé e Eusébio, mas ignora Dreyer ou Renoir) consagrou o formalismo mais ou menos maneirista como “resposta” mais adequada às rotinas televisivas.
Aí o está o exemplo de Lady Macbeth, produção britânica realizada por William Oldroyd, adaptando Lady Macbeth do Distrito de Mtsensk (1865), do escritor russo Nikolai Leskov (obra na origem de uma ópera de Dmitri Shostakovich e um filme de Andrzej Wajda, respectivamente de 1934 e 1962). As tensões da intriga, cruzando as convulsões sexuais e o impulso criminoso, encontram algum eco na qualidade do elenco (liderado por Florence Pugh), mas o projecto cedo se confunde com o decorativismo de um telefilme de rotina. Conscientemente ou não, Lady Macbeth consagra a noção corrente de produto cultural sério e chique. Que Orson Welles nos acuda...

Cindy Wilson a solo

A foto já tem uns anitos, é verdade, mas condensa uma inconfundível assinatura: Cindy Wilson, fundadora, compositora e vocalista dos B-52s. Agora, aos 60 anos de idade, lançou-se na aventura de um primeiro álbum a solo (depois do EP Sunrise), ou melhor, na companhia de músicos da sua cidade natal, Athens, Georgia. Chama-se Change e anuncia-se influenciado por Air, Björk, Tame Impala e Gary Numan — aí está o exemplo esclarecedor de Mystic.

terça-feira, julho 25, 2017

Rodrigo Guedes de Carvalho
— o romance e a sua circunstância

Será que podemos definir um romance através de uma ideia — no limite, uma frase — que, a partir do momento em que é enunciada, parece contaminar todas as personagens e, em boa verdade, todos os elementos da sua escrita?
O fascínio de um romance como O Pianista de Hotel, de Rodrigo Guedes de Carvalho, pode, talvez, condensar-se na ideia/frase/aforismo que emerge na pág. 166: "O nosso corpo chega sempre aos outros antes de nós". Dir-se-ia uma derivação desse desafio, ao mesmo tempo crítico e existencial, que Roland Barthes enunciava quando, em O Prazer do Texto (1973), se propunha "seguir as ideias do meu corpo". Porquê? Porque "o meu corpo não tem as mesmas ideias que eu".
O Pianista de Hotel talvez se possa definir como uma encruzilhada de personagens condenadas a viver essa discrepância entre a sua chegada aos outros e aquilo que o seu corpo já fez acontecer antes de eles lá chegarem. Daí que sintamos que nenhuma medida tradicional do tempo se adequa à descrição do calendário que as personagens habitam. Assim, por exemplo, logo nas primeiras páginas, Maria Luísa sente-se interpelada pela presença silenciosa da mãe ("Ouviu. Ou não ouviu?"). O certo é que a mãe está morta — e ela sabe que a mãe está morta. Umas três centenas de páginas mais tarde, a perturbação reacende-se, Maria Luísa regressa à cena inicial, e o leitor é convocado para a maravilha primitiva da literatura: o romance parece estar a entrar na fase "obrigatória" de resolução das suas tensões internas e, apesar disso, ou melhor, através disso, tudo se passa como se o escritor e nós com ele nos mantivéssemos a inventariar a paisagem infinita de um só instante.
Rodrigo Guedes de Carvalho
Rodrigo Guedes de Carvalho segue e persegue os destinos de Maria Luísa e Luís Gustavo, Saul Samuel e Pedro Gouveia, tratando cada um deles como novas encarnações da primordial ambivalência vida/morte. Será por isso que este é um romance em que todos os nomes se duplicam (não "Maria", mas "Maria Luísa"; não "Luís", mas "Luís Gustavo"...), como se existissem através do próprio espelho que o nome transporta. Há uma criança chamada Marco, é verdade — mas cedo compreendemos que vai morrer, devolvido à frieza inaugural do nome que, apesar de tudo, nos resgata do caos do mundo.
Apetece dizer que este é um romance que "parece" um filme — a presença de Hitchcock nas citações de abertura não é, obviamente, um acidente. Em qualquer caso, tal "parecença" não decorre do simples reconhecimento de que encontramos aqui matéria susceptível das mais sugestivas transfigurações. Acontece que O Pianista de Hotel possui do cinema (do grande cinema, acrescento eu) essa capacidade, ao mesmo tempo realista e mágica, de nos fazer experimentar a instabilidade do tempo, mesmo quando, por uma espécie de pueril crença social, o identificamos como "apenas" linear.
Vivemos, aliás, uma época assombrada por um equívoco filosófico, todos os dias ampliado por uma das mais poderosas convenções da linguagem televisiva. A saber: o de que é possível mostrar/descrever/representar o que quer que seja em tempo real. Como se uma imagem (ou um som) não fosse já um outro tempo do mesmo tempo. Como se, enfim, a complexidade do ser se pudesse libertar das infinitas ambivalências do tempo e suas percepções (relembremos Hitchcock, reveja-se Mankiewicz). Na verdade, aquilo que definimos como realidade sancionada pelo tempo não passa de uma conjuntura afectiva e social, concreta e abstracta, em que alimentamos a ilusão de possuir uma identidade segura, transparente e definitiva. Como se, protagonistas incautos de uma história que julgamos controlar, pudéssemos chegar ao mesmo tempo que o nosso corpo.
Em última instância, a lição moral de O Pianista de Hotel envolve esse labor homérico (bom adjectivo...) com o prelúdio do tempo e a sua constante fuga. Retomando a máxima de Ortega y Gasset que vai circulando pelo livro, diremos que um romance é sempre um romance e a sua circunstância. Ou ainda: com ou sem pauta, a escrita pode ser, como aqui acontece, um acontecimento de delicada e inquieta musicalidade.

A cinefilia segundo o IMDb

Uma criança anónima a imitar Wolverine... Eis o destaque na página de abertura do IMDb para um balanço fotográfico do Comic-Con 2017. Não poderia haver figuração mais esclarecedora sobre a ideologia cinéfila sustentada pelo site gerido por Col Needham.
A foto não é verdadeira e reveladora da ambiência do Comic-Con?
Não é isso que está em causa — vale a pena tentar pensar um pouco para além do cliché jornalístico. O que importa reter é o valor sintomático da imagem. Desde logo, porque a esmagadora maioria dos destaques do IMDb privilegia uma pequena franja de filmes — em boa verdade, os que movimentam gigantescos orçamentos e são sustentados por campanhas publicitárias de nível planetário. Depois, porque há, aqui, um insistente padrão de comportamento: o bom cinéfilo é aquele que "duplica" as imagens dos heróis, de preferência super-heróis. Que a pessoa figurada seja uma criança, eis o que acrescenta o lugar-comum da obrigatória inocência.

segunda-feira, julho 24, 2017

Álbuns no feminino — um top 150

O objectivo é "começar uma nova conversa" e, mais do que isso, "reescrever a história" — assim é apresentado o Top 150 dos "melhores álbuns feitos por mulheres" proposto pela rádio pública dos EUA, NPR. Em boa verdade, trata-se não apenas de álbuns no feminino (de 1964 para cá), mas de uma escolha feita exclusivamente por mulheres: "cerca de 50 mulheres que desempenham algum papel" nas estruturas da NPR.
Na sua dimensão mais didáctica e sugestiva, os resultados definem um mapa fascinante sobre a história da música popular nos últimos cinquenta e poucos anos, de Diana Ross and the Supremes, com Where Did Our Love Go (Motown, 1964), em 15º lugar, até Beyoncé, com Lemonade (2016), em 6º.
Aqui fica o Top 10 e, em baixo, algumas das suas sonoridades.

1. Joni Mitchell
BLUE
(Reprise, 1971)

2. Lauryn Hill
THE MISEDUCATION OF LAURYN HILL
(Ruffhouse/Columbia, 1998)

3. Nina Simone
I PUT A SPELL ON YOU
(Philips, 1965)

4. Aretha Franklin
I NEVER LOVED A MAN THE WAY I LOVED YOU
(Atlantic, 1967)

5. Missy Elliott
SUPA DUPA FLY
(The Goldmind/Elektra, 1997)

6. Beyoncé
LEMONADE
(Parkwood/Columbia, 2016)

7. Patti Smith
HORSES
(Arista, 1975)

8. Janis Joplin
PEARL
(Columbia, 1971)

9. Amy Winehouse
BACK TO BLACK
(Island, 2006)

10. Carole King
TAPESTRY
(Ode, 1971)

>>> Blue, Joni Mitchell [audio] + Redondo Beach, Patti Smith [Estocolmo, 1976] + Love Is a Losing Game, Amy Winehouse [teledisco].





"Mad Men" — dez anos depois (3/4)

Matthew Weiner
No dia 19 de Julho, assinalaram-se dez anos sobre a data de emissão do primeiro episódio da série televisiva Man Men — este texto foi publicado no Diário de Notícias (18 Julho), com o título 'Da publicidade aos Romanoffs'.

[ 1 ]  [ 2 ]

Quando surgiu a série Mad Men, em 2007, o seu criador Matthew Weiner estava longe de ser um principiante — basta lembrar a sua ligação à série Os Sopranos, entre 2004 e 2007, desde a escrita de argumentos a diversas tarefas de produção. Formado em cinema e televisão pela University of Southern California, foi construindo uma carreira de argumentista que passou por séries de comédia como The Naked Truth (1997-98), com Téa Leoni, ou Becker (1999-2001), com Ted Danson.
Escreveu o primeiro esboço para o episódio piloto de Mad Men em 1999, portanto vários anos antes da sua concretização. Curiosamente, foi depois da respectiva leitura que o produtor David Chase o convidou para trabalhar em Os Sopranos — a série iria valer-lhe o primeiro dos seu nove Emmys (sete dos quais conquistados com Mad Men, como produtor ou argumentista). Em 2013, para cinema, escreveu e realizou Amigos para o que Der e Vier, uma comédia dramática com Owen Wilson, Zach Galifianakis e Amy Poehler.
Ligado à escrita de todos os 92 episódios de Mad Men, Weiner dirigiu nove deles, incluindo o derradeiro Person to Person, emitido a 17 de Maio de 2015. Actualmente, prepara a série The Romanoffs, produzida pela Amazon, com lançamento previsto para a primavera de 2018 — as suas personagens são do nosso tempo e, justificadamente ou não, acreditam que são descendentes da derradeira família imperial da Rússia. Ainda este ano, no Outono, será publicado o seu primeiro romance, intitulado Heather, the Totality.

John Heard (1945 - 2017)

Talentoso actor secundário do cinema americano, John Heard faleceu no dia 21 de Julho, em Palo Alto, California, na sequência de uma operação às costas — contava 72 anos.
Ironia cruel, sem dúvida: os obituários de John Heard insistiram em destacar o seu papel de pai nos filmes da série Sozinho em Casa, desvalorizando implicitamente uma carreira de quatro décadas e mais de 150 títulos. Com um importante background teatral — prémio de revelação em 1977, graças à sua composição na peça de David Berry, G.R. Point, sobre a guerra do Vietname —, foi um dos mais talentosos novos rostos de Hollywood nos anos 70/80, começando por se distinguir no magnífico e muito esquecido Heart Beat/Um Bater de Corações (1980), de John Byrum, uma evocação da Beat Generation em que interpretava a personagem de Jack Kerouac, contracenando com Nick Nolte e Sissy Spacek.
Vimo-lo depois em Cutter's Way/À Maneira de Cutter (1981), drama policial de culto assinado por Ivan Passer, e Cat People/A Felina (1982), remake do clássico de terror com Nastassja Kinski no papel central e realização de Paul Schrader. Como outros actores da sua geração, foi sendo de alguma maneira compelido a cruzar cada vez mais cinema e televisão, embora tenha participado, em papéis mais ou menos importantes, em filmes como Nova Iorque Fora de Horas (Martin Scorsese, 1985), Regresso a Bountiful (Peter Masterson, 1985), e O Segredo de Milagro (Robert Redford, 1988).
Com a comédia Big (Penny Marshall, 1988), contracenando com Tom Hanks, teria um dos seus momentos de maior sucesso, embora isso não se tivesse reflectido necessariamente nas hipóteses de escolha que se seguiram. Para além das duas presenças em Sozinho em Casa (1990 e 1992), surgiu, por exemplo, em Despertares (Penny Marshall, 1990), Na Linha de Fogo (Wolfgang Petersen, 1993), Dossier Pelicano (Alan J. Pakula, 1993) e Os Olhos da Serpente (Brian De Palma, 1998). Em 1999, a sua participação na série Os Sopranos valeu-lhe uma nomeação para o Emmy de melhor actor convidado.

>>> Obituário no New York Times.

domingo, julho 23, 2017

Beatles — redescobrindo "Hey Bulldog"

Do baú dos Beatles não param de sair objectos mais ou menos desconhecidos, quase sempre sedutores. Poucas semanas depois do 50º aniversário do lançamento de Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band, eis mais uma deliciosa revelação, neste caso uma espécie de teledisco de Hey Bulldog, tema de Yellow Submarine, lançado cerca de um ano e meio depois de Sgt. Pepper's..., em Janeiro de 1969 — a canção viria a surgir em vários singles, associada, por exemplo, a All Together Now.
Não será, de facto, um teledisco (formato que, aliás, em termos comerciais, não existia na época), até porque a gravação da canção decorreu quase por acidente, durante as filmagens de um video promocional para Lady Madonna. Antes uma montagem, particularmente hábil e envolvente, de uma canção algo esquecida. Embora com assinatura Lennon/McCartney, Hey Bulldog é, no essencial, uma criação do primeiro, típica do seu gosto surreal do absurdo, que o segundo ajudou a concretizar em estúdio — sem esquecer o magnífico solo de guitarra de Harrison.

Sheepdog
Standing in the rain
Bullfrog
Doing it again
Some kind of happiness is measured out in miles
What makes you think you're something special when you smile?

Child-like
No one understands
Jack knife
In your sweaty hands
Some kind of innocence is measured out in years
You don't know what it's like to listen to your fears

You can talk to me
If you're lonely you can talk to me

Big man
Walking in the park
Wigwam
Frightened of the dark
Some kind of solitude is measured out in you
You think you know me but you haven't got a clue

You can talk to me
[...]

Hey bulldog! Hey bulldog!

Spielberg, 2045

Em 2045, a Realidade Virtual será um desafio, um fascínio e uma ameaça. Assim parece acontecer, pelo menos, na visão de Steven Spielberg, inspirada no romance Ready Player One, de Ernest Cline. O filme, com o mesmo título, foi apresentado no Comic Con, em San Diego, por Spielberg, na companhia de Cline e do intérprete principal, Tye Sheridan [Sky News]. A estreia americana ocorrerá no dia 30 de Março de 2018 — eis o trailer.

Claude Rich (1929 - 2017)

Talento tão discreto quanto multifacetado, foi um actor de prestígio em teatro e cinema: o francês Claude Rich faleceu no dia 20 de Julho, em Orgeval — contava 88 anos.
No Conservatório Nacional, enquanto estudante de arte dramática, integrou uma ilustre geração a que também pertencem, por exemplo, Jean Rochefort, Jean-Paul Belmondo, Jean-Pierre Marielle e Bruno Cremer. Passou pelo palco do Théâtre de la Renaissance, em Paris, tendo a sua estreia cinematográfica sob a direcção de René Clair, em As Grandes Manobras (1955). Rapidamente reconhecido como um excelente secundário, trabalhou de novo sob a direcção de Clair (Todo o Ouro do Mundo, 1961), e ainda Jean Renoir (O Cabo de Guerra, 1962) e Georges Lautner (Violência, Dinamite e Boas Maneiras, 1963). Depois de Onde está o Oscar? (1967), comédia de Édouard Molinaro com Louis de Funès, e A Noiva Estava de Luto (1968), drama policial de François Truffaut, Alain Resnais ofereceu-lhe, ainda em 1968, aquele que ficaria como um dos seus mais notáveis papéis: Je t'Aime, Je t'Aime [video], belíssimo melodrama com uma dimensão de ficção científica.
Cumprindo uma carreira cinematográfica de muitas dezenas de títulos, voltou regularmente ao teatro, nomeadamente em 1989, na peça Le Souper, de Jean-Claude Brisville — a respectiva versão cinematográfica, realizada por Molinaro em 1992, valeu-lhe o César de melhor actor — seria distinguido com um César honorário em 2002. A sua versatilidade levou-o sempre a mostrar disponibilidade para os papéis mais insólitos, incluindo o de Panoramix, em Astérix e Obélix: Missão Cleópatra (2002), de Alan Chabat. Ladygrey (2015), um filme de Alain Choquart sobre a herança do apartheid, na África do Sul, foi o seu derradeiro trabalho.


>>> Obituário no jornal Le Monde.

sábado, julho 22, 2017

Jessica Chastain a preto e branco

O belga Willy Vanderperre fotografou (e filmou) Jessica Chastain para a nova campanha da marca Prada: um portfolio a preto e branco, intitulado 'Persona', em que a elegância da pose se combina com uma sofisticação eminentemente nostágica — a preto e branco, claro.

"Mad Men" — dez anos depois (2/4)

No dia 19 de Julho, assinalaram-se dez anos sobre a data de emissão do primeiro episódio da série televisiva Man Men — este texto foi publicado no Diário de Notícias (18 Julho), com o título '“Mad Men”, os gloriosos anos 60 e as suas tragédias mais íntimas'.

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No meses de Verão de 2007, os mercados audiovisuais viviam dominados pelas sequelas cinematográficas. Em poucas semanas, com típico alarido do marketing planetário, tinham estreado os filmes Piratas das Caraíbas – Nos Confins do Mundo, Harry Potter e a Ordem da Fénix e Homem-Aranha 3, sequelas e continuações de fórmulas em que os grandes estúdios americanos continuavam (e continuam) a apostar. Mas o acontecimento mais emblemático estava nos ecrãs caseiros: o primeiro episódio da série televisiva Mad Men, criada por Matthew Weiner, foi emitido a 19 de Julho de 2007.
Rapidamente promovida a fenómeno de culto, a primeira temporada de Mad Men viria a arrebatar, em 2008, o Emmy de melhor série dramática (distinção que repetiu nos três anos seguintes). Até 2015, seriam produzidos 92 episódios repartidos por sete temporadas. Ao longo desse tempo, Mad Men foi sempre integrada pelo American Film Institute na lista das dez melhores séries do ano.
Enfim, um verdadeiro clássico, gerado à velocidade da televisão. E no sentido mais contundente do classicismo: há um “antes” e um “depois” de Mad Men, uma vez que a série definiu novos padrões de abordagem de uma conjuntura muito particular. A saber: a evolução da publicidade ao longo dos anos 60, em paralelo com as muitas transformações sociais que levaram a questionar modos e valores de comportamento.

Corpo e alma

Mad Men começou por impressionar através da minuciosa e obsessiva figuração dos anos 60. E escusado será sublinhar que o facto de a acção se passar no interior de uma agência de publicidade não é indiferente à exuberância de todo aquele universo. Das linhas rigorosas e sedutoras do guarda-roupa de homens e mulheres às formas de um mobiliário concebido como emblema de uma modernidade triunfante, estávamos perante um universo de cores felizes.
Ou talvez não... A visão de Weiner define-se a partir de um ancestral contraste: naquele bailado de corpos elegantes e ideias ligeiras, será que ainda existe alguma alma? Um dos magníficos cartazes da série avisava-nos para a perturbação inerente a tal dúvida: “Uma série sobre a verdade. E outras áreas igualmente cinzentas”.
Estamos, enfim, perante uma paciente desmontagem das ilusões dos míticos sixties. Era o tempo em que, da eleição de John F. Kennedy à generalização da pílula contraceptiva, o Sonho Americano parecia entrar numa radiosa celebração colectiva. Através de quê? De novas formas de consumo, ligadas, precisamente, aos produtos que a publicidade se empenhava em tornar irresistíveis.
À boa maneira dos melodramas que Hollywood produziu ao longo dos anos 40/50, começa por haver um casal exemplar: Don Draper (Jon Hamm), criador e co-proprietário de uma agência de publicidade, e Betty (January Jones), a sua mulher, símbolo “neutro” do sucesso do marido. De facto, a sua vida íntima, assombrada pelo álcool e pelas muitas infidelidades de Don, é uma tragédia suspensa — e tanto mais quanto tudo aquilo que ele viveu na guerra da Coreia se insinua como um fantasma que recusa desaparecer.
Através de um elenco de invulgar consistência (Elizabeth Moss, John Slattery, Christina Hendricks, Vincent Kartheiser, Kiernan Shipka, etc.), a série de Weiner soube criar um espelho ambíguo de um tempo tradicionalmente evocado como “puro” e “libertador”, na verdade habitado por muitas e dolorosas convulsões. Do machismo quotidiano às mais elaboradas formas de homofobia e anti-semitismo, Mad Men conta histórias que desmentem, ponto por ponto, a felicidade prometida pela publicidade. Sem esquecer que os cigarros estão sempre presentes, em todos os cenários, como se as almas estivessem a consumir-se num fogo sem remissão.

Barbara Weldens (1983 - 2017)

[ Barbara Weldens: site oficial ]
Um dos grandes talentos da actual canção francesa, Barbara Weldens faleceu no dia 19 de Julho, vítima de uma paragem cardio-respiratória, durante um concerto em Gourdon, provavelmente na sequência de um violento choque eléctrico (um inquérito foi aberto para esclarecer as causas da morte) — contava 35 anos.
Filha de artistas de circo, desde muito cedo experimentou as matérias do espectáculo, desenvolvendo uma multifacetada personalidade criativa. A sua óbvia filiação na tradição de canto, ao mesmo tempo confessional e teatral, a que pertencem Jacques Brel ou Léo Ferré, teria a sua eloquente confirmação, em 2016, quando venceu o Concurso Jovens Talentos do Festival Jacques Brel. Em Fevereiro deste ano, tinha sido publicado o seu primeiro álbum, o magnífico Le Grand H de l’Homme [capa] — este é o tema Je Ne Veux Pas de Ton Amour.


>>> Obituário no jornal Le Monde.

sexta-feira, julho 21, 2017

O sonho de Cornelius

Cornelius, isto é, o músico e produtor japonês Keigo Oyamada tem um novo álbum: Mellow Waves parece querer definir-se através de um gosto paradoxal de abstracção, capaz de transfigurar a imagem do corpo e a própria percepção do espaço urbano — o bem chamado tema In a Dream aí está, sereno e depurado, com teledisco a celebrar uma enigmática deambulação onírica.

SOUND + VISION Magazine
— FNAC, hoje

DICK TRACY (1990)
Numa altura em que a banda desenhada continua a inspirar alguns "blockbusters" de Verão, propomos uma viagem em torno das muitas e fascinantes ligações dos filmes com as histórias aos quadradinhos — imagens, músicas e aventuras por redescobrir.

* SOUND + VISION Magazine
> FNAC Chiado — hoje, 21 de Julho (18h30)

quinta-feira, julho 20, 2017

Filmes para ver e rever

De 20 de Julho a 16 de Agosto, o Nimas (Lisboa) apresenta um conjunto de filmes que, de uma maneira ou de outra, marcaram o último ano cinematográfico — este texto foi publicado no Diário de Notícias (19 Julho), com o título 'Elogio da pluralidade'.

Em finais de 2012, a reposição de Vertigo (1958), de Alfred Hitchcock, em cópia digital restaurada, foi um pequeno grande acontecimento no mercado português. Com distribuição da Midas Filmes, a obra-prima do mestre do suspense veio relançar uma hipótese comercial cuja pertinência não desapareceu. A saber: manter uma relação activa com as memórias cinéfilas, enriquecendo a oferta e diversificando a procura.
De então para cá, felizmente, essa e outras empresas têm sabido explorar as potencialidades de tal oferta. Todos os espectadores, a começar pelos mais jovens, têm tido oportunidade de conhecer grandes clássicos mais ou menos “esquecidos”, contrariando o lugar-comum segundo o qual todos os filmes “antigos” são meras curiosidades de museu, irremediavelmente datadas e pitorescas. Por vezes, redescobrindo preciosas raridades. A Alambique Filmes, por exemplo, através da marca Cinema Bold, anuncia para Agosto Stop Making Sense (1984), de Jonathan Demme, com os Talking Heads, um dos marcos da história dos “filmes-concerto”.
Neste contexto, a iniciativa da Medeia Filmes, sob a designação feliz de “Um Ano de Cinema(s)”, vem mostrar e demonstrar que a paisagem cinematográfica está longe de se poder reduzir aos filmes que têm anúncios nos canais de televisão ou conseguem encher de cartazes as nossas ruas e estações de metro. Não que os filmes com grandes meios sejam suspeitos do que quer que seja (a demonização automática da criatividade de Hollywood, mesmo com todo o seu poder ideológico, continua a ser apenas um preconceito chique). Acontece que qualquer relação cultural e comercial com o cinema passa pelo reconhecimento da sua pluralidade artística — por uma vez, importa lembrar que alguns críticos nunca desistiram dessa ideia.

"Mad Men" — dez anos depois (1/4)

No dia 19 de Julho, assinalaram-se dez anos sobre a data de emissão do primeiro episódio da série televisiva Man Men — estas imagens foram publicadas no Diário de Notícias (18 Julho).
SÍMBOLO — O genérico desemboca na pose de Jon Hamm (incluindo cigarro), ouvindo-se o tema A Beautiful Mine, do álbum Magnificent City (2006), do rapper Aceyalone, com o produtor de hip hop RJD2 [video em baixo]

MASCULINO — O cigarro, a bebida, a frieza da pose, algures entre desprendimento e arrogância: John Hamm talvez nunca venha a ser uma estrela de cinema, mas o certo é que já pertence à história da televisão
PODER — A lei profissional e social é inequívoca: as formas de poder foram organizadas pelos homens e para os homens — apresentam-se como personagens imaculadas de um dos seus anúncios

SOCIAL — Os anos 60 inventaram a ideia redentora segundo a qual homens e mulheres tinham atingido uma igualdade simples e utópica — vestiam-se até como figurantes felizes de um grande circo social
FEMININO — O pano de fundo é a clássica cozinha, mas a pose da mulher celebra uma nova ideia de igualdade (incluindo cigarro). O certo é que no olhar de January Jones coexistem desilusão e pânico
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>>> Notas sobre a produção do genérico de Mad Men em 'Art of the Title'.

"Uma imagem solidária" [apresentação]

"Uma imagem solidária" — EUNICE LOPES
"Uma imagem solidária" — ANTÓNIO AZEVEDO
"Uma imagem solidária" — ANDRÉ KOSTERS
A convite da organização da exposição "Uma imagem solidária", destinada a angariar fundos para os bombeiros que combateram o incêndio de Pedrógão Grande, participei na respectiva apresentação — aqui fica o texto que li na sessão realizada na Fundação Portuguesa das Comunicações.

Há pouco mais de um mês, quando deflagrou o incêndio de Pedrógão Grande, o nosso conhecimento da tragédia passou, inevitavelmente, pelas imagens, sobretudo as imagens televisivas.

Inevitavelmente e, eu diria, naturalmente. Porquê? Porque as imagens constituem, hoje em dia, elementos naturalizados do nosso quotidiano. A esse propósito, muitos de nós gostam de lembrar o aforismo que nos garante que “uma imagem vale mais que mil palavras”.

E aqui peço licença para introduzir uma pequena nota dissonante. Espero mesmo que ninguém leve a mal o meu desencanto face a essa ideia segundo a qual as palavras podem ser sempre substituídas pelas imagens.

Quanto mais não seja porque acredito que há paradoxos que nos ajudam a pensar, faço questão em contrapor que há muitas situações em que uma palavra, uma palavra justa, uma palavra ponderada, pode valer tanto ou mais que mil imagens.

Apesar disso — ou melhor, precisamente, por causa disso — importa ver, contemplar e celebrar estas imagens que hoje, aqui, nos reúnem.

São imagens que enriquecem o nosso olhar. São imagens solidárias, como recorda o título da exposição, porque, justamente, existem para nos ajudar a lidar com o mundo à nossa volta — a sua pluralidade, o seu fascínio, as suas apoteoses e também as suas contradições.

Nesse sentido, e sem querer simplificar as potencialidades informativas e o valor social que as imagens televisivas podem envolver, creio que vale a pena lembrarmos aquilo que é, afinal, o poder mais ancestral da fotografia.

Será mesmo uma evidência rudimentar mas, na minha perspectiva, essencial: a fotografia sabe fixar o movimento do mundo, ajuda-nos a lidar com esse movimento, promovendo o instante, o fugaz instante, à condição de eternidade.

Os fotógrafos que contribuíram para esta exposição fazem-no, assim, através de dois princípios fundamentais:

— primeiro, manifestando a sua proximidade afectiva e o seu compromisso social com os bombeiros que combateram o fogo de Pedrógão Grande.

— depois, reiterando o conceito mais nobre do seu trabalho — a saber: cada uma das suas fotografias existe para que o nosso olhar descubra e redescubra o mundo na sua diversidade; essa é, afinal, uma forma profissional, artística e humana de ser solidário.

J. L.