sábado, junho 17, 2017

Comey, Trump e a televisão

Ainda uma breve reflexão sobre as imagens de James Comey, respondendo a uma comissão do Senado dos EUA — este texto foi publicado no Diário de Notícias (11 Junho), com o título 'Uma derrota televisiva de Donald Trump'.

Todos conhecemos o lugar-comum que descreve os filmes de Manoel de Oliveira como uma colagem de longuíssimos planos fixos em que nada acontece, a não ser personagens a falar, falar, falar... Mesmo no mais estrito plano descritivo, trata-se de uma pura mentira. Que esse lugar-comum não seja assumido por ninguém desde o dia do falecimento do cineasta (2 de Abril de 2015), eis um interessante detalhe sociológico, inevitavelmente revelador da consistência da nossa vida “cultural”.
[FOTOS: Miguel A. Lopes]
Seja como for, vale a pena recordá-lo. E não só porque ninguém refere o facto de, por curiosa ironia, as televisões estarem cheias de longuíssimos planos fixos de comentadores (de política e futebol) que, melhor ou pior, falam, falam, falam... Vale a pena recordá-lo porque no nosso mundo saturado de imagens, nos desabituámos de pensar que as imagens podem ser também fundamentais veículos de “transporte” de palavras.
Provavelmente, milhões de pessoas, em todo o planeta, ficaram agarradas aos longuíssimos planos fixos de James Comey, o ex-director do FBI demitido por Donald Trump, respondendo a uma comissão do Senado dos EUA encarregada de investigar o envolvimento da Rússia nas eleições presidenciais americanas. Foram momentos históricos na vida da televisão. Porquê? Pela gravidade das questões envolvidas, sem dúvida. Mas também pela seriedade de uma forma de gestão do fluxo televisivo em que a palavra não é instrumentalizada como automático “soundbyte”.
A diferença está longe de ser televisivamente banal ou culturalmente irrelevante. Desde logo, porque é uma diferença que contraria a noção corrente segundo qual o espectador (mas qual espectador?) só aceita frases breves, lineares, que não suscitem a necessidade de um mínimo de concentração e pensamento. Bem pelo contrário: assistimos a uma emissão em que triunfou o valor (comunicacional, político e simbólico) da palavra.
Ao mesmo tempo, facto pouco referido, as imagens e sons de Comey e dos senadores que o interrogaram envolveram uma derrota televisiva do próprio Trump que importa não minimizar — isto porque o actual presidente dos EUA tem sido um peão activo de uma cultura da brevidade sem responsabilidade (os intempestivos “tweets” com um máximo de 140 caracteres).
A performance de Comey e dos senadores está nos antípodas de tal cultura, afinal remetendo-nos para os valores clássicos de uma forma de habitar o mundo em que a precisão da fala e o rigor da palavra não são, de modo algum, elementos descartáveis. Escutar é ainda um valor.