terça-feira, maio 30, 2017

SOUND + VISION na FNAC [hoje]
— Eurovisão + Cannes


A Europa em dois festivais: o da Eurovisão da Canção (ganho por Portugal!) e o de cinema de Cannes — de regresso à FNAC, propomos uma viagem através de dois momentos marcantes da actualidade cultural e mediática.

* FNAC Chiado — hoje, 18h30.

Cannes + Haneke + silêncio

HAPPY END
O prodigioso filme de Michael Haneke ficou fora do palmarés de Cannes: vale a pena reflectir sobre tal ausência para além das questões de "gosto" — este texto foi publicado no Diário de Notícias (29 Maio), com o título 'Silêncio sobre Haneke'.

A ausência nas listas de prémios de Cannes do filme de Michael Haneke, Happy End, é um sintoma sobre o qual vale a pena reflectir. Tanto mais que tal ausência foi acompanhada pelo escasso entusiasmo da maior parte da crítica internacional. Não é fácil falar do assunto, quanto mais não seja porque a histeria “social” reinante tenderá a proclamar que o crítico que “gosta” apenas quer impor a sua visão aos que “não gostam”...
Seja como for, vale a pena lembrar que diversos filmes reflectiram as dores de uma Europa ferida pelo terrorismo. Sem esquecer que as notícias nos fazem saber também que a relação mórbida com a violência (no limite: a passagem ao acto) constitui um elemento poderoso na vida imaginária de alguns jovens. O assunto é delicado, aconselhando-nos a evitar qualquer tipificação imediata ou generalização moralista — em boa verdade, é um assunto em relação ao qual muitos de nós se sentirão hesitantes e perplexos, incapazes de articular um discurso seguro (eu, pelo menos, sinto-me assim).
O que me move nestas breves linhas é apenas o facto de esse ser, justamente, um dos temas fulcrais do filme de Haneke. A personagem da filha de 12 anos (interpretada pela admirável Fantine Harduin), para além da desarmante nitidez com que vive a sua pulsação suicida, é também protagonista de uma das mais generalizadas doenças sociais do nosso tempo. A saber: a redução do outro (familiar ou não) à condição de imagem. Numa cena que, a meu ver, entrará nos grandes momentos simbólicos da história do cinema, observamo-lo mesmo a harmonizar (?) o culto cego da imagem com a mais gélida indiferença pela morte. Não é preciso “gostar” de Haneke para pensar estas questões. Em todo o caso, reduzi-lo ao silêncio não será a mais brilhante solução jornalística e humana.

A IMAGEM: Raymond Depardon, 1979

RAYMOND DEPARDON
Borkou. Faya. Perfeitura
1979

segunda-feira, maio 29, 2017

CANNES: matéria e ilusão

FOTO: JL
A matéria de que se faz o cinema integra a ilusão como valor fundamental. De tal modo que a sua proliferação no quotidiano parece contaminar tudo com a promessa de um tempo outro em que todos seríamos personagens de um universo alternativo — uma montra da rue d'Antibes pode ser, assim, o mapa de uma galáxia de espelhos e reflexos.
[ SOUND + VISION / METROPOLIS ]

domingo, maio 28, 2017

Filme sueco vence Cannes

[ FESTIVAL DE CANNES ]
Assim vai o mundo: Ruben Östlund, realizador de The Square, achou por bem comemorar a sua Palma de Ouro pedindo ao público do Grande Auditório Lumière que... berrasse com ele!
Infelizmente para nós, o seu filme não passa de uma bem intencionada comédia de costumes sobre a "crise", conseguindo disfarçar os limites da sua visão através de alguma contenção formal e, em particular, de um leque de talentosos actores.
O júri da edição nº 70 de Cannes, presidido por Pedro Almodóvar, não só cometeu a proeza de deixar de fora do seu palmarés o objecto mais radical do certame — Happy End, de Michael Haneke —, como acabou por produzir uma lista de coisas dispersas que reflecte mal a pluralidade da selecção oficial (das menos estimulantes dos últimos anos, importa também acrescentar).
Para a história, foi assim:

Palma de Ouro
THE SQUARE, de Ruben Östlund

Prémio do 70º Aniversário
Nicole Kidman

Grande Prémio
120 BATTEMENTS PARA MINUTE, de Robin Campillo

Prémio de realização
Sofia Coppola, por THE BEGUILED

Prémio de interpretação masculina
Joaquin Phoenix, por YOU WERE NEVER REALLY HERE

Prémio de interpretação feminina
Diane Kruger, por IN THE FADE

Prémio do Júri
LOVELESS, de Andrey Zvyagintsev

Prémio de argumento (ex-aequo)
Yorgos Lanthimos e Efthimis Filippou, por THE KILLING OF THE SACRED DEER
Lynne Ramsay, por YOU WERE NEVER REALLY HERE

>>> Palmarés no site oficial do festival.

Gregg Allman (1947 - 2017)

Co-fundador de The Allman Brothers Band, teve uma carreira sempre ligada ao rock e às sonoridades do Sul dos EUA: Gregg Allman faleceu no dia 27 de Maio, na sua casa de Richmond Hill, Georgia, vítima de cancro no fígado.
Nascido em Nashville, Tennessee, Allman consagrou, com o irmão Duane Allmann (1946-1971), um estilo capaz de cruzar blues e rock, country e uma constante disponibilidade para as jam sessions — nesta perspectiva, podem considerar-se discípulos muito directos de Jerry Garcia e dos Grateful Dead. O seu primeiro disco a solo, Laid Back, surgiu em 1973; o derradeiro, Southern Blood, tinha lançamento previsto para o ano corrente. Este é um registo recente de um concerto em Macon, Georgia, interpretando Midnight Rider — a canção pertence a Idlewild South (1970), segundo álbum de The Allman Brothers Band.


>>> Obituário no New York Times.

Uma clarinetista no universo
de Philip Glass


Em 2008 a australiana era ainda para muitos (sobretudo deste lado do mundo) uma ilustre desconhecida quando se apresentou em disco num álbum que juntava uma versão para saxofone solista do Concerto Nº 1 para Violino e Orquestra de Philip Glass, completando o alinhamento do disco com The Protecting Veil de John Tavener e Where The Bee Dances de Michael Nyman. O talento que ali demonstrava, conciliando um sentido de precisão com as marcas pessoais de uma interpretação que parecia coisa feita sem esforço, natural como a respiração, cativou atenções e desde logo dela fez uma das autoras de uma das mais significativas abordagens à obra de Glass exterior à discografia oficial do compositor cuja obra teve o saxofone como presença determinante sobretudo na obra composta para o ensemble na sua fase minimalista.

É curiosamente de peças de uma etapa em que um sentido mais lírico tomou a alma da composição de Glass que Amy Dickson colhe as peças que chama a um disco que dedica, na íntegra, ao compositor. Editado pela Sony Classical, Glass junta à gravação já célebre do Concerto Nº 1 para Violino e Orquestra uma breve incursão pela música criada para o filme As Horas de Stephen Daldry – em Morning Phases e Escape – em momentos nos quais o saxofone partilha o protagonismo com o piano. O disco abre com uma leitura (magnífica) de uma versão para saxofone da Sonata para Violino e Piano, retomando ali – mas numa obra que reflete outras demandas de liberdade na música de Glass – um modelo de trabalho semelhante ao aplicado na gravação de 2008, afinal, a peça que abriu (e bem) todo este conjunto de abordagens.

Brian Eno juntou-se aos The Gift
para cantar “Love Without Violins”



O produtor e músico Brian Eno juntou-se em palco aos The Gift durante o concerto que a banda deu esta semana na sala londrina Bush Hall para ali cantar em conjunto com Sónia Tavares o tema Love Without Violins, que foi o single de apresentação do recentemente editado Altar.

A digressão internacional de apresentação do disco, depois das passagens pelo The Great Escape em Brighton e o Bush Hall de Londres dirige-se para a Maschinenhaus em Berlim, onde atuam a 30 de maio. Os The Gift estarão depois em Nova Iorque a 24 de junho. Este concerto está incluído na programação do Summer Stage, em pleno Central Park.

CANNES: próximo da loucura

Segundo a lei francesa, 12 dias é a duração máxima durante a qual um indivíduo pode ser internado sem consentimento num hospital psiquiátrico; passado esse período, numa sala de audiências do próprio hospital, tendo em conta os relatórios médicos, um juiz tem de avaliar se o internamento do paciente deve ou não ser prolongado. Raymond Depardon, fotógrafo da Magnum (lembremos as suas espantosas imagens dos conflitos no Líbano) e notável documentarista, filma, justamente, essas audiências. Na sua brevidade de menos de hora e meia, o seu filme, intitulado apenas 12 Dias, é um pequeno prodígio de uma verdade eminentemente física que, em última instância, nos aproxima da loucura e dos seus sobressaltos — sem atitudes panfletárias nem moralistas, eis um dos objectos mais singulares de todo o festival.

[ SOUND + VISION / METROPOLIS ]

sábado, maio 27, 2017

Na morte de José Manuel Castello Lopes

Gérard Castello Lopes e José Manuel Castello Lopes
[FOTO: Cinemateca]
Com a morte de José Manuel Castello Lopes, no dia 25 de maio, aos 86 anos de idade, desapareceu uma figura central na história da distribuição/exibição cinematográfica em Portugal — este texto foi publicado no Diário de Notícias (26 Maio), com o título 'Os caminhos da cinefilia'.

Conheci José Manuel Castello Lopes em 1972, quando a sua distribuidora inaugurou o cinema Londres com Morrer de Amar, um drama de André Cayatte protagonizado por Annie Girardot. Na altura, Filmes Castello Lopes era a marca dominante da distribuição/exibição, não só pela sua dimensão nacional, mas também pela vitalidade do seu catálogo.
Desde clássicos como E Tudo o Vento Levou e O Feiticeiro de Oz (ambos de 1939), até algumas das grandes referências das “novas vagas”, incluindo O Acossado (1959), de Jean-Luc Godard, e Blow Up (1966), de Michelangelo Antonioni, a empresa dispunha de um catálogo de enorme diversidade. Isto para além de nele se incluírem alguns dos fenómenos mais espectaculares da década de 60, como Cleópatra (1963) ou Música no Coração (1966). Quando se dá a explosão dos blockbusters americanos, a sua posição seria reforçada pelo facto de, em 1977, como detentora dos direitos dos filmes da 20th Century Fox, a Castello Lopes distribuir A Guerra das Estrelas (numa altura em que o marketing ainda não tinha imposto a “obrigação” de apenas usar a expressão Star Wars).
Com o seu irmão, o admirável fotógrafo Gérard Castello Lopes (1925-2011), José Manuel Castello Lopes conduziu, assim, os destinos de uma empresa ligada ao conhecimento cinematográfico e à formação cinéfila de várias gerações de espectadores. Dele não posso fazer qualquer retrato próximo, muito menos íntimo, mas permito-me recordá-lo como um genuíno conhecedor de cinema e também um sarcástico provocador dos críticos que “destruíam” os seus filmes... O humor com que o dizia, olhos nos olhos do seu interlocutor, é uma memória saborosa que vale a pena conservar, lembrando que o trabalho para dar a ver a pluralidade interna do cinema é sempre um valor insubstituível.

CANNES: Twin Peaks, 2017

O agente Dale Cooper, aliás, Kyle MacLachlan envelheceu — parecendo que não, passaram-se 25 anos desde a estreia de Twin Peaks. Agora, a apresentação da nova temporada de 2017 (dois episódios em sessão especial da selecção oficial) veio confrontar-nos com um desconcertante paradoxo: o tempo passou, mas a lógica interna de Twin Peaks permanece gloriosamente idêntica. Que é como quem diz: uma máquina ficcional capaz de desafiar qualquer modelo corrente de verosimilhança televisiva, em boa verdade abrindo para as glórias oníricas do cinematógrafo. Porquê cinematógrafo? Porque David Lynch nos volta a enredar na verdade mais primitiva do acto cinematográfico — não reproduzir o mundo, antes celebrar a impossibilidade de qualquer reprodução. Sejamos sinceros: tudo é ficção.

[ SOUND + VISION / METROPOLIS ]

sexta-feira, maio 26, 2017

CANNES: cubismo

FOTO: JL
Diane Kruger num dos ecrãs do Palácio dos Festivais (durante uma entrevista sobre Aus dem Nichts, de Fatih Akin). A sala grande (Lumière) fica para a esquerda da vidraça; o ecrã está colocado na varanda da sala de imprensa; em cima, a dança de Claudia Cardinale tutela a manhã, ainda nublada, de Cannes. Talvez que o festival seja também (seja mesmo sobretudo) esta paisagem cubista em que a sobrecarga de informações visuais gera um acontecimento, antes mesmo de celebrar os filmes (porventura, em alguns casos, ignorando-os). O certo é que Cannes consegue preservar este sentimento de que o cinema pertence a uma paisagem específica, insubstituível, em que o maravilhamento ainda é possível. Será mesmo um sentimento? Ou uma ideologia? Poderá a cinefilia ser a derradeira ideologia a acreditar na inocência?

[ SOUND + VISION / METROPOLIS ]

CANNES: Darya Zhovner

A star is born... diz a velha máxima herdada dos clássicos de Hollywood. Em todo o caso, fiquemo-nos pela dimensão mais básica: assistir ao nascimento de um actor ou actriz pode ser um deslumbrante evento. Cannes não tem sido alheio a tal dinâmica — é mesmo um cenário ideal para que tal aconteça. Registemos, por isso, o nome de Darya Zhovner, ainda ausente das listas de IMDb, Wikipedia e afins... No filme russo Tesnota (Closeness, na versão inglesa), ela é uma inigualável aparição, capaz de expor as convulsões de uma personagem que tudo quer fazer, incluindo desafiar os limites do amor, para libertar o irmão, raptado na zona norte do Cáucaso, em 1998. Retratando com surpreendente minúcia e intensidade a vida da comunidade judaica dessa zona, o filme possui uma radical dimensão trágica, revelando também um outro nome que convém colocar nas nossas agendas cinéfilas — cineasta russo, estreante nas longas-metragens, chama-se Kantemir Balagov.

[ SOUND + VISION / METROPOLIS ]

quinta-feira, maio 25, 2017

A IMAGEM: Jacopo Raule, 24-05-2017

JACOPO RAULE
Jessica Chastain em Cannes
W, 24-05-2017

CANNES: reencontro com Sharunas Bartas

Grande filme do lituano Sharunas Bartas na Quinzena dos Realizadores: Frost narra a odisseia de um par de jovens lituanos que, numa missão humanitária à Ucrânia, vão encontrar um universo de amarga decomposição das relações humanas e, enfim, das convicções políticas. Revelado entre nós no começo dos anos 90, pelo Fantasporto, Bartas continua a ser um exemplo modelar de um olhar cuja densidade política, justamente, passa por uma minuciosa caracterização das personagens e, muito em particular, pelas palavras que as aproximam ou afastam — enfim, este é um dos casos que gostaríamos de ter visto a concorrer para a Palma de Ouro...

[ SOUND + VISION / METROPOLIS ]

quarta-feira, maio 24, 2017

Lana Del Rey em Hollywood

O novo álbum de Lana Del Rey, Lust for Life, continua com data de lançamento por esclarecer... Mas há mais um teledisco, precisamente do tema-título, com colaboração de Abel Makkonen Tesfaye, aliás, The Weeknd — uma breve e fascinante deambulação romântica pelas letras, literalmente, de Hollywood nas colinas de Los Angeles.

CANNES: um filme maior

Chama-se L'Atelier e centra-se, precisamente, num atelier de leitura, no Verão, na zona de La Ciotat. Nas mãos de um cineasta banal, seria, talvez, uma crónica em que poderíamos reconhecer modelos correntes de caracterização "social" e "política". Esses modelos estão lá, sem dúvida — até porque o núcleo da intriga é a relação da professora de espírito liberal, parisiense, com um aluno que frequenta personagens ligadas à extrema-direita... O certo é que Laurent Cantet (Palma de Ouro em 2008, com A Turma) filma tudo isso com a precisão formal e a abertura de espírito de quem entende o cinema como um admirável instrumento de observação e interrogação do mundo à nossa volta. Fora dos prémios princípios (está na secção "Un Certain Regard"), L'Atelier é, muito simplesmente, um dos filmes maiores de Cannes/2017.

[ SOUND + VISION / METROPOLIS ]

segunda-feira, maio 22, 2017

CANNES: 70 festivais, 24 imagens

FOTO: JL
Grace Kelly, com o seu príncipe, em Cannes — a fotografia pode ser descrita como uma materialização exemplar do conceito de glamour, através e para além do tempo. Integra uma colecção de "24 imagens" escolhidas por Gilles Jacob, Pierre Lescure e Thierry Frémaux para evocar momentos emblemáticos de 70 anos de história do certame — estão expostas numa zona de passagem, algo escondida, no 4º andar do palácio, mas não deixam de testemunhar o fulgor de uma história tecida de momentos concretos e abstracções grandiosas.

[ SOUND + VISION / METROPOLIS ]

CANNES: Haneke, o europeu

Repare-se no extraordinário cartaz de Happy End, de Michael Haneke. Que nos dizem o cronómetro, em cima, e os símbolos circulares, em baixo? Que se trata de uma imagem de um telemóvel... Sim, mas importa sermos mais precisos: dizem-nos também que há um olhar por detrás desta imagem — e que esse olhar remete para um corpo e uma história. Esquematicamente, digamos que se trata de uma rede de personagens de uma burguesia de imagem cínica, clean e europeia, que vive cada vez mais assombrada pela degradação interior dos seus padrões de vida. Mais exactamente: pelo insidioso triunfo de uma cultura da morte, tecida de solidão e indiferença, capaz de contaminar novos e velhos. Aconteça o que acontecer, este é um dos momentos maiores da 70ª edição do Festival de Cannes — e pode valer a Haneke o recorde de uma terceira Palma de Ouro. 

[ SOUND + VISION / METROPOLIS ]

CANNES: Hazanavicius, o artista

Esperava-se o pior de Le Redoutable, retrato de Jean-Luc Godard, inspirado num livro de Anne Wiazemsky (que participou em La Chinoise, de 1967, e viveu um breve casamento com o cineasta). Pois bem, os resultados são ainda piores do que se esperava. Michel Hazanavicius, perito em maneirismo da moda "cultural" (foi ele que dirigiu O Artista), vê Godard como um boneco de desenho animado, a repetir incessantemente o mesmo gag (?). O resultado, além do desastre caricatural, consegue reduzir Maio 68 a uma colecção de "símbolos" mais ou menos anedóticos. Isto sem esquecer que Hazanavicius se dá ao luxo de imitar (?) alguns momentos godardianos, incluindo a cena de amor de Une Femme Mariée (1964) — aquilo que era um monumento de duas solidões passou a ser uma medíocre encenação de soft porn.

[ SOUND + VISION / METROPOLIS ]

sábado, maio 20, 2017

CANNES: Netflix, cinema & etc.

Quando este logotipo surgiu no início da projecção de Okja, do sul-coreano Bong Joon Ho, alguns dos jornalistas presentes no Grande Auditório Lumière manifestaram-se num misto de palmas, apupos e gargalhadas... Não seria exactamente um juízo de valor; antes o reconhecimento implícito de que o serviço de streaming Netflix ficará na história deste festival como um fundamental protagonista. A posição de protesto assumida pelos exibidores franceses — porquê passar filmes que não têm exibição prevista nas salas? — teve um eco indirecto nas palavras com que Pedro Almodóvar, presidente do júri oficial, lembrou que não fará muito sentido premiar obras que não vão surgir nos circuitos clássicos. Uma coisa é certa: através da sua própria produção (The Meyerowitz Stories, de Noah Baumbach, surgirá também na competição), a Netflix é uma das entidades que está a forçar o sistema global do cinema a repensar os seus modos de existência. Para o melhor ou para o pior.

[ SOUND + VISION / METROPOLIS ]

sexta-feira, maio 19, 2017

CANNES: directed by Robin Wright

Robin Wright está em Cannes para apresentar The Dark of Night, curta-metragem que marca a sua estreia cinematográfica na realização (já tinha dirigido vários episódios da série televisiva House of Cards). Trata-se de um exercício realmente curto (10 minutos, fotografados a preto e branco) que, no cenário de um típico diner, tenta recuperar um certo espírito nostálgico do filme noir — apesar da competência da execução, os resultados são algo esquemáticos e, no sentido mais limitativo, académicos. Na sua brevidade, o trabalho de Robin Wright ilustra um equivoco "modernista" cada vez mais frequente: o de que bastaria dominar os códigos técnicos de um modelo de narrativa para o actualizar e, por assim dizer, relançar. Not so easy...

[ SOUND + VISION / METROPOLIS ]

quinta-feira, maio 18, 2017

CANNES: paisagem urbana

Foto: JL
Actualmente, o horizonte de Cannes é definido pela figura dançante de Claudia Cardinale. Neste caso, trata-se da zona da entrada principal para o Grande Auditório Lumière, no Palácio — seja como for, a imagem radiosa do cartaz da edição nº 70 do certame está literalmente em todo o lado, desde os grandes espaços de exposição pública até à montra da mais modesta mercearia. Este é, de facto, um evento que transfigura toda a paisagem urbana, mobilizando milhares de jornalistas (ainda não se sabem números oficiais, mas este ano as acreditações devem ultrapassar os 4 milhares), produtores, distribuidores e exibidores de todo o mundo — 3450 é o número de títulos a serem exibidos nas sessões do Mercado do Filme. Daí a tradicional moral da história: Cannes é também o festival em que importa saber "escolher" o que não é possível ver...

[ SOUND + VISION / METROPOLIS ]

quarta-feira, maio 17, 2017

CANNES: memórias de 1946

O Festival de Cannes nasceu, em grande parte, como uma manifestação apostada em concorrer com a Mostra de Veneza, iniciada em 1938. Acontece que a primeira edição do certame da Côte d'Azur, prevista para Setembro de 1939, foi adiada devido à invasão da Polónia pelo exército de Adold Hitler, iniciada no dia 1 de Setembro (e, com ela, a Segunda Guerra Mundial). Tudo começou, então, em 1946 (20 Setembro / 5 Outubro) — estavam representados dezoito países na selecção oficial; este ano, são vinte e sete.
[ SOUND + VISION / METROPOLIS ]

terça-feira, maio 16, 2017

CANNES: Haneke x 3?

Não é uma questão estatística. Muito menos um recorde futebolístico para suscitar a gritaria de massas ululantes. Mas é um facto objectivo: Michael Haneke pode tornar-se o primeiro cineasta a conquistar três Palmas de Ouro do Festival de Cannes. Na 70ª edição do certame (17-28 Maio), ele apresenta Happy End, com Isabelle Huppert, Tobey Jones, Matthieu Kassovitz e Jean-Louis Trintignant, tendo já arrebatado duas vezes o prémio principal: em 2009 e 2012, respectivamente com O Laço Branco e Amor. Em cena, desta vez, está uma família que vive na zona de Calais, próximo do enorme campo de refugiados que ficou conhecido como a "selva"...

[ SOUND + VISION / METROPOLIS ]

segunda-feira, maio 15, 2017

"Little Girl Blue" [canções]

Janis Joplin
Little Girl Blue
The Woodstock Experience (1969)


Baptista-Bastos, cinéfilo

Baptista-Bastos e Belarmino Fragoso
LISBOA, 1964
Importa lembrar a dimensão cinematográfica da obra de Baptista-Bastos — este texto foi publicado no Diário de Notícias (14 Maio), com o título 'A herança cinéfila de Baptista-Bastos'.

Ao ler, ouvir e ver os ecos mediáticos do falecimento de Baptista-Bastos (dia 10 de Maio, contava 83 anos), não pude deixar de reparar na sistemática omissão das componentes cinéfilas da sua trajectória criativa. Não é minha intenção fazer o balanço de todas as notícias que evocaram a sua obra (muitas me escaparam, por certo). Em todo o caso, confunde-me o facto de a sua fundamental contribuição para um clássico das novas vagas europeias — Belarmino (1964), de Fernando Lopes — estar, assim, ausente da memória jornalística.
A falha jornalística constitui um mero detalhe no apagamento da história do cinema português na memória colectiva: toda a gente sabe que, em 1966, Portugal conquistou o terceiro lugar no Mundial de Futebol; quase todos os cidadãos ignoram que, dois anos antes, Fernando Lopes assinava um dos títulos mais emblemáticos da fascinante revolução de linguagens que o cinema europeu estava a viver.
Belarmino é o retrato de Belarmino Fragoso, pugilista de glória efémera que o filme regista e encena como símbolo de uma portugalidade em crise. O nome de Baptista-Bastos surge inscrito no genérico (“colaboração técnica e artística”), a par de Manuel Ruas e Fernando Matos Silva. Mais concretamente: é a voz de Baptista-Bastos que escutamos, em off, fazendo perguntas a Belarmino, numa aliança estética e ética do olhar cinematográfico com a demanda jornalística.
Ainda mais esquecido parece estar o facto de Baptista-Bastos nos deixar um importante legado de escrita sobre cinema, com destaque para o ensaio O Cinema na Polémica do Tempo, publicado em 1959. Ele foi, de facto, alguém que sempre resistiu a qualquer padrão de “especialista” literário, olhando o mundo à sua volta como uma contínua colisão de linguagens em que os filmes são objectos essenciais. Além do mais, em Belarmino, o cineasta e o escritor encontravam-se numa comovente cumplicidade: a de viverem a cidade de Lisboa como o cenário romanesco de um desejo utópico para sempre instalado nas margens do impossível.

"Amar pelos Dois" em desenho animado

Os ecos da vitória de Salvador Sobral no Festival da Eurovisão também já chegaram ao cinema de animação — eis uma elegante proposta do colectivo Creativehole, com realização de Ryan Woodward.

domingo, maio 14, 2017

"Rebel Heart Tour" em DVD e Blu-ray

O filme da 'Rebel Heart Tour' vai, finalmente, ser editado em DVD e Blu-ray — Madonna anunciou o respectivo lançamento para o dia 15 de Setembro.
Transmitido em Dezembro de 2016, pela Showtime [trailer], o filme é co-realizado por dois velhos aliados de Madonna, Danny B. Tull and Nathan Rissman, baseando-se, no essencial, nos concertos de Sydney, Austrália, em Março de 2016. Para além dos materiais de bastidores, será possível descobrir, por exemplo, versões acústicas de Like A Prayer, Secret e Don't Tell Me. Em simultâneo, chegará às lojas um CD duplo, com 22 temas da digressão.

As canções de Terrence Malick

Terrence Malick e Rooney Mara
— rodagem de Song to Song
O cinema de Terrence Malick chegou a um ponto máximo de depuração: Song to Song aí está, envolvendo-nos com o seu poder encantatório — este texto foi publicado no Diário de Notícias (11 Maio), com o título 'Terrence Malick filma um carrossel de palavras ditas e confissões adiadas'.

O novo filme de Terrence Malick, Música a Música, acontece em ambientes marcados pelas mais diversas vibrações musicais — o pano de fundo é o célebre South by Southwest, festival anual da cidade de Austin, no Texas, em que os inúmeros concertos servem de pretexto para múltiplos eventos ligados à música (cinema, video, novas tecnologias, etc.). Seja como for, é pena que, para o lançamento português, não tenha sido adoptada uma tradução literal do título original, Song to Song: esta é, de facto, uma viagem de muitas emoções vivida momento a momento, “canção a canção”.
As vivências das personagens são-nos apresentadas como pequenas “canções” de estranha e tocante intimidade. E não só porque muitos temas são escutados na banda sonora (Bob Dylan, Die Antwoord, Iggy Pop, etc.). Também porque cada situação surge vivida e encenada como uma variação sobre uma componente específica — apetece dizer: uma melodia — da vida desta ou daquela personagem. A certa altura, assumindo o seu próprio papel, Patti Smith surge mesmo a dizer que seria capaz de tocar indefinidamente um determinado acorde na sua guitarra... Porquê? Porque, como na vida de qualquer um, a repetição das mesmas notas pode abrir para as mais inesperadas revelações.
Assim é a visão de Malick: um carrossel de encontros e desencontros, gestos consumados ou suspensos, palavras ditas, confissões adiadas. Para além da indústria das canções, dos concertos e da música em geral, aquilo que liga as personagens — em especial o trio interpretado pelos magníficos Michael Fassbender, Rooney Mara e Ryan Gosling — pode definir-se como um impasse identitário. Cada um deles duvida, afinal, da contundência do seu próprio desejo. Será esse, aliás, um dos elementos nucleares do universo de Malick: cada vez que se desenha um elo amoroso entre dois seres humanos, instala-se uma incerteza, ao mesmo tempo afectiva e intelectual, que faz com que qualquer utopia de felicidade se desvaneça num assombramento à beira do pânico.

A natureza humana

Nada disto é novo, como é óbvio. Ou melhor: se é verdade que este é um filme que nos surpreende pela absoluta singularidade dos seus momentos dramáticos, não é menos verdade que nele deparamos com as marcas de uma experimentação, de uma só vez temática e formal, que Malick começou em 2011, com o aclamado A Árvore da Vida — podemos mesmo dizer que Song to Song funciona “apenas” como um capítulo que poderia ser integrado, com total pertinência e harmonia, na estrutura narrativa de A Árvore da Vida.
A natureza humana, seus enigmas e contradições, é o núcleo temático da obra de Malick — eis uma definição tão objectiva quanto discutível. Objectiva porque, de facto, os elementos naturais se impuseram nos seus filmes como paisagem decisiva das convulsões das personagens: o notável trabalho do director de fotografia Emmanuel Lubezki tornou-se mesmo indissociável de tal processo criativo. Discutível porque a natureza acaba por se revelar contra qualquer “naturalidade” ou “naturalismo”: cada imagem convoca-nos como uma espécie de símbolo de um alfabeto desconhecido, uma vinheta breve celebrando os mistérios do comportamento humano.
Será precipitado julgar que tal visão se esgota num qualquer “formalismo” dos filmes e do cinema. Malick é mesmo, hoje em dia, um dos cineastas mais puros na resistência à encenação dos seres humanos através de um qualquer conceito de eficácia ou performance. Neste filme, em particular, a sua ternura cruel rejeita o “liberalismo” das narrativas dominantes, expondo a solidão radical de cada um — o seu génio condena-o a ser um cineasta maldito.

sábado, maio 13, 2017

A IMAGEM: Gérard Castello-Lopes, 1956

GÉRARD CASTELLO-LOPES
Lisboa, Portugal
1956

Uma estrela pop [citação]

>>> [...] E porque não? Ele é uma estrela pop. "Ele é o Papa do povo, vem ao encontro dos pobres e das pessoas que mais precisam", dizia José, que veio da Nazaré com a mulher, Maria Alzira, ambos com mais de 70 anos e que às 10.00 já estavam sentados junto às grades do Santuário. Uma estrela pop capaz de pôr uma multidão em êxtase, aos gritos, como se viu à tarde, quando chegou ao Santuário pelas 18.15. "Vem peregrino da esperança, vem peregrino da paz", era o cântico da receção, acompanhado por lenços brancos agitados no ar. E que agora, apenas com a sua presença, põe uma multidão em silêncio e convida à introspeção para a bênção das velas. Não há números oficiais mas há a certeza de que ali não cabe mais ninguém. Encontrões. Apertões. Uma hora antes da cerimónia da noite já era impossível circular no Santuário.
[...]
José António Dias, empresário de 58 anos, não veio em nenhum grupo. É um peregrino sozinho, vindo de Alhandra e traz uma T-shirt branca com letras vermelhas que dizem: "I love Pope Francis". José António não é devoto absoluto de Fátima - "Não sei se a Nossa Senhora apareceu aos pastorinhos mas sei que este local tem uma energia especial. Alguma coisa aconteceu aqui" - mas acredita que Francisco "é o único líder político que poderá fazer alguma coisa positiva pelo mundo". Talvez até possa fazer alguma coisa pelo Benfica diz, entre risos: "Neste 13 de maio podemos juntar as duas religiões, seria fantástico celebrar o campeonato neste ambiente." Se tudo correr bem, depois da visita do Papa, a rotunda dos Peregrinos voltará a encher-se, mas de adeptos de blusa encarnada. "A GNR diz que só vamos poder ocupar o passeio mas pode ser que não..." diz, esperançosa Carla Anjos, que espera servir muitas imperiais esta noite na Casa do Benfica, junto à rotunda dos Pastorinhos, ou, como lhe chama "a rotunda do Marquês de Fátima".

MARIA JOÃO CAETANO
in 'Ele é uma estrela pop, "ele é o Papa do povo"'
Diário de Notícias, 13 Maio 2017

sexta-feira, maio 12, 2017

Harry Styles, opus 1

As mais clássicas matrizes pop constituem uma espécie de padrão de vida a que é sempre possível regressar — como quem reafirma uma identidade que, favorecida ou não pelas modas, persiste na sua candura, depuração e clareza. Não sei se alguma vez diremos isso, com convicção, a propósito dos One Direction, precisamente um desses fenómenos cujas performances surgiram sempre enredadas na histeria da sua própria moda. O certo é que o primeiro álbum a solo de um dos seus elementos, Harry Styles, aí está, celebrando uma pop de eloquente e contagiante simplicidade.
Estará aqui o princípio de uma trajectória capaz de superar o ruído efémero dos hits? Ninguém sabe. A começar pelo próprio, por certo, nos seus 23 anos de serena demarcação dos muitos clichés que assombram a juventude — a pose da capa envolve fuga à imagem ou desejo de introspecção? Seja como for, vale a pena escutar este cartão de visita que, para evitar confusões, se chama tão só Harry Styles.
Eis duas interpretações em ambiente televisivo: Ever Since New York, no Saturday Night Live, e Sign of the Times, em The Graham Norton Show.



A IMAGEM: Diego Velázquez, c. 1650

DIEGO VELÁZQUEZ
Retrato de Inocêncio X
c. 1650

A IMAGEM: Francis Bacon, 1953

FRANCIS BACON
Estudo a partir do retrato
do Papa Inocêncio X, por Velázquez

1953

A IMAGEM: Yousuf Karsh, 1979

YOUSUF KARSH
João Paulo II
1979

Recriando as músicas de Miyazaki

Chama-se Andrei Eremin — é um produtor australiano que tem o gosto de recriar, remisturar e transfigurar as mais diversas matérias musicais. Agora, adoptando o nome de Ghosting, apostou em fazer um álbum tendo como base as bandas sonoras dos filmes do mestre da animação japonesa, Hayao Miyazaki — o título define todo um programa: Reimagining Miyazaki. Eis o depurado encantamento do tema One Summer, a partir de A Viagem de Chihiro (2001).

quinta-feira, maio 11, 2017

Metropolis # 49

Alien: Covenant, novíssimo capítulo da saga criada por Ridley Scott em 1979, é o tema de capa da edição nº 49 da revista Metropolis. As celebrações de Star Wars na Florida, o regresso dos filmes do mestre japonês Kenji Mizoguchi e uma entrevista com João Canijo, a propósito do seu Fátima, são alguns dos destaques — sem esquecer uma antecipação dos muitos títulos programados para todas as secções do Festival de Cannes. Para ler, online.

A IMAGEM: Irving Penn, 1972

IRVING PENN
Cigarettes nº 34, New York
1972

"Money" [canções]

Pink Floyd
Money
The Dark Side of the Moon (1973)


quarta-feira, maio 10, 2017

"Billions" — a circulação do dinheiro

BILLIONS: Damian Lewis e Paul Giamatti
"Mercados" financeiros? "Mercados" e mais "mercados"... Já não há pessoas? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (7 Maio), com o título 'Os “mercados" e as suas narrativas'.

De que falamos quando falamos dos “mercados” financeiros? A resposta parece evidente, quanto mais não seja porque todos os dias, em todo o espaço mediático, as suas actividades são amplamente referidas — somos mesmo tratados como iluminados especialistas dos valores, circuitos, conversões e reconversões das moedas de todo o mundo.
Apesar disso (ou por causa disso mesmo), seria interessante avaliar qual a percepção dominante desses mesmos “mercados”. Colocando a questão de forma mais básica: até que ponto, e de que modo, o cidadão comum compreende os labirintos através dos quais o dinheiro circula?
Se outros méritos não tivesse, a série Billions (TV Séries) serviria, pelo menos, para expor os limites da informação financeira que domina o espaço mediático. Porquê? Porque todas as atribulações inerentes aos movimentos financeiros são encenadas, não em função de abstracções técnicas, antes apresentando pessoas de carne e osso.
Billions valoriza o factor humano, seguindo duas personagens emblemáticas: Bobby Axelrod (Damian Lewis), um gestor de fundos cujo cumprimento da lei é, por assim dizer, elegantemente perverso, e Chuck Rhoades Jr. (Paul Giamatti), o procurador de Nova Iorque apostado em desmontar o seu império. Aliás, há no seu confronto qualquer coisa de um velho western, devidamente pontuado por uma terceira e decisiva personagem: a mulher de Chuck, Wendy Rhoades (Maggie Siff), psiquiatra da empresa de Bobby cuja fundamental função é consolidar a performance dos respectivos empregados.
Lembremos o óbvio: Billions não é, nem pretende ser, uma tese universitária. Acontece que o poder de uma narrativa se mede também pela sua capacidade de discutir a ilusória transparência do real. Em tempos de inflação informativa, a reflexão sobre a abordagem meramente “técnica” dos movimentos financeiros afigura-se mesmo um fascinante desafio narrativo tanto para cinema como para televisão.
Não é muito popular dizê-lo, mas têm sido frequentes os casos em que as narrativas audiovisuais arriscam encarar e pensar a complexidade dos grandes fenómenos colectivos, muito antes de o espaço mediático nos servir tal complexidade em forma de “obrigatória” catástrofe. Billions pode ser um bom exemplo. Como foi, em 2010, o filme A Rede Social, de David Fincher, sobre Mark Zuckerberg e o nascimento do Facebook. Agora que as boas consciências políticas descobriram que é preciso reflectir sobre o poder social do Facebook, importa perguntar: ninguém reparou no filme de Fincher?

Baptista-Bastos (1934 - 2017)

>>> A nossa sociedade está a desmoronar-se e ninguém lhe acode. Os laços sociais estão a desaparecer, substituídos por um sistema de valores em que impera a vacuidade, o poder da «competitividade» como força motriz - e não é. Há tempo para tudo, diz o Eclesiastes. Mas a verdade é que os «tempos» foram pulverizados pela urgência de não se sabe bem o quê. A frase mais comum que ouvimos é: «Não tenho tempo para»; para quê? A correria mina as relações de civismo e de civilidade; está a roer os alicerces da família; a família deixou de ser o núcleo das nossas próprias defesas; e vamos perdendo o rasto dos nossos filhos, dos nossos amigos, dos nossos camaradas, dos nossos companheiros. A azáfama nos locais de trabalho é o sinal das nossas fragilidades e dos nossos medos. Estamos com medo de tudo, inclusive de confiar em quem, ainda não há muito, seríamos capazes de confidenciar o impensável.

BAPTISTA-BASTOS
in Jornal de Negócios
20 Nov. 2009

A arte de escutar era uma das mais difíceis posturas humanas, por certo humanista, que podíamos aprender com Baptista-Bastos. Entenda-se: a capacidade de suspender o seu discurso para que o interlocutor pudesse explicitar o seu — mesmo que, no instante seguinte, ele avançasse com uma visão visceralmente diferente.
Talvez por isso, nos seus livros, da crónica ao romance, passando por todos os géneros híbridos — para ele, o jornalismo era, afinal, uma forma superior de romanesco —, encontramos a capacidade de sentir o aqui e agora, nunca anulando as réstias de utopia que o real ainda pode acolher. O Secreto Adeus (1963), Cão Velho entre Flores (1974), Elegia para um Caixão Vazio (1984), Um Homem Parado no Inverno (1991) ou O Cavalo a Tinta da China (1995) são exemplos modelares desse trabalho de incessante observação e denodada narrativa. Nesta perspectiva, podemos dizer que Baptista-Bastos foi um admirável observador do tempo e dos poderes cruéis do seu carácter inexorável, relançando incessantemente o "quem sou eu?" que nos afasta e aproxima do nosso semelhante.
Sem dúvida por isso, ele foi também um genuíno cinéfilo, aliás autor de um livro essencial na nossa tão reduzida "literatura-sobre-cinema": o bem chamado O Cinema na Polémica do Tempo (1959). É a sua voz, convém não esquecer, que escutamos a interrogar Belarmino Fragoso nesse filme emblemático das novas vagas europeias que é Belarmino (1964), de Fernando Lopes — era também um filme em que aprendíamos como a arte de documentar o real dos outros envolve sempre uma introspecção silenciosa, mais ou menos clínica, por certo magoada.
Armando Baptista-Bastos nasceu em Lisboa, a 27 de Fevereiro de 1934; faleceu em Lisboa, a 10 de Maio, depois de um internamento de mais de um mês no Hospital de Santa Maria — contava 83 anos.

>>> Um extracto de Belarmino, com o protagonista a responder às perguntas de Baptista-Bastos; e uma emissão do programa Ler +, Ler Melhor (2011), da RTP, com depoimento de Baptista-Bastos sobre Carlos de Oliveira.




>>> Obituário no Diário de Notícias.

terça-feira, maio 09, 2017

"Same Old Blues" [canções]

Captain Beefheart
Same Old Blues
Bluejeans & Moonbeams (1988)


Colonialismo & utopia

Como revisitar a ideologia colonial de há 100 anos? A resposta de A Cidade Perdida de Z tem tanto de académico como de sugestivo — esta nota foi publicada no Diário de Notícias (27 Abril).

Eis uma evocação plena de sugestões simbólicas e, na verdade, de envolvente dimensão utopista — A Cidade Perdida de Z, de James Gray, é mesmo um épico pouco comum nestes tempos de blockbusters inter-galácticos. Nas primeiras décadas do século XX, a saga do britânico Percy Fawcett, procurando uma civilização ignorada no coração da Amazónia, corresponde, afinal, a uma conjuntura histórica em que a Europa colonialista se redime na revelação de “novos mundos”.
O caso de Fawcett é tanto mais revelador quanto o seu discurso envolve uma crença absoluta nas possibilidades de uma aproximação científica contaminada pelo mais cândido humanismo. A admirável direcção fotográfica de Darius Khondji ocupa, por isso, um lugar central nesta evocação, em todo o caso, algo presa das convenções mais ou menos televisivas da “reconstituição” histórica.

segunda-feira, maio 08, 2017

"Blade Runner" — regresso ao futuro

Passaram-se 35 anos desde a estreia de Blade Runner (1982), de Ridley Scott. Está, finalmente, agendado para Outubro o regresso dessa saga de culto, projectando-nos num novo futuro, aliás identificado no título: Blade Runner 2049 (recorde-se que, no original, a acção se situava em 2019).
Desta vez, há um novo oficial (blade runner) da polícia de Los Angeles, interpretado por Ryan Gosling — ao investigar uma ameaça letal para os seres humanos, é levado a reencontrar Rick Deckard (Harrison Ford, retomando a sua personagem), desaparecido há trinta anos. O nome de Scott reaparece como produtor executivo, pertencendo a realização a Denis Villeneuve.

Rita Redshoes: todos os rostos

A canção chama-se Mulher e pode ser definida como um panfleto sem vícios panfletários. Através de uma metodologia muito simples, a sua simbologia diz-se através de muitos rostos, mulheres e homens, levando-nos a reconhecer que, em boa verdade, todos os rostos podiam integrar tão singela cerimónia figurativa e musical — um pequeno grande acontecimento capaz de se demarcar da saturação audiovisual em que nos obrigam a viver, sentindo e fazendo-nos sentir que ainda é possível olhar e escutar.
Mulher pertence ao álbum Her, opus 4 de Rita Redshoes, que partilha a autoria do teledisco com André Tentúgal. Para além da cantora, e de acordo com a lista oficial, estão presentes (por ordem alfabética): Alice Medeiros, Ana Bacalhau, Ana Borges, Ana Brandão, Ana Castro, Ana Ferreira, Carlos Vaz Marques, Carolina Roque, Catarina Duarte, Catarina Furtado, Diana Silva, Elsa Silva, Frederica Lobo, Gil Marques, Ivo Canelas, Jessica Viseu, João Catarino, Lídia Matias, Manuel Lucas Rosa, Manuel Marques, Manuela Silva, Mariana Rodrigues, Marisa Silva, Marta Duarte Almeida, Marta Godinho, Matilde Fidalgo, Nica Guerra, Paulina Xará Dias, Rita Blanco, Rita Bulhosa, Senhor Vulcão.

França — o estado das coisas

Le Point
Esta imagem, e a sua pergunta (que presidente será Emmanuel Macron?), transporta o mais dramático realismo político dos nossos tempos. De facto, passámos os dias a ouvir quase todo o mundo mediático, a começar pelas infinitas redundâncias televisivas, a proclamar as diferenças óbvias entre Emmanuel Macron e Marine Le Pen e, afinal, não sabemos "que presidente" será o presidente eleito.
Reconhecer a nossa perplexidade não envolve nenhum branqueamento da demagogia populista de Le Pen. Muito menos qualquer demonização de Macron em nome, por exemplo, dessa "inocência" endémica de uma esquerda que, em situações deste género, consegue sempre rasurar a complexidade da história para se apresentar como o garante de uma "purificação" sem alternativa.
Acontece que, justamente, a eleição de Emmanuel Macron expõe no coração do real um enunciado que, entre nós, bem conhecemos desde as convulsões de 1974 — um enunciado que direitas e esquerdas, em amena e irresponsável cumplicidade, sempre se empenharam em recalcar. A saber: a própria dicotomia direita/esquerda é insuficiente para descrever os gestos políticos, seus contextos e potencialidades.
É por isso que, neste dia, importa não nos ficarmos pelo cruel assombramento que nos faz perceber que o fenómeno da Frente Nacional transcende a derrota de Le Pen, sendo um dado que, em nome do mais estrito pragmatismo, não podemos ignorar para lidar com o estado das coisas. Ao mesmo tempo, devemos não ceder ao niilismo chic e lembrar que Macron se tornou, para já, a peça central e mais luminosa dessas coisas e do seu estado — do seu Estado, entenda-se.