segunda-feira, abril 24, 2017

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The Gift, Altar


É mais frequente vermos momentos de grande entusiasmo e renovação nas obras veteranas de artistas a solo do que nas de bandas com já uns longos anos de vida. De resto, é mais habitual vermos até os melhores discos de bandas nascerem entre as suas primeiras criações, quando muito aparecendo no quadro de alguma maturidade alcançada, ou seja, dentro de uma década de trabalhos. Mas há exceções, uma das mais notáveis tendo sido assinada pelos U2 (com primeiro single editado em 1979) quando, depois de na reta final da digressão Love Town – que surgiu depois de Rattle & Hum – terem avisado que se iam afastar por um pouco para sonhar tudo novamente, surgiram animados por novas demandas que começaram a expor na sua contribuição para Red Hot + Blue (numa versão magnífica de Night & Day) e depois aprofundaram não apenas entre os álbuns Achtung Baby (1991) e Zooropa (1993), como também no ainda mais exploratório Original Soundracks – Vol 1., disco assinado como Passengers, na verdade um coletivo que integrava não só os quatro elementos dos U2 mas também Brian Eno e que ali juntava ainda mais algumas contribuições, entre elas a de Howie B... Estes dois últimos nomes cruzaram-se já com a história de um outro quarteto. Chamam-se The Gift, e se em Howie B tiveram em 2001 (no álbum Film) o parceiro para levar a um outro patamar de definição a visão pop exuberante que antes tinham já materializado no hoje já mítico Vinyl (de 1998), em Brian Eno encontraram o parceiro para, tal como os U2 desejaram, poderem sonhar tudo uma outra vez.

Convenhamos que não deixariam de procurar novos rumos depois dos contrastes do díptico Explode (2011) / Primavera (2012) caso não se tivesse cruzado pelo seu caminho o músico que tem no seu currículo parcerias maiores não apenas com os U2 mas também David Bowie, Talking Heads, David Byrne (em dois magníficos álbuns assinados a meias) ou John Cale (e Wrong Way Up é mesmo um dos melhores discos da história da canção pop). Toda a obra dos The Gift sempre se fez de uma saudável sensação de inquietude não satisfeita, pelo que a cada disco foram sempre procurando rotas e destinos diferentes, mantendo firme a personalidade da composição de Nuno Gonçalves, a muito particular assinatura vocal de Sónia Tavares e todo um modus operandi que, se em 1998 deu que falar quando o “faça-você-mesmo” se revelou política de trabalho possível entre nós num plano com claras ambições (nacionais e internacionais), ainda hoje garante nas mãos dos quatro elementos do grupo a condução dos seus destinos.

É claro que trabalhar com Brian Eno fez a diferença. E aqui vale a pena notar que este não é um episódio “do acaso”, já que ao longo da sua discografia o grupo sempre procurou entre os (seus) colaboradores de sonho aqueles com quem quis trabalhar. E tal como Howie B foi seu parceiro em 2001 ou Ken Nelson (que trabalhou com os Gomez, Kings of Convenience e Coldplay) a eles se juntou para o álbum de 2011, para Altar Brian Eno foi sonho concretizado através de uma série de sessões de trabalho nas quais a parceria ganhou fôlego e coesão, mais adiante entrando em cena Flood (que curiosamente trabalhou com os U2 em Pop, ou seja, logo após os discos acima referidos), que foi o responsável pelas misturas. Trabalhando em conjunto com os The Gift, integrando-se entre o coletivo alargado – o que apresentam em palco – Brian Eno começou por escutar, comentar e acabou a agir não apenas como produtor mas como um corpo criativo na composição, na escrita, tocando (ouvimo-lo num festivo solo para teclas em Clinic Hope) e cantando (não só em Love Without Violins, mas também nos coros, notando-se clara a sua assinatura em What If...). A sua presença ajudou a definir um caminho para o entendimento entre o coletivo, lançando desafios segundo o seu método habitual, logo aí propondo um cenário de trabalho que, mesmo sob uma matéria prima familiar (as canções) acabou por abrir novas possibilidades. E essas tanto se materializaram na condução desafiante para levar a canção a formas diferentes (como em Love Without Violins, naquele contaste entre um incrível arranque tenso e obsessivamente repetitivo e um final libertador e luminoso), a aceitar referências novas (como os ecos africanos em Malifest que evocam o festim de acontecimentos sob ecos da música africana partilhados com os Talking Heads) ou toda uma nova paleta de cores nos timbres, que vincam afinidades aqui e ali com Bowie (o que não é nada estranho a uma banda que já fez uma versão de Absolute Beginers) ou até mesmo com os discos (pop) a solo de Eno.

A produção é atenta e cuidada, assegurando a mistura a visibilidade aos detalhes, facto ao qual contribui também uma maior contenção nos acontecimentos cénicos face a algumas gravações anteriores. As melodias e a voz asseguram depois a continuidade num disco que não é de todo uma rutura, mas antes um modo de reencontrar viço e entusiasmo, o que é coisa rara em bandas com mais de vinte anos vividos. Esse fulgor reencontrado resultou naquele que é, claramente, o melhor conjunto de canções que os The Gift alguma vez levaram a disco. E se Love Without Violins, Clinic Hope ou o irresistível Big Fish serviram de perfeitos cartões de visita, há no alinhamento ainda uma mão-cheia de singles potenciais, do festivo Malifest aos mais melancólicos Vitral (que é talvez aquela em que é mais evidente a presença de Brian Eno) ou Hymn To Her. Agora é a vez de, como manda a letra da canção, ser “peixe grande”... E há mar por aí à espera não só destas canções mas das que virão a seguir. Porque quando se sonha tudo de novo não se esgotam logo ali as ideias.