terça-feira, março 07, 2017

Warren Beatty:
o homem do envelope trocado

BULWORTH (1998), de e com Warren Beatty
Afinal, quem era aquela pessoa que abriu o envelope trocado dos Oscars? É tempo de repor o respeito pelo grande Warren Beatty — este texto foi publicado no Diário de Notícias (5 Março).

Receio que, por esse planeta fora, muitos espectadores tenham ficado a conhecer Warren Beatty como o homem que abriu o envelope errado na cerimónia dos Oscars... Menosprezando até a dificuldade de lidar com tão bizarra situação, houve quem proclamasse que não se poderia esperar outra coisa de um septuagenário (fará 80 anos no próximo dia 30)...
Confesso que algo em mim se indigna com tal caracterização do homem. E não necessariamente porque, apesar de termos ouvido dezenas de vezes a pronúncia correcta do seu apelido (“beití”), Beatty continuar a ser chamado de modo errado (“bíti”) — por mim, tenho a noção de que cometo muitos erros do género, mesmo com nomes anglo-saxónicos, e não será por aí que vem grande mal ao mundo.
Acontece que reduzir o nosso Beatty a um “palhaço” que se atrapalha com envelopes é escamotear o seu lugar emblemático entre as grandes figuras do cinema americano dos últimos 50 anos. Aliás, foi já há mais de meio século que se estreou como actor em Esplendor na Relva (1961), obra-prima do mais magoado romantismo em que contracenava com Natalie Wood sob a direcção de Elia Kazan.
Bonnie e Clyde (1967), com Faye Dunaway (a sua companheira na noite dos Oscars), é o título que tende a resumir a sua história cinematográfica. Ainda assim, quase sempre se esquece que ele foi essencial na utilização do seu poder enquanto actor/estrela para viabilizar a produção do filme dirigido por Arthur Penn (previamente recusado por vários estúdios de Hollywood).
O único Oscar que ganhou nem sequer foi como actor, mas sim realizador do prodigioso Reds (1981), fresco crítico dos tempos do envolvimento de John Reed (que ele próprio interpretava) com as miragens da Revolução Soviética. Ainda como actor/realizador, Beatty assinou Dick Tracy (1990), obra pioneira na abertura de novas relações com o universo da banda desenhada, e Bulworth (1998), uma visão da política e dos meios de comunicação cuja actualidade (temática e crítica) ficou omitida nas muitas notícias do envelope trocado... Isto sem esquecer que o seu filme mais recente, Rules Don’t Apply, sobre o milionário Howard Hughes, continua por estrear entre nós.
Como sempre, o problema não está nos graus de valorização (“bom” ou “mau”) do trabalho de Beatty. Está, isso sim, no facto de uma personalidade tão marcante em diversos momentos da história de Hollywood ser reduzida à proliferação de “tweets” e anedotas do Facebook... Com que resultado? O triunfo de um “humor” instantâneo e pueril, amante da ignorância.