sexta-feira, março 31, 2017

3 x Scarlett Johansson (3)

A chegada de Ghost in the Shell é pretexto para uma breve deambulação por alguns dos títulos marcantes na carreira de Scarlett Johansson — este texto foi publicado no Diário de Notícias (25 Março), com o título 'De musa de Woody Allen a estrela dos filmes da Marvel'.

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A partir de Match Point, a imagem “sexy” da actriz passou a ser uma componente da sua identidade no interior da indústria do “entertainment”: a Viúva Negra dos filmes da Marvel será mesmo a sua ilustração mais óbvia. E se é verdade que tais composições estão longe de constituir as proezas mais brilhantes da sua carreira, não é menos verdade que foi através delas que Johansson se consolidou como grande trunfo comercial de Hollywood.
Paradoxalmente, o seu papel mais “sexy”, ou mais subtilmente erotizado, aconteceu na ausência da imagem. Foi nesse filme visionário que se chama Her – Uma História de Amor (2013), escrito e dirigido por Spike Jonze. Nele se encena a relação de um desencantado escritor, interpretado por Joaquin Phoenix, que povoa a sua solidão através da interacção com o seu computador, dotado de um sistema operativo com inteligência artificial. O sistema responde pelo nome de “Samantha” e quem lhe dá voz é Johansson — raras vezes a pulsão amorosa e o desejo sexual foram tratados de modo tão vibrante e também tão “invisível”.
Numa calculada gestão de contrastes, a actriz tem sabido combinar os “blockbusters” da Marvel com projectos como o de Jonze, obviamente devedores de um radical espírito de independência. É o caso de Under the Skin/Debaixo da Pele, de Jonathan Glazer, assombrado e assombroso drama de ficção científica que surgiu em muitas listas dos melhores filmes de 2013, Salve, César! (2016), retrato cáustico dos bastidores de Hollywood assinado pelos irmãos Coen, ou ainda Rough Cut, comédia negra dirigida pela estreante americana Lucia Aniello, que deverá chegar às salas nos meses de Verão.
O seu curriculum inclui participações importantes na televisão (este ano, por exemplo, apresentou pela quinta vez o programa de humor Saturday Night Live), na área musical (lançou o álbum Anywhere I Lay My Head em 2008) e no teatro (em 2013, na Broadway, protagonizou Gata em Telhado de Zinco Quente).
Scarlett Johansson parece ser uma das derradeiras representantes de um modelo de “star”, de aparência frágil e admirável energia interior, cujas raízes estão na idade de ouro de Hollywood. Alfred Hitchcock gostaria, por certo, de filmar com ela. Vimo-la, aliás, no filme Hitchcock (2012), de Sacha Gervasi, sobre os bastidores da rodagem de Psico (1960), um dos títulos mais lendários do mestre do suspense — Johansson assumia a figura da actriz Janet Leigh e, mais do que uma interpretação, dir-se-ia uma reencarnação.

JUDAICA — Jerry Lewis [hoje]

Jerry Lewis? O cómico? Digamos apenas, para simplificar, que nos anos 60, no interior da grande máquina de Hollywood, Jerry Lewis foi o mais moderno dos modernos. O documentário Jerry Lewis - O Homem por detrás do Cómico (2016), de Gregory Monro, evoca a sua arte de forma tão sintética quanto elucidativa, contextualizando o fulgor de obras maiores como O Homem das Mulheres (1962) ou The Patsy (1964), hoje em dia algo esquecidas — ou como as convulsões da modernidade tiveram em Jerry Lewis um dos mais admiráveis protagonistas.
É uma proposta da Judaica - Mostra de Cinema e Cultura (com apresentação do autor deste post).

* JERRY LEWIS - O HOMEM POR DETRÁS DO CÓMICO
> Judaica: cinema São Jorge, dia 31, 19h30

quinta-feira, março 30, 2017

A IMAGEM: Melodie McDaniel, 1995

MELODIE McDANIEL
Sunday Best 1
1995

"Japonesices" na FNAC
— magazine SOUND + VISION (hoje)

GHOST IN THE SHELL (2017)
As reposições de filmes do mestre Kenji Mizoguchi (1898-1956) servem de pretexto a uma deambulação por algumas referências da cultura da japonesa, dentro e fora do Japão — isto na semana em que chega aos cinemas a nova versão de Ghost in the Shell, referência clássica do território manga.

* SOUND + VISION magazine
FNAC (Chiado), dia 30, 18h30

Inteligência Artificial — que futuro?

A ilustração, da autoria de Linda Buckley, condensa com inspirada concisão poética, o que está em jogo. A saber: as maravilhas da Inteligência Artificial estão a alterar a própria identidade humana.
Para o melhor ou para o pior? Escrito em finais de 2016, este artigo de Hope Reese, no site Tech Republic, faz o ponto da situação, inventariando as três "tendências" que, em 2017, poderão marcar o desenvolvimento da inteligência artificial: a sua crescente implantação social, a possibilidade de utilizações criminosas e as questões morais que suscita — vale a pena ler.

Michelangelo — "A Criação de Adão" (1508-1512)
CAPELA SISTINA, Vaticano
E. T. - O EXTRATERRESTRE (1982)
Steven Spielberg

quarta-feira, março 29, 2017

Claudia Cardinale dança em Cannes

Um belo símbolo de alegria e cinefilia — o cartaz oficial da 70ª edição do Festival de Cannes de 2017 apresenta Claudia Cardinale numa cândida pose dançante, registada num telhado de Roma, em 1959. Ironicamente, ninguém se lembra do nome do fotógrafo, como a própria actriz reconhece em declarações ao site oficial do certame: a autoria é da agência francesa Bronx e o baile está marcado para começar a 17 de Maio.

3 x Scarlett Johansson (2)

A chegada de Ghost in the Shell é pretexto para uma breve deambulação por alguns dos títulos marcantes na carreira de Scarlett Johansson — este texto foi publicado no Diário de Notícias (25 Março), com o título 'De musa de Woody Allen a estrela dos filmes da Marvel'.

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O ano de 2003 revelar-se-ia decisivo na superação da imagem infantil de Johansson, através de duas obras de sedutoras singularidades: Lost in Translation, de Sofia Coppola (lançado entre nós com o título bizarro O Amor É um Lugar Estranho), e Rapariga com Brinco de Pérola, evocação de uma musa do pintor Johannes Vermeer, com realização do inglês Peter Webber e direcção fotográfica do português Eduardo Serra (nomeado para o Oscar de melhor fotografia).
Ambos os filmes valeram-lhe nomeações para os Globos de Ouro da Associação de Imprensa Estrangeira de Hollywood. Não ganhou (aliás, nunca ganhou um Globo, não tendo qualquer nomeação para os Oscars). O certo é que o seu estatuto simbólico mudava: deixava os papéis de “eterna” adolescente e entrava nas convulsões da idade adulta. O encontro com Woody Allen faria o resto: Match Point (2005), Scoop (2006) e Vicky Cristina Barcelona (2008) definem um capítulo especial na trajectória de ambos, a ponto de haver quem tivesse sugerido que o realizador poderia ter encontrado uma nova musa para “ocupar” o lugar que já tinha pertencido a Diane Keaton e Mia Farrow.
As coisas não aconteceram assim, até porque, como o próprio Woody Allen esclareceu numa entrevista dada à MTV, em 2008, a participação de Johansson em Match Point teve algo de acidental (a primeira escolha fora Kate Winslet que, necessitando de um período de repouso, pediu para abandonar o projecto). Woody Allen reconheceu-a de imediato como “encantadora, brilhante e divertida”, doando-lhe uma personagem susceptível de transfigurar toda uma carreira — subitamente, Johansson emergia como uma mulher capaz de representar as nuances afectivas e os enigmas sexuais de uma relação adulta.

A IMAGEM: Douglas Kirkland, 1961

DOUGLAS KIRKLAND
Judy Garland
1961

terça-feira, março 28, 2017

Guimarães em tom "noir"

Ornamento & Crime, de Rodrigo Areias, reinventa o cinema "noir" através de um filtro português — este texto foi publicado no Diário de Notícias (26 Março), com o título 'Memórias cinéfilas em português'.

Quando falamos da nossa relação com as memórias cinéfilas, importa evitarmos qualquer saudosismo acomodado. De facto, o mundo à nossa volta aconselha mesmo a serenidade de um militante cepticismo. Vivemos num tempo em que apenas as linguagens do futebol — incluindo, precisamente, as suas memórias — são mediatizadas de forma automática (e automaticamente televisiva), enquanto as nossas relações com as imagens de outros domínios são cada vez mais fracas na paisagem audiovisual.
Daí que valha a pena regressar à pergunta básica. A saber: de que falamos quando falamos de memórias cinéfilas? É uma pergunta que, em boa verdade, acompanha a história dos filmes desde os tempos heróicos do Cinema Novo e, muito em particular, da Nova Vaga francesa. É também a pergunta que, agora, encontramos reformulada num filme português: Ornamento & Crime, de Rodrigo Areias.
Dir-se-ia que podemos definir a sua árvore genealógica recuando até 1965, evocando o esplendoroso Alphaville, de Jean-Luc Godard. Que acontecia aí? Uma revisitação da tradição do policial clássico de Hollywood — mais exactamente, do cinema “noir” —, com Eddie Constantine a assumir-se como herdeiro iconográfico e simbólico de Humphrey Bogart.
Agora, em Ornamento & Crime, há também um detective de olhar desencantado e gestos geométricos (interpretado por Vítor Correia) e um labirinto de crimes, homens implacáveis e mulheres fatais que, a pouco e pouco, tende para a mais pura abstracção estética, baralhando as coordenadas espaciais e temporais. Alphaville era rodado em Paris e projectava-nos num cruel futuro distópico; Ornamento & Crime vagueia por cenários de Guimarães (marcados pelo trabalho do arquitecto Fernando Távora), falando-nos de uma terra de exausto romantismo, ausente dos mapas conhecidos.
Eis um fenómeno realmente transversal: o cinema contemporâneo colhe nas memórias dos clássicos os sinais que lhe permitem repensar a sua própria actualidade, escapando a qualquer determinismo televisivo. Lembremos que essa é, afinal, uma atitude que marca títulos tão radicais como Cosmopolis (David Cronenberg, 2012) Vício Intrínseco (Paul Thomas Anderson, 2015) ou Aliados (Robert Zemeckis, 2016). Muito para além de qualquer atitude copista, o que tais filmes procuram é restabelecer alguma ligação do espectador com as marcas gloriosas do património cinéfilo, reinventando essas marcas a partir das sensibilidades e perplexidades do presente. Ornamento & Crime participa dessa lógica, falando e pensando em português.

segunda-feira, março 27, 2017

Que cultura? Que Europa?

A manchete refere a cultura como a matéria esquecida da campanha. A frase de introdução do artigo é perturbante:

>>> Numa eleição presidencial esmagada pelos negócios, as questões culturais, apesar de presentes nos programas, são varridas dos debates — uma incoerência num país em plena depressão identitária.

Dir-se-ia um desabafo amargo justificado pelo deserto cultural português. Mas não: são palavras e pensamentos, desencanto e cepticismo que nos chegam de França [Libération, 27 Março], em vésperas de eleger um novo Presidente.
Que o estrangeirismo da coisa não nos aquiete — uma Europa que não pensa a sua dinâmica cultural é, obviamente, um corpo cego em movimento que abandona a cultura nas mãos (e na crueldade) dos que não querem ser solidários e europeus. Como diz o título do editorial, numa amarga ironia cinematográfica, é uma Europa que deixa a cultura fora de campo.

3 x Scarlett Johansson (1)

A chegada de Ghost in the Shell é pretexto para uma breve deambulação por alguns dos títulos marcantes na carreira de Scarlett Johansson — este texto foi publicado no Diário de Notícias (25 Março), com o título 'De musa de Woody Allen a estrela dos filmes da Marvel'.

A história, a tradição e a própria moral do espectáculo ensinam-nos que os méritos de uma estrela de cinema não são um reflexo imediato dos números da sua contabilidade pessoal. Seja como for, o mais básico pragmatismo lembra-nos também que a dimensão de uma “star”, sobretudo no interior da máquina do cinema americano, não é estranho ao significado de tais números.
Scarlett Johansson, por exemplo: o seu nome surge em terceiro do lugar na lista das actrizes mais bem pagas ao longo do ano de 2016, editada pela revista Forbes, com um rendimento global de 25 milhões de dólares (cerca de 23,2 milhões de euros). Apenas superada por Jennifer Lawrence e Melissa McCarthy (em 1º e 2º, respectivamente), terá recebido 17,5 milhões por um único filme — Ghost in the Shell, adaptação de uma “manga” japonesa que estreia na próxima quinta-feira —, resultando outra importante fatia do seu rendimento de um contrato publicitário com a casa Dolce & Gabbana.
As aventuras mais ou menos fantásticas, inspiradas ou não na BD, tornaram-se mesmo uma marca forte da sua recente filmografia. Vimo-la, por exemplo, no “thriller” futurista Lucy (2014), dirigido pelo francês Luc Besson, ou ainda, desde Homem de Ferro 2 (2010), a assumir a personagem de Natasha Romanoff/Viúva Negra em várias aventuras de super-heróis com chancela da Marvel. Repetirá o papel em Avengers: Infinity War, agendado para 2018.
Ironicamente, nos primeiros tempos da sua carreira, parecia ser um banal fenómeno infantil, mais ou menos ligado à tradição iconográfica dos estúdios Disney. Em 1995, aos 11 anos de idade (nasceu a 22 de Novembro de 1984, em Nova Iorque), surgiu, por exemplo, no policial Causa Justa, no papel de filha do casal interpretado por Sean Connery e Kate Capshaw; dois anos mais tarde, integrava o elenco de Sozinho em Casa-3. Foi Robert Redford, na tripla qualidade de produtor, realizador e actor, que lhe ofereceu um primeiro papel consistente em O Encantador de Cavalos (1998), filme nostálgico dos grandes melodramas clássicos.

domingo, março 26, 2017

"A verdade morreu?"

A pergunta colocada pela revista Time (edição com data de 3 de Abril) não podia ser mais actual e perturbante. De facto, os célebres "factos alternativos", consagrados pela expressão já lendária de Kellyanne Conway e sustentados pelo exercício do poder por Donald Trump, não são meras imprecisões, acidentais ou perversas. Estamos perante uma reconfiguração da circulação da informação em que os valores mais nobres do jornalismo — e de todas as relações sociais — tendem a ser fagocitados por uma voragem política que, em última instância, visa a destruição das estruturas tradicionais da própria política.
É sobre isso que fala o fundamental artigo de Michael Scherer, sintomaticamente intitulado 'Será que o Presidente Trump consegue lidar com a verdade?'. No seu editorial, Nancy Gibbs, interroga-se mesmo sobre o modelo de relação que se estabeleceu (ou cortou) entre Trump e os americanos:

>>> Como cidadãos, é vital que sejamos capazes de acreditar no nosso Presidente; é também vital que saibamos aquilo em que ele acredita, e porquê. Este Presidente transformou uma coisa e outra num dramático desafio.

Futebol e árbitros [citação]

>>> Se virmos bem, para se ser campeão em Portugal não basta só termos o melhor treinador, os melhores jogadores e jogarmos o melhor futebol! Com esta pressão toda que por aí anda, com os vergonhosos debates televisivos que por aí se multiplicam, o factor decisivo é o árbitro.
(...) Condicionar o trabalho dos árbitros é aberrante. Há os bons e menos bons. O problema, no momento, é que estão a ser lançados ainda muito jovens para os jogos das equipas grandes. Se os mais experientes estão sujeitos a erro, que dizer destes? Vão ter uma formação distorcida… Mas, no geral, as coisas não são já como antigamente. Se pudesse falar, e eu estive no centro do furacão tantas e tantas vezes, contava histórias inimagináveis. Não tenho asas nas costas, ninguém as tem, mas houve uma altura em que tive vergonha de andar no futebol.

MANUEL JOSÉ
A BOLA, 26 Março 2017

sábado, março 25, 2017

A IMAGEM: Frauke Fischer, 2016

FRAUKE FISCHER
Barbara Magazine
2016

Eusébio — nem lenda, nem história

Eusébio - História de uma Lenda, filme de Filipe Ascensão, reduz as memórias do futebol a uma pobre antologia televisiva — esta nota foi publicada no Diário de Notícias (9 Março).

De que “lenda” se trata? Em boa verdade, de uma “canonização” da figura de Eusébio que, além de humanamente simplista, surge sustentada por breves depoimentos banalmente hagiográficos dos seus pares (Cristiano Ronaldo, Figo, Rui Costa, etc.). E que “história” se conta? Apenas uma colagem de registos de golos e mais golos que nem sequer cumpre os requisitos básicos de um rotineiro programa televisivo, sem informação precisa sobre cada jogo citado (com as mesmas imagens dos espectadores no começo da televisão em Portugal a servirem para “ilustrar” qualquer jogo).
O resultado é uma antologia de lugares-comuns sobre Eusébio, sustentada por uma música pomposa e redundante, incapaz até de avançar com qualquer sugestão de análise sobre as diferenças entre o futebol dos anos 60 e o que se pratica no presente.

sexta-feira, março 24, 2017

Zombies dançantes

Notícias de Los Angeles: OWSLA é o nome de uma editora que se dedica, em especial, à música de dança e ao hip hop, com derivações mais ou menos experimentais. HOWSLA serve de título a uma antologia da editora, com lançamento agendado para 5 de Maio. O seu cartão de visita é o tema I Want You, do DJ escocês Chris Lake, em teledisco com assinatura NORTON.
Digamos, para simplificar, que já há algum tempo não víamos um clip tão radical, e também tão sobriamente elegante, na encenação da proximidade da morte através da música — se os fantasmas de The Walking Dead dançassem, o resultado seria este.

quinta-feira, março 23, 2017

A IMAGEM: Super Bock, 2017

SUPER BOCK
Gastámos tudo em copos
22 Março 2017

Copos, mulheres, a Europa e as palavras

Jeroen Dijsselbloem e Jean-Claude Juncker
I. Leio nas notícias uma frase que, creio, importa reter. Tem a ver com as palavras proferidas por Jeroen Dijsselbloem, presidente do Europgrupo, considerando que os países do sul pedem ajuda depois de terem gasto "todo o dinheiro em copos e mulheres". Assim, Jean-Claude Juncker, presidente da Comissão Europeia, comentou a reacção do primeiro-ministro português, esclarecendo: "Relativamente às declarações que o presidente do Eurogrupo fez, e tendo em conta que o primeiro-ministro português, o meu amigo António (Costa), acaba de nos convidar a pedir ao senhor Dijsselbloem que se demita, gostaria de dizer numa frase que acredito que aquilo que o senhor Dijsselbloem parece ter dito não reflecte o que ele pensa no fundo".

II. Pasmo perante o silêncio ensurdecedor com que foi recebida esta explicação (?) de Juncker. Vivemos num ambiente "social" em que, por exemplo, se um modesto crítico de cinema se atreve a lembrar que os mecanismos de montagem do cinema de Alfred Hitchcock (em particular a aplicação do chamado "plano subjectivo") envolvem uma filosofia do espectáculo enraizada na interrogação crítica da moral do próprio espectador, tanto basta para que seja insultado na praça pública como um troglodita que só quer "complicar" aquilo que toda a gente "percebe"... Ao mesmo tempo, depois de Dijsselbloem nos reduzir a bêbedos e machistas, Juncker vem informar-nos que se trata apenas de uma avaliação errada da candura intrínseca da sua linguagem — e ninguém diz nada...

III. Decididamente, um dos problemas de fundo da Europa é a sua linguagem institucional — entenda-se: a consistência do seu discurso cultural, sendo a cultura não a ópera a passar no horário nobre das televisões, mas sim o sistema de valores que nos unem ou podem unir. É certo que a Europa é uma ideia admirável cuja defesa implica que não cedamos aos demagogos, de direitas e esquerdas, que apelam a uma espécie de exílio utópico do país. Em qualquer caso, será que tal visão implica que tenhamos chegado ao ponto em que, além de suportarmos a frivolidade irresponsável de alguns actores da cena política, tenhamos que decifrar aquilo que, no fundo, eles pensam? É muito simples resumir o problema: através daquilo que parece ter dito ou daquilo que pensa, Jeroen Dijsselbloem não pertence a nenhuma Europa em que possamos cultivar a difícil arte do diálogo — mesmo que Jean-Claude Juncker nos queira transformar em semiólogos do intolerável.
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* NOTA - Quando Portugal integrou a Europa [1985], houve quem fosse rotulado de perigoso "intelectual" por lembrar duas dúvidas de fundo, inerentes à dinâmica global das instituições europeias. Por mera pedagogia, vale a pena recordar tais dúvidas. A saber: primeiro, uma união económica é essencial, mas não basta, para consolidar uma união política; depois, nenhuma união económico-política se organiza, enriquece e diversifica sem pensar o espaço cultural e os laços que nele, ou através dele, se podem estabelecer.

À espera do terceiro álbum dos San Fermin

Os magníficos San Fermin, banda novaiorquina do multifacetado Ellis Ludwig-Leone, têm um novo álbum, Belong, com lançamento marcado para 7 de Abril. Será o terceiro, depois de San Fermin (2013) e Jackrabbit (2015) — eis a canção-título em formato lyric video.

quarta-feira, março 22, 2017

Ecrãs [citação]

>>> Pela minha parte, escolhi proteger-me o mais possível. Nem tenho de me forçar a isso, detesto tudo o que abole a fronteira entre o público e o privado. É assim mesmo, está na minha natureza, direi mesmo: é a minha norma. Sinto-me aterrorizada pelas redes sociais e os rumores que propagam. Detesto a exposição íntima. Nunca abri a minha porta, para uma reportagem, às câmaras de televisão. Não faço tweets, mostro tanto menos as minhas fotografias de família ou de férias no Facebook quanto não tenho conta no Facebook, e limito ao estrito mínimo as minhas trocas informáticas. O que há de odioso no mail, é que é intrusivo e exige uma resposta imediata. Como se eu passasse os meus dias em frente de um ecrã! O meu trabalho consiste em estar num ecrã, não em frente.

CATHERINE DENEUVE
"Dieu sait que j'adore tourner, mais..."
L'Obs, 19 Março 2017

Basebol em Boston

É bem verdade que o basebol é um desporto distante dos nossos hábitos — e até, para muitos de nós, do mais básico conhecimento. O que, entenda-se, não impede que o seu visual nos seduza de forma muito particular. Um bom exemplo desse poder de sedução poderá ser o portfolio de Stan Grossfeld, do jornal The Boston Globe, dedicado aos treinos da equipa dos Red Sox — ao todo, são 19 imagens, disponíveis no blog fotográfico do jornal, 'The Big Picture'.

terça-feira, março 21, 2017

Bill Evans inédito

Bill Evans (piano), Eddie Gomez (contrabaixo) e Eliot Zigmund (bateria): em todo o seu esplendor, reencontramos The Bill Evans Trio no recentíssimo lançamento de um concerto nunca editado. O álbum chama-se A Monday Evening e foi gravado a 15 de Novembro de 1976, no Union Theater, em Madison, Wisconsin — eis Time Remembered.


>>> Site oficial de Bill Evans.

Dois cineastas no MAAT

Cinema conjugado em forma de exposição, ou a saga contemporânea dos ecrãs: este texto foi publicado no Diário de Notícias (19 Março), com o título 'Dois cineastas resistentes'.

Apichatpong Weerasethakul e Joaquim Sapinho. Um tailandês, um português. Dois cineastas uniram-se para criar a exposição “Liquid Skin”, patente na Sala das Caldeiras do Museu de Arte, Arquitectura e Tecnologia (MAAT), até 24 de Abril. Aliás, a simples designação de “exposição” é discutível, no sentido em que o fascínio da arte passa sempre pela capacidade de desafiar as regras comuns da nossa percepção.
O aproveitamento da imponente estrutura das caldeiras, seus recantos, escadas e tubagens expressionistas, apela à noção de “instalação”, embora transcendendo-a. Mas os materiais específicos da exposição são, em última instância, de natureza cinematográfica. Dito de outro modo: os cineastas arquitectaram uma cena audiovisual (e a palavra cena deve ser pronunciada com todo o seu sabor teatral) em que fragmentos de filmes desenham um mapa de singular intimidade.
São filmes, de facto, eminentemente pessoais (no caso de Sapinho, há mesmo imagens de um projecto em desenvolvimento sobre memórias da sua família). São filmes que se oferecem ao visitante/espectador como capítulo incompletos de um ensaio sobre a própria dificuldade, de uma só vez logística e poética, de dar a ver o que pertence aos domínios mais pudicos do viver em comum.
Tudo isto envolve um calculado modo de expor, numa dramaturgia de contagiantes paradoxos. Assim, as imagens de Sapinho combinam a sensação de privacidade com o minimalismo das dimensões, projectando-se nas próprias matérias metálicas do cenário; por sua vez, Apichatpong faz-nos sentir mais pequenos que as próprias imagens, reforçando a pergunta que circula por todo aquele espaço de mágica transparência: o que é ser (continuar a ser) um espectador?
A pergunta não pode ser reduzida a um mero questionamento interior. Importa mesmo lidar com a sua raiz mais funda — entenda-se: social —, por certo para além de qualquer perfil histórico ou psicológico do próprio espectador. Dito de outro modo: “Liquid Skin” é também produto deste tempo de delirante proliferação de imagens. O ecrã deixou de ser a marca sagrada do cinema. Para mal dos nossos pecados, desde os omnipresentes telemóveis até às fachadas dos edifícios, tudo pode ser ecrã.
Apichatpong e Sapinho colocam-se numa posição de resistência. A saber: se tudo pode ser ecrã, então cada um de nós deve obrigar-se a não desvalorizar a singularidade do seu olhar, a verdade do seu corpo. São resistentes em nome da arte? Talvez. Acontece que esta é também uma forma nobre de fazer política.

Natalie Portman + James Blake

O terceiro álbum de estúdio de James Blake, The Colour in Anything, tem um novo teledisco, protagonizado por Natalie Portman. Poucos dias antes do nascimento do seu segundo filho, Portman foi filmada por Anna Rose Holmer, numa encenação do tema My Willing Heart — ou como a mais genuína intimidade envolve uma delicada arte do corpo e do espírito, nada tendo a ver com o horror quotidiano da reality TV.

Quem é Sonia Braga?

Aquarius é um filme brasileiro, centrado numa mulher que resiste a uma empresa de imobiliário, com uma tocante dimensão universal — este texto foi publicado no Diário de Notícias (16 Março), com o título 'A música de Sonia Braga'.

Não há cidadão português, maior e vacinado, que não saiba dizer que as telenovelas começaram em Portugal com Gabriela. Quatro décadas depois, a memória persiste e é evocada com naturalidade e automatismo, acrescentando-se sempre que a personagem saída do romance de Jorge Amado transformou a respectiva intérprete, Sónia Braga, num fenómeno ímpar de popularidade dos dois lados do Atlântico.
Caímos em 2017 e, perante a estreia do filme brasileiro Aquarius, protagonizado pela mesma actriz, podemos perguntar porque é que tão mítica memória não está a gerar um fenómeno mediático de gigantescas dimensões, capaz de desafiar a omnipresença das guerras entre Benfica, Sporting e F. C. Porto... A resposta é simples e todos a conhecem (mesmo se muitos se esforçam por recalcá-la): a telenovela não passa de um registo formatado, concebido para consumo automático e repetitivo, alheio a qualquer consciência crítica da televisão (e ainda menos do cinema). Dito de outro modo: a telenovela não gera estrelas, mas apenas “famosos” (a palavra tornou-se, aliás, um instrumento ideológico de celebração da futilidade).
É pena. Desde logo porque, no papel de uma mulher que não quer abdicar da sua casa no Recife, resistindo à especulação imobiliária que atinge a zona em que vive, Sónia Braga é brilhante, expondo desencanto e alegria com igual transparência — creio mesmo que o facto de interpretar alguém que dedicou grande parte da sua vida profissional à crítica de música não funcionará como trunfo mediático para o mundo em que vivemos... Isto sem esquecer que o filme escrito e dirigido por Kleber Mendonça Filho nos faz lembrar uma verdade pouco popular em Portugal. A saber: no domínio das narrativas audiovisuais, o Brasil não é habitado apenas por autores de telenovelas.

domingo, março 19, 2017

A personagem gay
de "A Bela e o Monstro"

A. Onde irá parar a agitação em torno da homossexualidade da personagem de LeFou, interpretada por Josh Gad na nova versão de A Bela e o Monstro? Bastou que o realizador, Bill Condon, tivesse declarado à revista Attitude que LeFou tem direito a um "momento gay" para que se instalasse um aparato de "detecção" sexual que parecia condenado apenas ao mais básico ridículo... Mas não, o fenómeno cresceu, havendo salas nos EUA a resistir à exibição do filme e até uma exigência de corte de uma sequência na Malásia (hipótese, importa sublinhá-lo, liminarmente recusada pela Disney). O próprio Bill Condon, em entrevista ao site 'Vulture', já declarou que se tratava de um "pormenor", revelando-se "farto" do assunto.

B. O mais bizarro em tudo isto é que (quase) ninguém lembra que toda esta agitação só pode ser explicada através do exacerbar de uma questão de detalhe num grande drama "social" — as redes virtuais e alguma imprensa são os protagonistas do costume. Será que cada vez que surgir em algum contexto narrativo uma personagem inesperada (ou atípica nesse contexto), vai ser preciso fazer "teoria" sobre o assunto? Será que vamos ceder à ideia (?) segundo a qual a importância das narrativas depende da gravidade (!) dos seus assuntos? Corremos o risco de, também aqui, deixar triunfar a mentalidade normativa e cínica dos argumentistas da mediocridade telenovelesca que gostam de proclamar que convocam temas muito "sérios"... Que temas? A homossexualidade e o aborto...

C. Fenómenos deste género arrastam sempre o mesmo tipo de efeitos redutores. A saber: a partir do momento em que a personagem de LeFou surge envolvida numa espécie de batalha ideológico-sexual, a primeira coisa que se apaga é a singularidade do seu comportamento no interior do próprio filme — desvirtua-se o filme para promover um "debate" sobre coisa nenhuma. Entenda-se: não se trata de reconhecer, muito menos de "demonstrar", que LeFou é (ou não é) homossexual — aliás, se for, qual é o problema? Trata-se, enfim, de lhe reconhecer o direito a existir como personagem, seja qual for a sua sexualidade.

A epopeia dos hamburgers

Como nasceram os restaurantes McDonald's? A história, épica e desconcertante, surge agora contada num filme de grande concisão, protagonizado por Michael Keaton — este texto foi publicado no Diário de Notícias (9 Março).

Que faz um consumidor típico dos restaurantes McDonald’s? Mantém-se fiel ao hamburger clássico? Ou procura a melhor conjugação de elementos para encomendar o menu mais económico? Arrisca nos desvios pelos pedaços de frango ou, heresia máxima, os filetes de peixe? Ou abraça o radicalismo biológico e só encomenda a variante vegetariana? Todas essas perguntas podem ser condensadas numa perplexidade filosófica que o filme O Fundador condensa com especial acutilância dramática e inteligência narrativa. A saber: de que falamos quando falamos do McDonald’s?
O primeiro mérito do filme dirigido por John Lee Hancock decorre da sua recusa de qualquer digressão “panfletária” (recorde-se que na sua filmografia encontramos, por exemplo, Ao Encontro de Mr. Banks, um curioso retrato de Walt Disney). Agora, não se trata de visar quem consome “muito” ou “pouco” do menu do McDonald’s. Trata-se, isso sim, de elaborar uma crónica ao mesmo histórica e psicológica sobre a personagem fascinante do fundador de um império gastronómico que, nos nossos dias, ultrapassou os 35 mil restaurantes em cerca de 120 países.
Aliás, a definição de Ray Kroc como “fundador” da marca McDonald’s é uma ironia sugestiva que, desde logo, o título propõe. Tudo começa em 1954 quando Kroc não é mais do que um esforçado vendedor de máquinas para fazer batidos de leite, conseguindo, aqui e ali, colocar uma modesta unidade do seu produto... Até que, um dia, recebe uma encomenda de um restaurante da cidade californiana de San Bernardino: os respectivos gestores, os irmãos Maurice e Richard McDonald, não querem uma batedeira, mas sim seis! Aliás, oito!
Quando visita aquele que é, para todos os efeitos, o primeiro restaurante identificado como McDonald’s, Kroc fica siderado pelo racionalismo, eficácia e qualidade de oferta do empreendimento. Os dois irmãos inventaram um sistema de confecção e venda que, além do mais, garante uma excepcional velocidade de atendimento. Verdadeiro empreendedor com apurado faro para o negócio, Kroc não quer vender mais batedeiras — o seu objectivo será a criação de uma sociedade a três, visando o crescimento daquele modelo de restaurante para todos os recantos dos EUA e, por fim, para todo o planeta!
Evitando revelar as peripécias do processo, por vezes irónico, muitas vezes dramático, digamos apenas que o crescimento da empresa McDonald’s nem sempre correspondeu à felicidade regional de Maurice e Richard. E que a saga de Kroc ilustra, afinal, as maravilhas e assombramentos do mais puro desenvolvimento capitalista, tendo sempre a utopia do “Sonho Americano” em pano de fundo.
Acima de tudo, a realização de Hancock sabe preservar um tom em que a dinâmica dos cifrões nunca se sobrepõe ao conhecimento real das personagens com todas as suas singularidades e contradições. No papel de Kroc, Michael Keaton oferece-nos uma composição de deliciosas convulsões. É um menu que chegou a ser tido como um bom trunfo para os Oscars — falhou por completo mas, com ou sem ketchup, vale a pena saboreá-lo.

Chuck Berry (1926 - 2017)

Pioneiro do rock'n'roll, é um símbolo universal da sua energia e criatividade: Chuck Berry faleceu em sua casa, em St. Charles County, Missouri, no dia 18 de Março — contava 90 anos.
Charles Edward Anderson Berry nasceu no seio de uma família de St. Louis, Missouri, desde muito cedo dando provas das suas aptidões musicais. O seu primeiro sucesso, Maybellene, surgiu em 1955, acabando por integrar a lista de canções pioneiras do rock'n'roll. Roll Over Beethoven (1956), Rock and Roll Music (1957) Johnny B. Goode (1958), No Particular Place to Go (1964) e Nadine (1964) são apenas alguns dos seus temas mais lendários, decisivos para essa colisão entre a tradição country, a inspiração do blues e a nova electricidade das guitarras que, mais do que um "estilo" musical, definiu toda uma nova postura cultural e anímica.
Os Beatles e os Rolling Stones foram apenas alguns dos que reconheceram em Chuck Berry um pioneiro e uma fundamental influência. Em boa verdade, a sua obra transfigurou todo o cenário artístico e comercial da música popular, reflectindo transformações de comportamentos, questionamento de valores e, no limite, um novo conceito social de juventude.
A canção Johnny B. Goode integra o "disco dourado" da nave espacial Voyager, lançada em 1977 (a par de temas extraídos de A Sagração da Primavera, de Igor Stravinsky, ou do Cravo Bem Temperado, de Bach, por Glenn Gould). Em 1984, recebeu um Grammy de carreira. O seu reconhecimento no Rock & Roll Hall of Fame deu-se em 1986. A 18 de Outubro do ano passado, data do seu 90º aniversário, anunciara a edição de um novo álbum, o primeiro desde Rock It (1979) — intitulado Chuck, o seu lançamento está previsto para 2017.

>>> Notícia da morte de Chuck Berry na CNN;  duas interpretações ao vivo: Hoochie Coochie Man (tema de Willie Dixon gravado originalmente por Muddy Waters); Nadine, com a participação de Keith Richards.






>>> Obituário: New York Times + Rolling Stone + Le Monde.
>>> Chuck Berry no Rock & Roll Hall of Fame.
>>> Chuck Berry na lista dos '100 maiores guitarristas' [Rolling Stone].
>>> Roll Over Beethoven na Biblioteca do Congresso.
>>> Site oficial de Chuck Berry.

sábado, março 18, 2017

A IMAGEM: Ben Toms, 2017

BEN TOMS
Sara Grace
Vogue [China], Fevereiro 2017

Os representantes do povo [citação]

>>> "Democracia representativa" é uma expressão mais que equívoca. Veicula a ideia falsa de um povo já constituído que se exprimiria escolhendo os seus representantes. Ora, o povo não é um dado que pré-exista ao processo político: é o seu resultado. Um determinado sistema político cria o povo, e não o contrário.

JACQUES RANCIÈRE
Entrevista / L'Obs
12 Março 2017

sexta-feira, março 17, 2017

O prazer de Feist

O quinto álbum de estúdio da canadiana Feist chama-se Pleasure e chega a 28 de Abril. O tema-título instala a ilusão de uma balada para se derramar num rock agreste, romântico q. b. — em nome de uma verdade íntima, ficção ou sonho.

Get what I want
And still it's a mysterious thing that I want
So when I get it
I make sense of a mysterious thing
'Cause I've taken flight on such a serious wing
I, and you are the same and
Either fiction or dreaming

We know enough to admit
[...]

It's my pleasure
And your pleasure
[...]

Oh, an echo calls up the line
An indication of time
Our togetherness
That is how we evolved
We became our needs
Ages up inside
Escaping similar pain
Dreaming safe and secure
Generations in line
Old and then the youth
Come to meet or fade
A chromosomal raid
Built by what we got built for
As much as what we avoid
So the mystery lifts

We know enough to admit
[...]

It's my pleasure
And your pleasure
It's my pleasure
And your pleasure
That's the same
That's what we're here for!
[...]

quinta-feira, março 16, 2017

A Disney, a Bela, o seu Monstro e os livros dele

A Bela e o Monstro está de volta com chancela da Disney, relançando as lições morais da fábula — este texto foi publicado no Diário de Notícias (15 Março), com o título 'Por amor dos livros'.

Moral da história: é tudo uma questão de percepção. Assim, a monstruosidade do Monstro (a redundância, convém não esquecer, faz parte deste universo narrativo) começa a esbater-se quando a Bela cita Shakespeare e ele, de memória, completa a citação. Um pouco mais tarde, o Monstro abre-lhe o coração. Aliás, e para sermos mais precisos, com ou sem metáfora: ele abre-lhe as portas da sua imensa biblioteca. Conquistada por tão imponente património escrito, a Bela, porventura ainda sem o saber, já começou a amar o Monstro, assim cumprindo os desígnios da fábula.
Há outra maneira de dizer tudo isto: a nova versão de A Bela e o Monstro existe em íntima ligação com o universo dos livros. Pela sua inspiração, claro, mas sobretudo porque a relação entre os dois protagonistas se vai selando através desses objectos que podem ser tocados, lidos e relidos — é mesmo através de um livro mágico que acontece a revisitação de Paris, numa cena calculadamente psicanalítica em que, finalmente, a Bela (e o espectador com ela) encontra a memória perdida da mãe.
Não há muitos filmes deste universo de produção — em boa verdade, de todo o cinema que, actualmente, convoca os espectadores infantis e juvenis — que contenham esta celebração sensual dos livros, dispensando o patrocínio de super-heróis que derrubam arranha-céus por cada monossílabo que pronunciam. Não que A Bela e o Monstro com chancela Disney seja um filme alheio aos poderes digitais. Longe disso. Acontece que as fábulas se fazem também do modo como integram sinais e objectos do nosso mundo: lobos e candelabros, pianos e chávenas de porcelana, livros e mais livros. Quando as mãos da Bela e do Monstro se tocam sobre um livro, pressentimos que a magia já está do lado do erotismo. Não se assustem, que as crianças também não.

A IMAGEM: Angel Boligán, 2017

ANGEL BOLIGÁN
O Narcisista
"El Universal", México, 2017

quarta-feira, março 15, 2017

Califórnia, verdade e mentira

Alexander Skarsgard e Nicole Kidman
Big Little Lies está a passar no TV Séries e é mais um notável exemplo da produção com chancela HBO — este texto foi publicado no Diário de Notícias (12 Março), com o título 'Cenários e palavras da Califórnia'.

Mais um prodígio televisivo vindo da HBO: chama-se Big Little Lies (está a passar no TV Séries) e adapta o romance homónimo de Liane Moriarty, publicado entre nós como Pequenas Grandes Mentiras (ed. Asa). Para além da excelência do elenco — liderado por Reese Witherspoon, Nicole Kidman e Shailene Woodley — e do requinte da realização de Jean-Marc Vallée (O Clube de Dallas, Livre), este é um projecto com as marcas do veterano argumentista e produtor David E. Kelley (L.A. Law, Ally McBeal, etc.).
Trata-se, afinal, de desafiar as representações correntes do espaço “novelesco”. Deparamos com uma galeria de famílias de uma zona de bem-estar social e económico, de deslumbrantes cenários naturais (Monterey, Califórnia), que conhecemos através de quatro personagens femininas, interpretadas pelas actrizes referidas e ainda Laura Dern. A perturbação desencadeada pela morte de alguém (anunciada logo no primeiro de sete episódios) funciona como perverso mecanismo de exposição e desmontagem de uma complexa teia dramática — em jogo estão as marcas das diferenças sociais, as convulsões do espaço conjugal e as relações entre pais e filhos.
Uma das dimensões mais espantosas, e também televisivamente mais raras, de Big Little Lies provém da sua capacidade de desmontar a “naturalidade” do quotidiano, expondo os seus recalcamentos, máscaras e feridas interiores. Repare-se, em particular, na caracterização do par interpretado por Nicole Kidman e Alexander Skarsgard. No terceiro episódio, numa cena incrível (desde logo, pela sua duração invulgarmente dilatada), vêmo-los numa sessão de terapia, falando sobre a conjugação de amor, sexo e violência física do seu casamento. Subitamente, com uma intensidade que faz lembrar Ingmar Bergman, as palavras emergem como cruéis instrumentos de uma verdade tão cristalina quanto dura de enfrentar.
O impacto da cena é tanto maior quanto Jean-Marc Vallée resiste ao cliché televisivo do grande plano, “demorando” algum tempo a aproximar-se dos seus admiráveis actores. A distância a que a câmara se coloca de Kidman e Skarsgard envolve, assim, um sábio pudor que, paradoxalmente ou não, intensifica o contundente poder de revelação das palavras.
Há outra maneira de dizer tudo isto: alguns dos mais radicais objectos televisivos do nosso tempo reflectem a riqueza plural de um património enraizado no cinema e na sua história. Não é uma forma de dependência, muito menos um banal exercício de citações — antes uma consciência da riqueza interior das imagens.

terça-feira, março 14, 2017

"Any Time at All" [canções]

T BONE BURNETT
Any Time at All
The Criminal Under My Own Hat (1992)


Neruda por Larraín

Depois de termos visto Jackie, o notável Pablo Larraín reaparece com Neruda, outra "biografia" de muitas ambiguidades — esta nota foi publicada no Diário de Notícias (9 Março).

É provável que alguns espectadores vejam Neruda, o retrato de Pablo Neruda (1904-1973) assinado pelo chileno Pablo Larraín, como uma nova derivação do seu gosto biográfico patente em Jackie, o filme com Natalie Portman sobre Jacqueline Kennedy. Na verdade, Neruda é anterior, tendo sido revelado o ano passado, em Cannes.
Tal como em Jackie, o impulso biográfico surge condensado em alguns eventos muito particulares: seguimos a actividade política do poeta (Luis Gnecco) a partir da vigilância de um inspector da polícia (Gael García Bernal) que, com uma surpresa de algum modo partilhada com o espectador, descobre em Neruda as marcas de uma sensibilidade nacional que não é de todo estranha à sua visão do mundo. Evitando esquematizar as personagens, Larraín volta a deslumbrar-nos com as contradições internas do fluxo histórico.

sábado, março 11, 2017

Um "toque" de Lubitsch (2/2)

A obra do genial Ernst Lubitsch (1892-1947) está em foco ao longo dos meses de Março e Abril na Cinemateca — este texto foi publicado no Diário de Notícias (5 Março).

[ 1 ]

As obras-primas do “Lubitsch touch” encontram-se, sobretudo, no período da Paramount, sendo forçoso destacar: One Hour with You/Uma Hora Contigo (1932), de novo com MacDonald/Chevalier; Trouble in Paradise/Ladrão de Alcova (1932), com Miriam Hopkins e Herbert Marshall, e Design for Living/Uma Mulher para Dois (1933), com Gary Cooper, Miriam Hopkins e Fredrich March. São filmes do chamado período “pré-Código” (antes de os estúdios de Hollywood terem estabelecido um sistema de regras condicionando as representações dos laços amorosos e, em particular, as sugestões de carácter sexual), brincando com requintada elegância com todas as ambivalências morais. Observe-se o inusitado título português Uma Mulher para Dois, na verdade identificando “apenas” um trio de personagens apostado em construir uma comunidade platónica.
[Cinemateca]
Lubitsch conseguia, afinal, partir de situações dramáticas e cómicas mais ou menos convencionais para, metodicamente, as decompor através de uma imprevisibilidade muitas vezes apoiada em calculadas “omissões” narrativas (as suas célebres elipses). Se o cinema existe como instrumento para dar a ver as relações humanas, ele sabia expor os elementos das respectivas contradições através de uma elaborada arte de ocultação e sugestão.
É isso mesmo que encontramos nos seus dois prodigiosos “filmes-políticos”: Ninotchka (1939), centrado nas aventuras de uma espia russa em Paris, e Ser ou Não Ser (1942), desmontando de forma sarcástica a arrogância nazi. O primeiro serviu para relançar a carreira de Greta Garbo, mesmo se, insolitamente, com o seu filme seguinte, A Mulher de Duas Caras (1942), ela pôs fim a essa carreira. Contrariando a imagem séria e austera de Garbo — o filme foi mesmo promovido com a frase “Garbo ri” —, Lubitsch dirige-a num jogo de verdades e aparências capaz de desmanchar as hipocrisias políticas, em última instância celebrando a irracionalidade do impulso amoroso.
Billy Wilder, outro mestre germânico de Hollywood (nascido na Áustria), colaborou no argumento de Ninotchka. Reza a lenda que, na porta do seu gabinete de trabalho, tinha inscrita uma pergunta inspiradora: “Como é que Lubitsch faria isto?” No funeral do seu mestre, Wilder desabafou com tristeza: “Não há mais Lubitsch.” William Wyler, também de origem germânica (viria a dirigir Ben-Hur, em 1959), completou com amargura: “Pior do que isso: não há mais filmes de Lubitsch.”