sábado, dezembro 31, 2016

Wenders, Handke e os outros (3/3)

O novo filme de Wim Wenders é uma prodigiosa cerimónia cinematográfica ancorada nas palavras escritas por Peter Handke — este texto foi publicado no Diário de Notícias (18 Dezembro), com o título 'Como pensar através dos filmes?'.

[ 1 ]  [ 2 ]

A história mais recente do cinema a três dimensões é, muitas vezes, uma história mal contada. Há nela um capítulo mais antigo que não pode ser reduzido aos efeitos “espectaculares” que agora nos propõem como a derradeira descoberta da arte de fazer filmes... Em meados da década de 50, títulos lendários como Máscaras de Cera (André De Toth, 1953), Chamada para a Morte (Alfred Hitchcock, 1954) ou O Monstro da Lagoa Negra (Jack Arnold, 1954) aplicaram o 3D no interior de uma guerra comercial que as chamadas “superproduções” dos anos 60 iriam continuar de outro modo — tratava-se de oferecer novidades que pudessem contrariar a desertificação das salas e o aumento exponencial das audiências televisivas.
Convenhamos que aquilo que está a acontecer nos últimos anos não é alheio a um drama com raízes, em parte, semelhantes: face à crise global de frequência das salas, acompanhada de um incremento dos consumos via Internet (legais e ilegais), o 3D surgiu como um “suplemento” de espectáculo, em última instância susceptível de “justificar” a cobrança de bilhetes mais caros.
Não está em causa que, a par da indigência de alguns filmes de “Harry Potter” e seus derivados, tal estratégia tenha também gerado algumas obras fascinantes — lembremos, por exemplo, Alice no País das Maravilhas (Tim Burton, 2010) ou A Invenção de Hugo (Martin Scorsese, 2011). O certo é que, sete anos passados sobre o lançamento desse título charneira que foi Avatar (James Cameron, 2009), não se pode dizer que o 3D tenha consumado a revolução prometida.
Importa, em particular, não reduzir o que está a acontecer a um fenómeno específico de Hollywood. O exemplo de Wim Wenders é, nesta perspectiva, modelar. Primeiro com a abordagem das coreografias de Pina Bausch, em Pina (2011), agora com o prodigioso Os Belos Dias de Aranjuez — por certo um dos acontecimentos fulcrais do ano cinematográfico de 2016 —, o cineasta alemão tem aplicado o 3D como um método paradoxal de intensificação realista, de algum modo próximo do que fez o seu compatriota Werner Herzog em A Gruta dos Sonhos Perdidos (2010).
Sempre atento às convulsões tecnológicas (em meados da década de 70, foi pioneiro a pressentir as mudanças de percepção associadas às novas câmaras de video), Jean-Luc Godard tem também deixado a sua inconfundível assinatura neste processo, através de um trabalho de pesquisa que desembocou nesse filme único que é Adeus à Linguagem (2014).
Porquê a afirmação de um “adeus à linguagem”? A expressão pode justificar as mais variadas reflexões, sendo a mais premente a que decorre de uma constatação amarga: vivemos o enfraquecimento de uma cultura literária, enraizada no valor primordial das palavras, favorecendo a sedução ambígua de um espaço dominado pelo poder das imagens. Godard pergunta-nos se, menosprezando as palavras, ainda sabemos pensar — em qualquer dimensão.