sábado, dezembro 17, 2016

Teatro da Cornucópia — o fim e o pudor

HAMLET (2005), Luís Miguel Cintra
FOTO: DN
I. Subitamente, proliferam as lágrimas de crocodilo em torno do fim do Teatro da Cornucópia.

II. Peço que não me interpretem de forma precipitada: o trabalho do grupo de Luís Miguel Cintra (durante e depois da presença de Jorge Silva Melo na Cornucópia) sempre me suscitou simpatia e admiração — posso mesmo dizer que alguns dos momentos mais fortes da minha história de espectador de teatro passaram pelo Teatro do Bairro Alto.

III. Acontece que, precisamente como espectador, não consigo lidar de modo pacífico com a avalanche de lamentações e protestos a que temos assistido — por exemplo, dos heróicos CDS e PCP, exemplarmente unidos na mesma puerilidade política, pedindo explicações ao ministro da Cultura...

IV. Seria, aliás, a mais grosseira farsa teatral: perante o desespero que a situação envolve (o fim de uma das mais importantes companhias de teatro fundadas no séc. XX em Portugal), vamos encurralar Luís Filipe Castro Mendes, esperando que ele nos esclareça como é que tudo isto aconteceu...

V. Infelizmente, é fácil explicar como tudo isto aconteceu — ao longo de décadas. Pelo menos no plano político e das chamadas políticas culturais: aconteceu pela sistemática indiferença das forças políticas, de direita e esquerda (incluindo o PS), que, com mais ou menos excepções individuais, foram sempre, sempre, sempre desinvestindo no chamado espaço cultural, por um lado favorecendo outras áreas (645 milhões de euros para os estádios do Euro2004), por outro lado mantendo um vergonhoso silêncio perante os avanços do populismo televisivo.

VI. O que é que queriam: que um povo (sim, a palavra ainda existe: povo) alimentado pelos formatos telenovelescos e pela desvergonha dos "reality shows" viesse, através dos seus consumos, viabilizar financeiramente o Teatro da Cornucópia e quem não pactua com os valores culturais dominantes?

VII. O ambiente fúnebre em torno do Teatro da Cornucópia faz lembrar os dias horríveis que se seguiram à morte de Manoel de Oliveira. Depois de tanta gente se vangloriar de menosprezar os seus filmes, mesmo sem os conhecer, quase todos se curvavam perante a memória do "mestre"... Exige-se, no mínimo, algum pudor.