quarta-feira, dezembro 28, 2016

Marcelo Rebelo de Sousa
— ser e não ser Presidente

[video no site da Presidência da República]

1. Há dias, vendo o video oficial de Marcelo Rebelo de Sousa [MRS] nos festejos da "Tradicional Ginjinha de Natal do Barreiro", não pude deixar de me perguntar o que está a acontecer com a iconografia dos poderes políticos em Portugal.

2. Começo por não ter, reconheço, qualquer visão entusiasmada de MRS como personalidade televisiva — muito antes de se formular sequer a hipótese de ele vir a ser Presidente da República Portuguesa [PR], sempre o encarei como símbolo de uma norma televisiva que tende a fulanizar todos os eventos, a começar pelos que se inscrevem na actividade política, apagando a sua especificidade, no limite baralhando gravidade e futilidade.

3. Também não tenho, devo acrescentar, uma visão da sua actividade como PR como um mero decalque do que foi, durante muitos anos, a sua performance televisiva. Tendo em conta os limites constitucionais da figura do PR, considero mesmo que a sua postura tem sido um importante factor de equilíbrio. Isto porque a conjugação da inanidade ideológica das direitas com a hipocrisia (também ideológica, afinal) que assolou as esquerdas "unidas" poderia muito bem ter gerado um clima de agudização de conflitos que, salvo melhor opinião, apenas penalizaria ainda mais o país — inteligentemente, MRS tem sabido contrariar e administrar muitos potenciais factores de crispação.

4. A minha dúvida vem da própria arte de ser Presidente que, assim, se configura e, de algum modo, promove (ideologicamente também). O que é, o que vale e para que serve uma Presidência da República que, desde a ginginha do Barreiro até à manifestação de "pesar pela morte de George Michael", não reconhece limites às suas funções e ao valor primordial das suas intervenções públicas?

5. Na prática, MRS passou a ser personagem corrente do nosso dia a dia, num processo que a ideologia televisiva dominante acolheu com típica disponibilidade — uma personagem tendencionalmente pitoresca é sempre encarada por essa ideologia como matéria de eleição. Resta saber se a sua ubiquidade mediática não está, pura e simplesmente, a esvaziar de conteúdo a acção do PR e, mais do que isso, a sua identidade simbólica.

6. Perversamente, MRS parece ter saído da condição de comentador para reentrar na paisagem televisiva como personagem de novela — reaparece todos os dias, não exactamente para "continuar" a história (as novelas não têm nenhuma história para contar, são meros exercícios de intermináveis adiamentos narrativos, pontuados por falsos clímaxes); dir-se-ia que aparece apenas para garantir a ilusão que, através dele, algo está a acontecer.

7. Por vezes, as suas intervenções tendem mesmo a baralhar o que seria muito simples de identificar (p. ex.: a ida ao Teatro da Cornucópia, acabando por favorecer, ainda que involuntariamente, a generalizada omissão noticiosa de que, de facto, o grupo tinha decidido acabar). Introduzindo um factor de ligeireza, mais ou menos festivo, em tudo o que faz perante as câmaras de televisão, MRS corre o risco de apagar da consciência pública a noção de que o cargo que ocupa é de uma terrível seriedade.