sábado, dezembro 31, 2016

A IMAGEM: William Wegman, 2007

WILLIAM WEGMAN
Hat Tender
2007

Tyrus Wong (1910 - 2016)

Talentoso e versátil criador de imagens, o seu nome está indissociavelmente ao filme Bambi: americano de origem chinesa, o artista Tyrus Wong faleceu no dia 30 de Dezembro — contava 106 anos.
Nascido em Taishan, na província de Guangdong, emigrou com o pai para os EUA, tinha 9 anos. Apesar da sua exuberância e sofisticação, o seu trabalho de pintor, autor de murais e criador de papagaios de papel sofreu os efeitos de muitos preconceitos raciais, levando décadas a ser reconhecido. Só nos anos 90 se compreendeu claramente como foi decisiva a sua contribuição para Bambi (1942), quinta longa-metragem de animação produzida por Walt Disney: inspiradas nas pinturas da dinastia Song, as suas paisagens seriam determinantes em toda a concepção visual do filme — na prática, Wong foi o líder de todo o trabalho gráfico de Bambi. Em 2015, a sua obra foi objecto de uma gigantesca retrospectiva no Museu dos Chineses na América, em Manhattan, com o título "Da Água ao Papel, da Pintura até ao Céu".


>>> Obituário no New York Times.

Wenders, Handke e os outros (3/3)

O novo filme de Wim Wenders é uma prodigiosa cerimónia cinematográfica ancorada nas palavras escritas por Peter Handke — este texto foi publicado no Diário de Notícias (18 Dezembro), com o título 'Como pensar através dos filmes?'.

[ 1 ]  [ 2 ]

A história mais recente do cinema a três dimensões é, muitas vezes, uma história mal contada. Há nela um capítulo mais antigo que não pode ser reduzido aos efeitos “espectaculares” que agora nos propõem como a derradeira descoberta da arte de fazer filmes... Em meados da década de 50, títulos lendários como Máscaras de Cera (André De Toth, 1953), Chamada para a Morte (Alfred Hitchcock, 1954) ou O Monstro da Lagoa Negra (Jack Arnold, 1954) aplicaram o 3D no interior de uma guerra comercial que as chamadas “superproduções” dos anos 60 iriam continuar de outro modo — tratava-se de oferecer novidades que pudessem contrariar a desertificação das salas e o aumento exponencial das audiências televisivas.
Convenhamos que aquilo que está a acontecer nos últimos anos não é alheio a um drama com raízes, em parte, semelhantes: face à crise global de frequência das salas, acompanhada de um incremento dos consumos via Internet (legais e ilegais), o 3D surgiu como um “suplemento” de espectáculo, em última instância susceptível de “justificar” a cobrança de bilhetes mais caros.
Não está em causa que, a par da indigência de alguns filmes de “Harry Potter” e seus derivados, tal estratégia tenha também gerado algumas obras fascinantes — lembremos, por exemplo, Alice no País das Maravilhas (Tim Burton, 2010) ou A Invenção de Hugo (Martin Scorsese, 2011). O certo é que, sete anos passados sobre o lançamento desse título charneira que foi Avatar (James Cameron, 2009), não se pode dizer que o 3D tenha consumado a revolução prometida.
Importa, em particular, não reduzir o que está a acontecer a um fenómeno específico de Hollywood. O exemplo de Wim Wenders é, nesta perspectiva, modelar. Primeiro com a abordagem das coreografias de Pina Bausch, em Pina (2011), agora com o prodigioso Os Belos Dias de Aranjuez — por certo um dos acontecimentos fulcrais do ano cinematográfico de 2016 —, o cineasta alemão tem aplicado o 3D como um método paradoxal de intensificação realista, de algum modo próximo do que fez o seu compatriota Werner Herzog em A Gruta dos Sonhos Perdidos (2010).
Sempre atento às convulsões tecnológicas (em meados da década de 70, foi pioneiro a pressentir as mudanças de percepção associadas às novas câmaras de video), Jean-Luc Godard tem também deixado a sua inconfundível assinatura neste processo, através de um trabalho de pesquisa que desembocou nesse filme único que é Adeus à Linguagem (2014).
Porquê a afirmação de um “adeus à linguagem”? A expressão pode justificar as mais variadas reflexões, sendo a mais premente a que decorre de uma constatação amarga: vivemos o enfraquecimento de uma cultura literária, enraizada no valor primordial das palavras, favorecendo a sedução ambígua de um espaço dominado pelo poder das imagens. Godard pergunta-nos se, menosprezando as palavras, ainda sabemos pensar — em qualquer dimensão.

sexta-feira, dezembro 30, 2016

2016, Figura do Ano [nacional]
— IVO FERREIRA

FOTO: Orlando Almeida / DN

J. L.: Não é simples ser um narrador — cinematográfico, para mais — num país cujo espaço mediático (aí onde se decidem os valores culturais dominantes) se foi entregando, sem armas nem bagagens, ao império da formatação telenovelesca. Com o seu filme Cartas da Guerra, a partir de António Lobo Antunes, Ivo Ferreira não se limitou a redescobrir, com inusitado fulgor, o poder da palavra; ao mesmo tempo, o seu trabalho mostra que é possível encarar as memórias da Guerra Colonial, não como um pandemónio maniqueísta em que tudo se decide através da tristeza moral do "pró & contra", antes como uma imensa, fascinante e trágica paisagem humana em que nenhuma imagem, nenhum som, é indiferente. Raras vezes o cinema português conseguiu ser tão visceral e tão universal.

N. G.: Temos meio milénio de histórias africanas a correr no ADN da nossa identidade enquanto povo. Mas não duvidemos, por muitas outras que falte ainda contar, que estas acabam por nos estar demasiado próximas para que as não deixemos de revisitar já. E não é por acaso que muitas delas, por vezes com fulgor autobiográfico, habitam a nossa literatura, assim como a nossa música. O cinema, aos poucos, começa a juntar um corpo significativo de olhares que fazem das memórias dos focos de guerra o tutano das suas narrativas, imagens e personagens. Aqui na verdade juntam-se as palavras (escritas) a um olhar que delas parte para encontrar, não a vertigem da ação, mas a verdade interior que habita quem ali viveu aqueles dias. 

A IMAGEM: Vincent Desiderio, 2008

[fragmento]
VINCENT DESIDERIO
Sleep
2008

2016 — 5 telediscos [Kanye West]


[ Coldplay ]  [ Kaytranada ]  [ Jeff Buckley ]  [ Frank Ocean ]

Foi o cartão de visita do brilhante álbum The Life of Pablo. No plano do "fait divers", terá sido, em parte, motivado por um conflito de palavras e atitudes entre Kanye West e Taylor Swift (remetendo para a interrupção, por West, do discurso de Swift nos prémios MTV de 2009). Pormenores à parte, só podemos repetir as palavras de Werner Herzog a The Daily Beast: nunca vimos nada assim... Quanto mais não seja porque aqui deparamos com a figuração, nus na mesma cama, de Kanye West e Kim Kardashian, Billy Cosby a Amber Rose, passando por Taylor Swift, sem esquecer Anna Wintour, Rihanna, Chris Brown, Ray J., Caitlyn Jenner, George W. Bush e, literalmente à civil, o amigo de Kanye West que dá pelo nome de... Donald Trump! Estamos perante uma espécie de fábula para adormecer feita com bonecos de cera (inspirada no quadro Sleep, de Vincent Desiderio). Mas o poder da fábula consiste, precisamente, em levar-nos a renegar todo o seu artifício, tomando-a à letra. O tema é, obviamente, a fama que o título convoca e, depois, o fascínio e o logro das suas encenações. No tempo de todas as simulações virtuais, Kanye West força-as até ao limite do verosímil para, no final, sentirmos que é a densidade indizível do real que ele nos devolve — como um pesadelo ou apenas um cândido arranjo teatral.

A voz de Debbie Reynolds

Face à morte de Debbie Reynolds, recorremos àquilo que pode contrariar o seu silêncio: a sua voz. Ironicamente, em Serenata à Chuva (1952), ela era a voz real contra a voz fingida. Dito de outro modo: na sua candura e talento, Reynolds emergia como a verdadeira star gerada pelo cinema sonoro, por oposição àquela que, presa nas malhas do mudo, já só simulava a exuberância do canto. Vale a pena recordar esse momento emblemático, recordando também os nomes envolvidos, contracenando com Reynolds: Gene Kelly (também realizador, em tarefa repartida com Stanley Donen), Donald O'Connor, Millard Mitchell e, last but not least, a magnífica Jean Hagen, mostrando a difícil arte de não saber cantar...


>>> Obituário no New York Times.

quarta-feira, dezembro 28, 2016

Marcelo Rebelo de Sousa
— ser e não ser Presidente

[video no site da Presidência da República]

1. Há dias, vendo o video oficial de Marcelo Rebelo de Sousa [MRS] nos festejos da "Tradicional Ginjinha de Natal do Barreiro", não pude deixar de me perguntar o que está a acontecer com a iconografia dos poderes políticos em Portugal.

2. Começo por não ter, reconheço, qualquer visão entusiasmada de MRS como personalidade televisiva — muito antes de se formular sequer a hipótese de ele vir a ser Presidente da República Portuguesa [PR], sempre o encarei como símbolo de uma norma televisiva que tende a fulanizar todos os eventos, a começar pelos que se inscrevem na actividade política, apagando a sua especificidade, no limite baralhando gravidade e futilidade.

3. Também não tenho, devo acrescentar, uma visão da sua actividade como PR como um mero decalque do que foi, durante muitos anos, a sua performance televisiva. Tendo em conta os limites constitucionais da figura do PR, considero mesmo que a sua postura tem sido um importante factor de equilíbrio. Isto porque a conjugação da inanidade ideológica das direitas com a hipocrisia (também ideológica, afinal) que assolou as esquerdas "unidas" poderia muito bem ter gerado um clima de agudização de conflitos que, salvo melhor opinião, apenas penalizaria ainda mais o país — inteligentemente, MRS tem sabido contrariar e administrar muitos potenciais factores de crispação.

4. A minha dúvida vem da própria arte de ser Presidente que, assim, se configura e, de algum modo, promove (ideologicamente também). O que é, o que vale e para que serve uma Presidência da República que, desde a ginginha do Barreiro até à manifestação de "pesar pela morte de George Michael", não reconhece limites às suas funções e ao valor primordial das suas intervenções públicas?

5. Na prática, MRS passou a ser personagem corrente do nosso dia a dia, num processo que a ideologia televisiva dominante acolheu com típica disponibilidade — uma personagem tendencionalmente pitoresca é sempre encarada por essa ideologia como matéria de eleição. Resta saber se a sua ubiquidade mediática não está, pura e simplesmente, a esvaziar de conteúdo a acção do PR e, mais do que isso, a sua identidade simbólica.

6. Perversamente, MRS parece ter saído da condição de comentador para reentrar na paisagem televisiva como personagem de novela — reaparece todos os dias, não exactamente para "continuar" a história (as novelas não têm nenhuma história para contar, são meros exercícios de intermináveis adiamentos narrativos, pontuados por falsos clímaxes); dir-se-ia que aparece apenas para garantir a ilusão que, através dele, algo está a acontecer.

7. Por vezes, as suas intervenções tendem mesmo a baralhar o que seria muito simples de identificar (p. ex.: a ida ao Teatro da Cornucópia, acabando por favorecer, ainda que involuntariamente, a generalizada omissão noticiosa de que, de facto, o grupo tinha decidido acabar). Introduzindo um factor de ligeireza, mais ou menos festivo, em tudo o que faz perante as câmaras de televisão, MRS corre o risco de apagar da consciência pública a noção de que o cargo que ocupa é de uma terrível seriedade.

Liz Smith (1921 - 2016)

Foi protagonista de uma carreira tardia, mas que lhe trouxe muita popularidade, em especial na televisão do Reino Unido: a actriz inglesa Liz Smith faleceu no dia 24 de Dezembro — contava 95 anos.
Vimo-la com especial encanto em breves composições em Charlie e a Fábrica de Chocolate (2005), de Tim Burton, ou Oliver Twist (2005), de Roman Polanski. Foram, afinal, papéis que representaram o auge de uma carreira longa, embora iniciada apenas quando já estava à beira dos 50 anos, com Bleak Moments (1971), de Mike Leigh. A partir daí, foi surgindo de modo irregular em cinema — por exemplo, em A Amante do Tenente Francês (Karel Reisz, 1980), Britannia Hospital (Lindsay Anderson, 1982) ou O Cozinheiro, o Ladrão, a Sua Mulher e o Amante Dela (Peter Greenaway, 1989) —, com o essencial da sua actividade a passar por muitas dezenas de produções televisivas. Embora dotada de um elaborado talento dramático, duas séries, em particular, consolidaram a sua divertida imagem e a subtileza cómica das suas performances: O Vigário de Dibley (1994-96) e The Royle Family (1998-2006). Em 2006, publicou a autobiografia Our Betty.

>>> Liz Smith num anúncio de um produto de culinária.


>>> Obituário na BBC.

terça-feira, dezembro 27, 2016

Carrie Fisher (1956 - 2016)

Ficará para sempre na história do cinema como a Princesa Leia: a actriz americana Carrie Fisher faleceu no dia 27 de Dezembro, em Los Angeles, quatro dias depois de ter sofrido uma paragem cardíaca durante um voo proveniente de Londres — contava 60 anos.
Filha da actriz Debbie Reynolds (84 anos) e do cantor Eddie Fisher (1928-2010), estreou-se na comédia dramática Shampoo (1975), de Hal Ashby, protagonizada por Warren Beatty. O seu papel de Leia em A Guerra das Estrelas (1977), contracenando com Harrison Ford (Han Solo) e Mark Hamill (Luke Skywalker), conferiu-lhe uma dimensão mitológica que, em boa verdade, para o melhor e para o pior, viria a dominar toda a sua carreira — repetiu a personagem em O Império Contra-Ataca (1980) e O Regresso de Jedi (1983), para reaparecer em O Despertar da Força (2015). Participou em filmes como O Dueto da Corda (John Landis, 1980), Ana e as suas Irmãs (Woody Allen, 1986) ou Um Amor Inevitável (Rob Reiner, 1989), assumindo o seu próprio papel em Mapas para as Estrelas (2014), de David Cronenberg.
Com uma atribulada vida privada, marcada pela dependência de álcool, cocaína e LSD, acabou por reflectir os seus problemas em vários romances semi-autobiográficos, entre os quais se destaca Postcards from the Edge (1987), transformado em filme em 1990, com realização de Mike Nichols (entre nós: Recordações de Hollywood), com Shirley MacLaine e Meryl Streep nos papéis centrais e argumento da própria Carrie Fisher. Assinou também três volumes autobiográficos: Wishful Drinking (2008), Shockaholic (2011) e The Princess Diarist (lançado em Novembro deste ano). Há poucos meses, terminara a rodagem do episódio VIII de Star Wars, com lançamento marcado para Dezembro de 2017.

>>> Trailer original de A Guerra das Estrelas (1977); notícia da morte de Carrie Fisher na ABC.




>>> Obituário no New York Times.
>>> Notícia da morte de Carrie Fisher no site oficial de Star Wars.

Billie Joe Armstrong a solo

Revolution Radio, o 12º álbum de estúdio dos Green Day, surgiu em Outubro. A sua energia alternativa, fiel aos cânones punk, desembocava numa derradeira faixa de delicada contenção, uma balada interpretada por Billie Joe Armstrong acompanhado apenas pela sua guitarra... quase. Agora, foi mesmo sem mais acompanhantes ou instrumentos — ocorreu no programa de Conan O'Brien.

segunda-feira, dezembro 26, 2016

O sentido das palavras [citação]

>>> As derivas semânticas são numerosas e estão carregadas de consequências devastadoras: ceder nas palavras equivale a ceder nas coisas. É preciso, por isso, recusar todas as confusões e usurpações do sentido das palavras que, depois, esvaziam as realidades políticas da sua substância.

FRANCIS DASPE e CÉLINE PIOT
Libération, 26 Dez. 2016

José Pracana (1946 - 2016)

Personalidade exemplar do universo do fado, discreto e versátil, sempre genuíno, foi cantor, guitarrista e divulgador: José Pracana faleceu no dia 26 de Dezembro, vítima de doença prolongada, na ilha de São Miguel nos Açores, de onde era natural — contava 70 anos.
As suas qualidades na guitarra fizeram com que, ao longo dos anos, acompanhasse, entre muitos outros, Amália Rodrigues, Alfredo Marceneiro, Manuel de Almeida, João Ferreira Rosa e João Braga, de algum modo secundarizando os seus dotes vocais [video: Lendas das Rosas]. Com uma grande carreira internacional, participou em diversos programas televisivos, incluindo Zip-Zip (1969), Curto-Circuito (1970) e Noites de Gala (1987); como autor, sempre na RTP, concebeu as séries Vamos aos Fados (1976) e Silêncio que se Vai Contar o Fado (1992). Trabalhou na edição discográfica "Biografias do Fado" (1994-98), da EMI/Valentim de Carvalho, organizando, a partir dos estúdios Abbey Road, em Londres, a remasterização digital de discos de 78 rpm. Em 2005, recebeu o prémio Amália Rodrigues na categoria de Fado Amador.


>>> Obituário no Diário de Notícias.

George Michael (1963 - 2016)

georgemichael.com
Personalidade marcante do post-disco, foi uma estrela pop planetária ao longo das décadas de 80/90: o cantor, compositor e produtor inglês George Michael faleceu em sua casa, no condado de Oxfordshire, no sudeste de Inglaterra, no dia 25 de Dezembro — contava 53 anos.
Totalmente inesperada, a notícia da morte de George Michael foi divulgada pelo seu agente, dando a conhecer um comunicado da família em que, solicitando respeito pela sua privacidade, se escreve: "É com grande tristeza que confirmamos que o nosso bem amado filho, irmão e amigo George faleceu pacificamente, em casa, durante o período de Natal." A polícia esteve presente a acompanhar a ambulância que recolheu o corpo de George Michael, tendo declarado que as circunstâncias da morte foram consideradas por explicar, mas sem elementos suspeitos [BBC].
Filho de um pai grego e uma mão inglesa, o seu nome verdadeiro era Georgios Kyriacos Panayiotou. Foi com o seu amigo de escola Andrew Ridgeley que formou os Wham!, em 1981, conseguindo vários sucessos internacionais, como Wake Me Up Before You Go-Go ou Careless Whisper. Com o duo desfeito em 1986, George Michael arrancaria para uma carreira a solo com o álbum de sucesso Faith (1987), seguido por aquele que ficará, por certo, com o seu trabalho mais complexo e sofisticado: Listen Without Prejudice Vol. 1 (1991) — sem renegar as suas raízes ligadas a uma música ligeira e dançante, ele afirmava-se através de temas de rica textura melódica e rítmica, além do mais rentabilizando ao máximo as qualidades da sua voz.
Gravou ao todo cinco álbuns de estúdio (o derradeiro, Patience, lançado em 2004), deixando também uma apreciável obra videográfica que inclui uma obra-prima, Freedom! '90, realizada por David Fincher. Actualmente, estava envolvido na produção de um documentário biográfico, Freedom, com lançamento previsto para Março de 2017 — para a mesma altura, está prevista uma reedição de Listen Without Prejudice – Volume 1.

>>> Três telediscos: Wake Me Up Before You Go-Go, dos Wham!, realizado por Andy Morahan; Freedom! '90, de David Fincher; Outside, canção lançada na compilação Ladies & Gentlemen: The Best of George Michael (1998), aqui numa performance no programa Parkinson (BBC), de Michael Parkinson.






>>> Obituário no New York Times.

domingo, dezembro 25, 2016

2016 — 5 fotogramas [Skolimowski]

[ Sokurov ]  [ Disney ]

Tudo começa na aproximação dos corpos, na intimidade ambígua que o cinema suscita, figura e proclama: o grande plano favorece essa noção moral, por excelência, que nos leva a pensar que estamos a mais, ao mesmo tempo que a nossa peculiar condição de espectadores nos permite o luxo de não irmos embora. Para Jerzy Skolimowski, a questão não se esgota aí, quanto mais não seja porque ele é também o cineasta que, ao fazer planos gerais, consegue fazer-nos sentir a mais perturbante proximidade sensorial com os elementos da cena. Ao filmar os olhos de Paulina Chapko, em 11 Minutos, Skolimowski celebra a imagem cinematográfica como um mapa onde, por assim dizer, se escreve a nitidez instável do real, a sua própria resistência a esgotar-se nas artes figurativas dos humanos. No cinema contemporâneo, não há muitos que preservem esta vocação ancestral do fotograma — não passar de um detalhe escolhido na profusão da vida vivida, mas possuir a imensidão envolvente de uma galáxia. Para quem é que ela está a olhar?

O anúncio natalício de "Alien"

Convenhamos que não será a maneira mais ortodoxa de assinalar o Natal. O certo é que aí está o primeiro trailer de Alien: Covenant, sequela de Prometheus (2012) que era, por sua vez, uma "prequela" do quarteto original de filmes, formado por Alien - O 8º Passageiro (1979), Aliens: O Reencontro Final (1986), Alien 3 - A Desforra (!992) e Alien: O Regresso (1997).
Com lançamento mundial agendado para Maio de 2017 (dia 18, em Portugal), é o terceiro título desta franchise dirigido por Ridley Scott (depois dos de 1979 e 2012). Michael Fassbender, Noomi Rapace e Guy Pearce retomam as personagens de Prometheus; nomes novos no elenco são Katherine Waterston, Billy Crudup, Danny McBride, Demián Bichir e James Franco; o argumento tem assinatura de John Logan, já nomeado para Oscars com Gladiador (Scott, 2000), O Aviador (Martin Scorsese, 2004) e A Invenção de Hugo (Scorsese, 2011).
Fica uma hipótese curiosa, meramente especulativa: tendo em conta que o lançamento americano é a 19 de Maio e o Festival de Cannes começa no dia 17, será que vamos ter a estreia mundial de Alien: Covenant na Côte d'Azur?...

Wenders, Handke e os outros (2/3)

O novo filme de Wim Wenders é uma prodigiosa cerimónia cinematográfica ancorada nas palavras escritas por Peter Handke — este texto foi publicado no Diário de Notícias (16 Dezembro), com o título 'Nick Cave: um compositor que gosta de cinema'.

[ 1 ]

A presença de Nick Cave em Os Belos Dias de Aranjuez tem qualquer coisa de aparição fantasmática. Provavelmente, não deveríamos dizê-lo, permitindo que o espectador descobrisse tal aparição sem ter qualquer informação prévia. O certo é que o trailer (atenuando o próprio efeito de surpresa) revela a sua presença no cenário do filme, ao piano, interpretando Into My Arms — trata-se de uma canção de 1997, incluída no alinhamento do álbum The Boatman’s Call, décimo registo de estúdio de Nick Cave and the Bad Seeds [em baixo: teledisco de Jonathan Glazer].
As mágoas românticas das suas canções têm sido uma pontuação importante de vários momentos da obra de Wenders, a começar por As Asas do Desejo (1987), em que Nick Cave e a sua banda surgiam mesmo numa das cenas. Há ainda temas de sua autoria em Até ao Fim do Mundo (1991), Tão Longe, Tão Perto (1993), e Imagens de Palermo (2008). Wenders incluiu também uma das suas canções no documentário The Soul of a Man (2003), da série The Blues, produzida por Martin Scorsese.
Poderá pensar-se que a condição de artista de culto reduz as suas relações com o cinema a filmes mais ou menos independentes e marginais. O certo é que escutamos canções de Nick Cave em produções como uma comédia de Jim Carrey, Doidos à Solta (1994), Batman para Sempre (1995) e até mesmo Harry Potter e os Talismãs da Morte: Parte 1 (2010).
O seu trabalho como autor de bandas sonoras é indissociável da colaboração com Warren Ellis, australiano como ele, companheiro de The Bad Seeds e também de um dos projectos “paralelos” de Nick Cave, a banda Grinderman, fundada em 2006. Assinaram, assim, a música de títulos como Escolha Mortal (2005), de John Hillcoat (com Nick Cave a assumir também as funções de argumentsita), O Assassínio de Jesse James pelo Cobarde Robert Ford (2007), de Andrew Dominik, A Estrada (2009), outra vez de Hillcoat, e Custe o que Custar (2016), de David Mackenzie, um “western” em cenários contemporâneos, recentemente lançado entre nós. Compuseram ainda as ambiências musicais para a edição audio de um romance de Nick Cave, The Death of Bunny Monroe (2009).
20.000 Dias na Terra (2014), de Iain Forsyth e Jane Pollard, destaca-se de todos estes títulos, uma vez que apresenta uma reflexão autobiográfica pouco canónica, brincando com as próprias regras do documentário. Entretanto, Andrew Dominik voltou a colaborar com Nick Cave no filme One More Time with Feeling, revelado há cerca de três meses em paralelo com o álbum Skeleton Tree. Num registo que combina o olhar documental com a atitude confessional, nele se cruzam as gravações do disco e a memória trágica de um dos quatro filhos de Nick Cave, Arthur, falecido num acidente em 2015, aos 15 anos de idade — para já, o filme teve apenas uma apresentação isolada em salas de cinema de todo o mundo (incluindo Portugal), na véspera do lançamento de Skeleton Tree.

[continua]

"Over the Rainbow" [canções]

JUDY GARLAND
Over the Rainbow
Judy at Carnegie Hall (1961)


sábado, dezembro 24, 2016

Natal por Jimmy Fallon (e convidados)

Wonderful Christmastime é um tema de Natal de Paul McCartney, composto em 1979. Anualmente, podemos voltar a escutá-lo nos mais diversos contextos, em recriações mais ou menos inspiradas. Este ano, ouvimo-lo numa deliciosa versão em The Tonight Show, com Jimmy Fallon, acompanhado pelos imprescindíveis The Roots, com a ajuda de cinco elementos — Matthew McConaughey, Reese Witherspoon, Scarlett Johansson, Seth MacFarlane e Tori Kelly — do elenco de vozes do filme Cantar! Sem esquecer que um dos elementos do coro é o autor da canção!

2016 — 5 telediscos [Frank Ocean]


[ Coldplay ]  [ Kaytranada ]  [ Jeff Buckley ]

Por certo um dos grandes álbuns de 2016, Blonde, de Frank Ocean, veio reescrever a actualidade do R&B através de um experimentalismo de fascinante... tradicionalismo. O tema NikesThese bitches want Nikes / They looking for a check / Tell 'em it ain’t likely (...) — serviu de primeiro cartão de visita, sustentado por um teledisco, realizado por Tyrone Lebon, de sofisticada estrutura visual e narrativa. Aqui, tudo parece ligar-se com tudo (Chihuahua incluído), ao mesmo tempo que ninguém consegue libertar-se de uma radical solidão — uma breve e contundente novela contemporânea.

Michèle Morgan (1920 - 2016)

Foi, durante o período clássico, um dos dos símbolos mais universais de uma sofisticação eminentemente francesa, cristalizada no apelo enigmático do seu olhar: a actriz Michèle Morgan faleceu no dia 20 de Dezembro, de causas naturais, em Meudon — contava 96 anos.
Em 1946, o filme Sinfonia Pastoral, de Jean Delannoy, valeu-lhe a consagração como melhor actriz no Festival de Cannes — foi a primeira edição do certame. Desde Quai des Brumes (1938), de Marcel Carné, ela era já uma das figuras de maior prestígio e popularidade da produção francesa, tendo começado a surgir, muito cedo, também em títulos de Hollywood como Joana de Paris (1942), de Robert Stevenson, ou Passagem para Marselha (1944), de Michael Curtiz.
Entre os seus papéis mais célebres, incluem-se ainda O Ídolo Caído (1948), de Carol Reed, Le Château de Verre (1950), de René Clément, Suspeita (1954), de Jean Delannoy, Napoleão (1955), de Sacha Guitry, e As Grandes Manobras (1955), de René Clair. Este último, em particular, ficou como marca exemplar de um certo romantismo clássico à la française, de algum modo secundarizado, e até esquecido, devido ao efeito crítico da Nova Vaga em relação aos valores mais tradicionais — foi um dos filmes em que Michèle Morgan contracenou com Gérard Philipe, sendo também um dos momentos emblemáticos dos primeiros anos da carreira de Brigitte Bardot [ver extracto]. Com uma actividade bastante mais reduzida a partir da década de 60, dedicou-se, em particular, à pintura; em 1977, publicou a autobiografia Avec Ces Yeux-là.


>>> Obituário no jornal Le Monde.

Ver + ouvir: David Fonseca,
Have Yourself A Merry Little Christmas



É já uma tradição. A cada Natal que passa David Fonseca apresenta uma versão de um clássico da quadra. Este ano a escolha apontou a Have Yourself A Merry Little Christmas, tema de Ralph Blane e Hugh Martin que teve primeira interpretação por Judy Gardland em 1944 e, desde então, surgiu em vozes como as de Frank Sinatra, Bing Crosby, Ella Fitzgerald, The Pretenders ou, mais recentemente, Sam Smith.

Os dez melhores
discos portugueses de 2016 (N.G.)


A vitalidade de um tempo e um lugar na história da música mede-se, entre vários indicadores, pela capacidade de sermos surpreendidos por algo novo que entra em cena. E se, depois do relativo deserto, com raras exceções, da segunda metade dos noventas e da aurora do milénio, uma multidão de nomes e ideias entraram em cena – bem longe do espetro definido pelos modelos de programas de talentos, entenda-se – a verdade é que do gosto pelo diálogo e colaboração estabelecido entre esta nova geração de músicos (que lembra mais hábitos da canção popular dos setentas do que dos modos de trabalhar da alvorada de uma nova cultura pop/rock nos oitentas) continuam a brotar boas surpresas. E a melhor de todas elas, em 2016, foi a estreia em disco, e em nome próprio, de Joana Barra Vaz. Mergulho em Loba é um disco tão sedutor como intrigante. É daqueles que nos intriga a um primeiro encontro e, depois, aos poucos, se vai revelando… Traz uma dimensão exploratória que, como em tempos havia na Banda do Casaco, é a de quem sonha poder juntar ideias e linhas com a curiosidade de observar os diálogos que dali possam nascer. Este, e os nove que se seguem nesta lista, são dos títulos que mais gostei de ouvir este ano. Entre surpresas, confirmações… E bons reencontros.

1 Joana Barra Vaz “Mergulho em Loba”
2 Samuel Úria “Carga de Ombro”
3 Noiserv “00.00.00.00”
4 Rita Redshoes “Her”
5 Capicua + Pedro Geraldes “Mão Verde”
6 You Can’t Win Charlie Brown “Marrow”
7 SirAiva “Gentleman Takes Polaroids”
8 Mesa “Loner”
9 Alek Rein “Mirror Lane”
10 Cristina Branco “Menina”

A casa do pai


É como uma história que nos podia ter como protagonistas. Ou alguém da nossa família. Ou vizinhos perto de quem em tempos passávamos as férias… E foi de facto a partir de memórias e vivências pessoais que Paco Roca nos dá, em A Casa, uma novela gráfica sobre as dinâmicas da vida familiar e de como os tempos que vão passando sobre elas vão agindo. A verdadeira protagonista da história é uma casa. Construída numa encosta com vista sobre o mar e na qual foram passados os fins de semana e as férias de uma família cujo pai não fazia outra coisa senão obras aqui e ali, para a melhorar. Fosse um muro, uma piscina, outra coisa qualquer, estavam sempre ocupados, sempre a agir sob um objetivo comum: a casa (de todos). Com o tempo cada um dos três filhos começa a ter a sua agenda pessoal (que família não conhece isto?), que deixa de passar pelas deslocações à casa, na qual não ficam senão os pais. A morte da mãe não impede que o pai para ali continue a ir, sem perder nunca a sua vontade de fazer mais um arranjo aqui, uma melhoria acoli… Até que, um ano depois da sua morte, durante o qual a casa esteve fechada, os três filhos a ela regressam, uma vez mais com um objetivo comum, mas diferente do de outrora: vendê-la. Diferentes entre si, encontram ali memórias. E entre elas A Casa volta a ganhar vida…


A trama, de tão simples, tão do quotidiano, poderia parecer banal história contada no café… Mas Paco Roca, que entre nós tem também já publicados Rugas (pela Bertrand), livro que focava já questões sobre o envelhecimento, e O Inverno do Desenhador (também pela Levoir que lança A Casa), encontra entre as interações dos três irmãos no presente, um vizinho que traz ecos vivos do pai desaparecido e as memórias partilhadas naquele lugar, uma narrativa com a dimensão de algum do melhor cinema dos nossos tempos quando resolve contar histórias de famílias. Sim, ao nível de um Moretti ou de uns Dardenne, embora sem a dimensão trágica com que por vezes estes cineastas moldam os seus filmes. Mesmo talhada na melancolia que a memória faz agir sob a consciência da perda há aqui uma outra crença na humanidade. E está aqui um filme à espera de ser feito.

O livro foi já alvo de múltiplas premiações. E basta lê-lo para perceber porquê. É que à sinceridade emocional com que se conta uma história aparentemente banal, mas que diz muito sobre a nossa natureza, Paco Roca alia ainda um traço tão claro e simples como a narrativa e apresenta um trabalho de coloração e de exploração da luz que ajuda a vincar a identidade ibérica dos cenários (sem recorrer nunca a colocações forçadas de elementos para o fazer). Qualquer leitor de banda desenhada não dirá que não a este livro. E A Casa é daquelas novelas gráficas capazes de chamar para este universo quem está mais habituado a outra forma de ler e ver histórias contadas.

2016 — 5 fotogramas [Disney]

[ Sokurov ]

A pergunta já não é sobre as "vantagens" ou "desvantagens" da imagem digital, mas sim, afinal, sobre o que é possível inscrever numa imagem através do digital — que novas fronteiras figurativas estão a ser desenhadas? A produção dos estúdios Disney tem estado na linha da frente desse processo, sendo, por certo, O Livro da Selva, realizado por Jon Favreau, um dos seus exemplos mais extremos. Ao assumir o papel de Mowgli, Neel Sethi acaba por ser o resto do factor humano, convivendo apenas com animais digitais... Mais do que especular sobre o futuro destas técnicas ou a filosofia tecnológica que as fundamenta, importa reter um dos seus peculiares efeitos, aqui e agora: a mãe Natureza deixa de ser o lugar onde se vai (filmar), para existir como o aparato (digital) a que se conferiu um estatuto de lugar. Ecologistas, encore un effort...

sexta-feira, dezembro 23, 2016

Trump, 2016

in facebook.com/DonaldTrump
1. "O povo falou", proclama Donald Trump. Os políticos tradicionais — os de direita apenas por tradição, os de esquerda por tradição e cansada convicção utópica — esgotaram a palavra povo, desinteressaram-se dela, deixaram-na agonizar no caixote do lixo da história. Imprudente atitude: novos políticos como Trump, tão inclassificáveis que já nem sabemos se a noção clássica de política a eles pode ser aplicada, apropriaram-se da palavra, relançando-a nos circuitos virtuais do presente, aí onde a própria noção de povo se pode confundir com a ilusão de muitos polegares ao alto.

2. No número de balanço de 2016 da revista Time, que elegeu Trump como "Pessoa do Ano", este nomeia a contradição em que, festivamente, emerge como inusitado protagonista. Reconhecendo o luxo espectacular das suas instalações nos andares 66-68 da Trump Tower, em Nova Iorque, diz: "O que surpreende muitas pessoas é que eu estou sentado num apartamento que a maior parte delas nunca viu — e, ainda assim, eu represento os trabalhadores do mundo."

3. Afinal de contas, ele cresceu de candidato caricatural a Presidente eleito da mais poderosa nação do mundo através de discursos marcados, no mínimo, por uma apoteótica mediocridade argumentativa, muitas vezes contaminados por assustadoras componentes racistas e sexistas. Apesar disso, ou melhor, através disso, ele foi eleito, não por extraterrestres que tenham invadido o nosso planeta, mas por pessoas comuns — o povo falou, o povo votou.

4. Nenhuma esquerda (muito menos alguma direita) tem mostrado possuir armas ou bagagens para lidar com tamanho imbróglio. Porquê? Eis uma questão tão incontornável quanto perturbante que passa por um terrível impensado. A saber: a consagração mediática de Trump, avant la lettre, como figura "cómica" do espaço da informação. Tal processo ocorreu, entre risos e arrogâncias várias, sem que essa mesma esquerda tivesse questionado, por um breve instante que fosse, como vemos o social através da comunicação (social, hélas!) — e como vemos ou víamos Donald Trump.

5. Passámos mesmo a viver um tempo em que todas as forças políticas lutam arduamente pela sua própria visibilidade — em particular no espaço televisivo —, mas sem mostrar qualquer disponibilidade, muito menos qualquer espírito crítico, que as leve a problematizar o mundo como entidade mediática. Ficam-se pela pusilanimidade de uma dramaturgia desculpabilizante, perguntando, implicita ou explicitamente: "Como é possível que o povo tenha escolhido Trump?" — 2017 será também um ano de crise conceptual do trabalho político.

quinta-feira, dezembro 22, 2016

Wenders, Handke e os outros (1/3)

O novo filme de Wim Wenders é uma prodigiosa cerimónia cinematográfica ancorada nas palavras escritas por Peter Handke — este texto foi publicado no Diário de Notícias (16 Dezembro), com o título 'As palavras de Peter Handke filmadas em 3D por Wim Wenders'.

O mercado cinematográfico habituou-nos a associar a utilização das três dimensões às grandes produções de Hollywood, povoadas de heróis e super-heróis. Aí está, aliás, neste Natal, um novo capítulo da saga Star Wars, obrigando ao uso dos inevitáveis óculos... Pois bem, importa olharmos à nossa volta, reconhecendo que é mesmo preciso um pouco de tudo para fazer um mundo: o mais fascinante filme em 3D desta quadra (em boa verdade, do ano inteiro) chama-se Os Belos Dias de Aranjuez (em exibição) e tem assinatura do alemão Wim Wenders.
Convenhamos que qualquer cinéfilo minimamente atento saberá que não se trata de uma surpresa. Ao contrário de outros veteranos cineastas, nem sempre muito disponíveis para as mais recentes transformações técnicas, Wenders foi um dos primeiros a reconhecer as potencialidades formais e criativas do formato 3D, com ele registando as coreografias de Pina Bausch para o seu filme Pina, lançado em 2011. Nesse ano, na respectiva estreia mundial no Festival de Berlim, Wenders reconheceu mesmo que, “se não fosse o 3D”, não teria ousado filmar os trabalhos de Pina Bausch.
Porque é que o 3D é tão essencial para a elaboração de um filme como Os Belos Dias de Aranjuez? Precisamente porque, através dele, Wenders assume uma atitude de genuíno experimentador. Para ele, as três dimensões não têm de desembocar num artifício mais ou menos de ficção científica; o seu tratamento específico das imagens pode mesmo estar ao serviço de uma intensificação do realismo.
Sem dúvida uma palavra insólita (“realismo”), sobretudo tendo em conta que se trata de filmar a peça homónima de Peter Handke, um texto admirável centrado em duas personagens — um “homem” e uma “mulher”, de acordo com as indicações do autor — que dialogam sobre os enigmas das relações amorosas, a descoberta do desejo e a nostalgia de uma natureza que a nossa civilização abandonou (edição portuguesa: Documenta, 2014, com tradução de Maria Manuel Viana). O certo é que este é um filme que nos convoca para voltarmos a admirar as nuances da luz, o espaço e a sua profundidade, enfim, o rigor com que as palavras procuram preservar a complexidade anímica e simbólica de qualquer relação humana.

“Fora do tempo”

Há, por isso, um modo raro de representação nos actores de Os Belos Dias de Aranjuez. Reda Kateb e Sophie Semin não surgem como personagens que, de alguma maneira, nos vão revelar o interior da sua “psicologia”. Eles são presenças muito físicas — um par marcado pelos temas e problemas do século XXI — e também figuras de um performance abstracta em que se discute a própria possibilidade de acontecer alguma comunicação um com o outro, uns com os outros.
Como escreve Handke na nota introdutória da sua peça, tudo acontece “como que fora do tempo”. O filme de Wenders explora até às últimas consequências essa sensação de se estar sempre a falar de um presente obsessivamente presente (passe a redundância), sem que tal impeça o cinema de se afirmar como uma cerimónia em que a reprodução das coisas “como elas são” não recusa, antes parece atrair, uma envolvente magia.
É bem provável que Wenders e, sobretudo, o próprio Handke não se reconheçam nas experiências mais extremas do cinema de Marguerite Duras (1914-1996), com as palavras. Ainda assim, encontramos em Os Belos Dias de Aranjuez uma serena sensação de fim do mundo que faz lembrar as perturbantes intensidades de filmes como India Song (1975) ou Son Nom de Venise dans Calcutta Désert (1976) — como se o radicalismo das palavras (“amor”, “natureza”, “Aranjuez”) contaminasse o cinema com os fantasmas de uma utopia perdida.
Em boa verdade, Os Belos Dias de Aranjuez é o mais cristalino dos filmes, tão desarmante na sua transparência que podemos voltar a acreditar no cinema como pura exaltação da vida, do desejo de viver. Sem esquecer que, a certa altura, como uma aparição, somos visitados por um trovador chamado Nick Cave...

[ continua ]

Nine Inch Nails em vinyl

Os cinco temas de Not the Actual Events, novo EP dos Nine Inch Nails, estarão, por certo, disponíveis nas plataformas digitais (a partir de amanhã, 23). Em todo o caso, o seu lançamento faz-se sob o signo da revalorização do vinyl. No seu site, Trent Reznor colocou mesmo uma bela declaração que começa assim: "Nestes tempos de quase ilimitado acesso a toda a música do mundo, fomos levados a apreciar o valor e a beleza do objecto físico."
Novidade é o nome de Atticus Ross. Não pela sua (longa) colaboração com Reznor — por exemplo, entre as magníficas bandas sonoras que já assinaram, inclui-se a de A Rede Social (David Fincher, 2010), que lhes valeu um Oscar; antes porque, pela primeira vez, Ross surge como elemento oficial da banda. Um dia antes do lançamento, tivemos direito a escutar Burning Bright (Field on Fire).

Os 10 melhores álbuns pop/rock de 2016 (N.G.)


Há uma sensação estranha no momento de fazer as contas a 2016. É que, quando se chega a esta época do ano (e quem gosta de listas sabe disso), é habitualmente da soma de boas memórias que vive o balanço que vamos construindo. Pois a aritmética de 2016 sugere mais a subtração do que a adição. E o adeus a três referências maiores da cultura popular, e falo de David Bowie, de Prince, de Leonard Cohen, acaba por ser peça que quase mais pesa do que as contribuições que, em várias frentes da invenção musical, nos chegaram aos ouvidos ao longo do ano.

Todos eles, curiosamente, tiveram novos discos este ano (o de Prince na verdade tinha já surgido em formato digital, mas apenas num serviço, pelo que foi este ano que se fez ouvir melhor). Dois deles sugeriam já programas de despedida anunciada. Mas num deles não demos por nada até que, dois dias depois do lançamento do disco, a notícia que assombrou o mundo nessa manhã de 10 de janeiro nos deixou saber afinal do que falava David Bowie em Blackstar... E é talvez por aí que devemos começar a recordar o que de melhor temos a recordar dos discos que 2016 colocou na história destes 12 meses de edições...



Desta vez foi diferente, sem a surpresa a acordar-nos na manhã do seu aniversário. O dia do mês era o mesmo: 8 de janeiro. Mas ao contrário do que havia acontecido em 2013, quando o mundo despertou nessa manhã descobrindo que, após dez anos de silêncio, havia uma nova canção de David Bowie e que um álbum novo chegaria e março (gravado durante dois anos em Nova Iorque, em plena era do microblogging e sem que ninguém desse por isso), era chegado um novo disco do qual começámos a juntar peças aos poucos e que revelava aquele que era o seu álbum mais inventivo desde os tempos em que a cidade de Berlim vivia associada aos seus discos (se bem que só Heroes lá tenha nascido por inteiro). Mas mal imaginávamos, quando o estávamos a escutar pela primeira vez, o que na verdade ele guardava em si… Já tínhamos escutado sinais de reencontro de Bowie com o jazz nos dois temas do single que tinha editado em 2014, gravado com a orquestra de Maria Schneider. Depois, em finais de 2015, os temas Blackstar e Lazarus tinham lançados sinais encorajadores de que um Bowie mais negro, mas também mais inspirado, estaria a definir os contornos de um grande disco. Foi de facto um grande disco. Mas também uma carta de despedida, como poucas vezes um artista sabe deixar para quem ficar para a ler... Ou ouvir. Curiosamente outro disco maior de 2016 falava também de morte. Mas neste caso tratava-se da lamentação de um pai pela perda de um filho, fazendo de Skeleton Tree um dos melhores momentos da obra de Nick Cave com os Bad Seeds. A lista dos dez álbuns pop/rock (e periferias) do ano inclui ainda, em destaque, a proposta de uma nova canção eletrónica, angulosa e política, de Anohni, a visão de uma compositora (Anna Meredith) que derruba barreiras entre a música orquestral e a eletrónica e ainda o registo ao vivo do espetáculo que Kate Bush levou a palco em 2014 e que é dos raros álbuns live que justificam os euros que por ele nos pedirem. Na segunda metade do top 10 há mais um exemplo de excelência pop pelos Pet Shop Boys, um regresso de Paul Simon aos desafios sonoros e geográficos antes levantados em Graceland ou Rhythm of Saints, o reencontro (que já tardava) dos Avalanches com os discos, um segundo opus, mais sombrio, de C Duncan e ainda o disco que mostra como os Radiohead brilham quando arrumam bem as suas ideias.

1 David Bowie, “Blackstar”
2 Nick Cave and The Bad Seeds “Skeleton Tree”
3 Anohni “Hoplessness”
4 Anna Meredith “Varmints”
5 The K Fellowship (Kate Bush) “Before The Dawn”
6 Pet Shop Boys “Super”
7 Paul Simon “Stranger To Stranger”
8 The Avalanches “Wildflower” 9
C Duncan “The Midnight Sun”
10 Radiohead “A Moon Shaped Pool”

A emancipação de uma voz


A reedição da obra de Tori Amos em edições com som remasterizado e acompanhadas por extras tem agora um novo episódio. Há cerca de um ano os álbums Little Earthquakes (1992) e Under The Pink (1994) lançavam este formato para uma revisão de carreira que agora chega a Boys For Pele (1996), o disco que traduz as consequências de uma rutura e de vivências que desencadeariam em si reações que acabaram por determinar o curso dos acontecimentos daí em diante. O fim do relacionamento (pessoal e profissional) com aquele com quem tinha trabalhado a produção desses dois álbuns terá sido o primeiro elemento em jogo de uma série de acontecimentos entre a vida privada e artística que abriram alas à vontade de criar um álbum ainda mais focado em questões identitárias. Se havia já um questionar das relações com o feminino em temáticas diversas (nomeadamente as da religião), Boys For Pele, que chama ao título o nome de uma deusa havaiana, acentua mais ainda a ideia de criar um ciclo de canções que promovem um olhar ainda mais focado em questões de género. Se nas palavras as questões são abordadas de forma incisiva, no som há aqui uma vontade de explorar quer a abrasividade de formas menos polidas quer uma paleta de timbres e soluções instrumentais mais alargadas a outros horizontes, notando-se a presença evidente de um cravo, uma harpa, metais ou o recurso a coros.

A composição, tal como os arranjos, aposta em ousadias maiores, levando a voz de Tori Amos para fora das zonas de conforto anteriores, mostrando o alinhamento o retrato do enfrentar de um desafio que termina com final (artisticamente) feliz. Em suma, Boys For Pele abre novas possibilidades, que tanto a compositora como a cantora levam a bom termo, num trabalho que passa a tomar em mãos, daí em diante passando a ser ela mesma a escultora da sua obra desde o imaginar da primeira nota e palavra ao fechar da mistura de uma gravação.

Boys For Pele é um disco longo, surgindo na nova edição todo o conteúdo original do alinhamento (com 18 temas) no CD1. O CD 2 integra, por sua vez, temas originalmente editados nos lados B dos singles deste período e junta outros extras mais, alguns deles canções originalmente gravadas durante as mesmas sessões, mas que por diversas razões acabaram fora do alinhamento quer do álbum, quer dos singles. São disso exemplo Walk To Dublin (que entretanto surgiria mais tarde em outros lançamentos) ou To The Fair Motormaids of Japan, que aqui vê finalmente a luz do dia. Não falta também a versão remisturada de Professional Widow, que levou ainda mais longe as ousadias desta etapa na obra de Tori Amos.

A IMAGEM: Rembrandt, c. 1669

REMBRANDT
O Regresso do Filho Pródigoc. 1669

Os refugiados vistos pela Magnum

PAOLO PELLEGRINI
Ilha de Lesbos, Grécia
2015
O italiano Paolo Pellegrini obteve esta fotografia em Lesbos, em Setembro de 2015, num período em que naquela ilha grega chegaram a estar 15 a 20 mil refugiados (cerca de 70% provenientes da Síria), aguardando o seu registo pelas autoridades e alguma decisão sobre o destino que podiam seguir. Como ele recorda, a situação foi-se degradando — "dormindo no chão, sem acesso a instalações sanitárias, sob altíssimas temperaturas".
É apenas um dos exemplos com que a agência Magnum dá a ver o trabalho dos seus fotógrafos (incluindo depoimentos sobre as respectivas imagens), testemunhando a crise dos migrantes: Alex Majoli, Stuart Franklin e Olivia Arthur são outros profissionais representados num impressionante dossier que podemos descobrir no site da Magnum.

quarta-feira, dezembro 21, 2016

Nome próprio [citação]


>>> É muito bom ser-se um nome próprio que tem mais confiança numa nota escrita do que no seu corpo. Não é fácil explicar isso às pessoas que estão persuadidas que o seu corpo, quer dizer antropomorficamente a imagem do seu corpo no espelho, é o lugar de onde viria aquilo que dizem, logo aquilo que escrevem. É aliás por essa razão que aquilo que escrevem tem tão pouco interesse.

PHILIPPE SOLLERS
Le Cherche Midi, 2008

2016 — 5 telediscos [Jeff Buckley]


[ Coldplay ]  [ Kaytranada ]

Em 2016, Jeff Buckley (1966-1997) celebraria 50 anos; em 2017, terão passado 20 anos sobre a sua morte. 2016 fica também como um tempo de redescoberta da poética trágica de Buckley, através da edição de You and I, álbum de registos de 1993, um ano antes do lançamento do emblemático Grace, contendo várias versões de temas de outros autores e dois originais de Buckley (Grace e Dream of You and I). Como fazer, então, um teledisco para uma canção ligada a tão intensas memórias, para mais assombradas por um tão insuperável vazio? A resposta dada por Amanda Demme tem tanto de delicadeza como de perturbação — escutamos I Know It's Over (The Smiths) como a fábula de um interminável desejo de retorno ao silêncio da utopia materna.

2016 — 5 fotogramas [Sokurov]

Duas personagens contemplam a Mona Lisa. Estamos no Museu do Louvre, claro, mas não no museu que pertence à museologia — trata-se do espaço revisto e reinventado por Aleksandr Sokurov na sua Francofonia, desafiando as fronteiras tradicionalmente desenhadas entre representação e coisa representada. Ou ainda: Napoleão e Marianne (a figura alegória da República Francesa) são tão artificiosos, e também tão reais, quanto a dama que está no quadro. O cinema reproduz, não as coisas como elas são, mas o que nós somos através do modo como as imaginamos.

Ver + ouvir: Tears Run Rings,
Things Have Changed



Chamam-se Tears Run Rings, são de origem californiana mas hoje moram em lugares separados da costa oriental norte-americana. In Surges é o seu mais recente disco. Um álbum talhado em regime showgazer, invernoso, mas com aquela luz tão característica dos dias de inverno. Aqui fica um dos temas desse disco que, para já, está apenas disponível em suportes digitais.

Os Beatles... e o nono dia da semana

Não tinham avisado ninguém, mas quando pisaram o palco instalado no meio do relvado do estádio de Candlestick Park, em São Francisco (Califórnia, EUA), a 29 de agosto de 1966, os Beatles sabiam que aquele era um lugar onde não queriam regressar. Os tempos estavam a mudar. E tanto o seu último álbum – Revolver, editado semanas antes – como o também recente Pet Sounds dos Beach Boys mostravam que o estúdio era agora um espaço com novas possibilidades a explorar para os criadores de música. E, sem vontade em gastar tanto tempo na estrada a repetir canções e cumprir rotinas promocionais, era no estúdio que queriam concentrar as atenções. Nos novos discos, nos novos desafios… Assim sendo, aquele seria um adeus às plateias. Esse fim de uma era foi o começo de uma ideia para que o cinema regressasse ao universo dos Beatles. E depois de uma consulta exaustiva aos arquivos conhecidos e de pedidos para que particulares lhe mostrassem o que para todos nós era até aqui ainda desconhecido, Ron Howard criou o incrível Eight Days A Week, uma viagem através da etapa de vida dos Beatles na qual o palco era a sua casa. É um relato naturalmente pensado para ser contado no tempo e no espaço habituais para uma ida à sala de cinema. E tem em si as personagens, as imagens, as surpresas, os momentos de glória e também os de drama que uma trama ao serviço de uma narrativa cinematográfica pode explorar.

E agora?

E agora chega a hora de levar a experiência para casa. E se a possibilidade de ver e rever, de parar e puxar atrás, é uma das realidades do visionamento caseiro, já a capacidade de juntar algo mais ao filme é também outro argumento que pode valorizar, depois de visto o filme na sala escura, uma nova etapa do nosso relacionamento com a obra, agora em casa… E o disco de extras justifica esta ideia. Há sequências de imagens montadas – criadas durante as mesmas entrevistas que geraram os planos usados no filme – que nos permitem olhares complementares. E ali tanto se fala da história criativa da autoria das canções, como se observa com maior detalhe a génese da banda. Há ainda um lote com uma série de atuações ao vivo de canções que podemos ver na íntegra. E também depoimentos extra entre os quais aprofundamos descobertas feitas em Eight Days a Week… Como nas memórias das passagens pela Austrália e Japão (aqui com um ponto de vista mais vincado sob o mapa político que então acolheu a chegada dos fab four) e as palavras de Ronnie Spector, que recorda como, a pedido dos Beatles, ela os foi “salvar” do cerco das fãs e os levou, sem que ninguém desse por isso, a um diner no Harlem, onde comeram sem que ninguém os incomodasse, vivendo momentos quase incógnitos quando eram as estrelas de que mais se falava naquele momento em Nova Iorque. Este disco extra só por si já justifica a edição em DVD e Blu-Ray… É um pouco como o nono dia, da semana de oito, que Ron Howard tão bem retratou.