quarta-feira, outubro 12, 2016

Como pensar a herança de Chernobyl?

LA SUPPLICATION / Vozes de Chernobyl
Espantoso filme sobre a tragédia de Chernobyl: Vozes de Chernobyl está no Festival Cine Eco, em Seia — este texto foi publicado no Diário de Notícias (9 Outubro).

É bem provável que nos próximos meses ouçamos falar muito de La Supplication, admirável filme de Pol Cruchten que representa o Luxemburgo na corrida para uma nomeação para o Oscar de melhor filme estrangeiro (os prémios da Academia de Hollywood serão entregues a 26 de Fevereiro de 2017). A sua divulgação tem sido feita com o título internacional Vozes de Chernobyl, o mesmo do livro de Svetlana Alexievich (Nobel da Literatura 2015) em que se baseia. Por estes dias, integra a secção competitiva da 22ª edição do CineEco, o festival de temas ambientais de Seia a decorrer até dia 15, dirigido por Mário Jorge Branquinho e programado por José Vieira Mendes.
Estamos perante uma evocação do trágico acidente ocorrido na central nuclear daquela cidade ucraniana há 30 anos (26 de Abril de 1986). Mas não se trata de um típico documentário. Claro que há um impulso documental no olhar de Cruchten, apostado em evocar o acidente e dar a ver a dantesca devastação que continua a marcar a região de Chernobyl. Ao mesmo tempo, o cinema afirma-se através de um fascinante paradoxo: a aproximação da verdade envolve uma reconversão das relações convencionais entre imagens e sons, convocando o espectador para uma experiência que tem tanto de singular quanto de perturbante.
Através de uma elaborada galeria de vozes em off, somos confrontados com uma série de testemunhos de pessoas (habitantes da zona, médicos, professores, soldados, jovens nascidos depois do acidente) que viveram — e vivem — os efeitos dramáticos do desastre de Chernobyl. Como diz uma das mulheres, o seu marido deixou de ser o seu marido para passar a existir como “objecto radioactivo”. Ou ainda, face ao radicalismo da destruição: “A morte obriga-nos a pensar muito”.
Os testemunhos, recolhidos no livro de Svetlana Alexievich, são daquelas pessoas, embora elas não figurem nas imagens: são “substituídas” no ecrã, e também na banda sonora, por diferentes intérpretes (além do mais, na maior parte dos casos, a voz que escutamos para uma determinada personagem não provém da pessoa que surge nas imagens). O efeito de tudo isto, eventualmente desconcertante na sua descrição formal, não tem nada de formalista. Gera mesmo uma comovente transparência — tudo se passa como se assistíssemos a uma cerimónia coral em que a tragédia de Chernobyl adquire a dimensão de um álbum de factos e emoções em cuja organização o espectador também participa.
Cruchten já reconheceu a sua dívida criativa em relação à obra de Andrei Tarkovski. E é um facto que os cenários devastados de Vozes de Chernobyl, tal como registados pelo admirável director de fotografia que é Jerzy Palacz, podem levar-nos a evocar as paisagens hiper-realistas de Stalker (1979). Mas não há, aqui, qualquer “imitação” simplista: este é um invulgar objecto de cinema, por certo um dos filmes mais importantes de 2016.