segunda-feira, julho 04, 2016

Abbas Kiarostami (1940 - 2016)

Singularíssimo criador, mestre das relações entre documentário e ficção, símbolo universal do cinema iraniano, o realizador Abbas Kiarostami faleceu a 4 de Julho, em Paris, onde estava a ser tratado de um cancro — contava 76 anos.
Com uma formação ligada à poesia, à pintura e às artes gráficas, Kiarostami foi, de facto, o criador de um cinema total que, por assim dizer, leva cada filme a discutir o seu lugar na história das narrativas audiovisuais. Basta lembrar o emblemático Close-Up (1990), seguindo uma investigação em torno de um homem que se faz passar por outro importante cineasta do Irão, Mohsen Makhmalbaf — a partir de um "documentário" que se espraia por um delírio paradoxalmente realista, Kiarostami expõe a resistência do mundo à própria significação.
Encontramos a mesma metódica ambivalência em E a Vida Continua (1992), Através das Oliveiras (1994) ou O Sabor da Cereja (1997), este decisivo na sua projecção internacional, já que arrebatou a Palma de Ouro de Cannes, ex aequo com A Enguia, de Shohei Imamura — o respectivo trailer sugere um método formal emblemático: a deambulação de carro confunde-se com um movimento potencialmente infinito do próprio olhar da câmara.


Talvez possamos definir o labor formal de Kiarostami como o de um documentarista que pergunta, incessante e teimosamente: será que o real responde ao meu desejo de o conhecer/dar a ver? A interrogação envolve, antes do mais, a própria realidade iraniana e os sinais dispersos, mas sempre intensos, de um sistema social em que sentimos a tensão das relações e, em particular, os mecanismos de controle ou formatação do factor feminino — no limite, ele foi mesmo levado a fazer esse filme único e inclassificável que é Shirin (2008), sobre os rostos de mulheres que assistem à representação de um poema do séc. XII.
Por vezes, a concisão do documentário não renega a dificuldade de inventariação da pulsação do real, como acontece em ABC África (2001); no caso de Dez (2002), a sistematização descritiva — dez episódios vividos no interior de um automóvel em movimento — envolve também uma drástica interrogação da própria possibilidade de comunicação. Daí que, outras vezes, o dizer da(s) palavra(s) seja tão radical que permite-nos assistir à dinâmica (sensual, sem dúvida) das suas configurações e reconfigurações de poder — veja-se o breve e admirável No (2012).


O modo como o trabalho de Kiarostami se foi encaminhando para outros países — Cópia Certificada (2010), em Itália; Like Someone in Love (2012) no Japão — ilustra, afinal, a assunção de um paradoxal exílio: porque correspondendo aos convites do estrangeiro ele encontra condições para não parar de trabalhar; e porque os novos cenários e personagens "repetem" arquitecturas humanas e simbólicas que já conhecíamos dos filmes rodados no Irão. Como se, em última instância, a única pátria possível, de uma só vez concreta e imaginária, fosse o próprio cinema. E a obstinada liberdade das imagens e dos sons.

>>> Obituário: The Guardian + Le Monde.
>>> Abbas Kiarostami no Senses of Cinema.
>>> Abbas Kiarostami na Criterion Collection.
>>> Sobre as fotografias de Abbas Kiarostami.
>>> Entrevista na revista Film Comment.