quinta-feira, julho 07, 2016

A moral de Whit Stillman (1/2)

Com o filme Amor e Amizade, adaptado de uma novela de Jane Austen, o cineasta independente Whit Stillman reencontra o sabor de um certo romanesco clássico — esta entrevista foi publicada no Diário de Notícias (2 Julho), com o título '"Há formas maldosas de dizer a verdade"'.

De onde veio a decisão de fazer um filme como Amor e Amizade, inspirado na novela Lady Susan, de Jane Austen, cuja acção se situa há mais de dois séculos?
É mesmo um filme situado nos anos finais do séc. XVIII, antes da época em que, tradicionalmente, se coloca o trabalho de Jane Austen, mais ligado à Regência Britânica e às Guerras Napoleónicas. Creio que esta novela é mesmo o seu primeiro trabalho adulto. Admiro muito a sua obra, mas sempre senti que pegar num dos seus grandes romances, transformando-o num filme de 90 minutos, seria muito redutor. Neste caso, podíamos partir da sua escrita que, apesar de breve, não deixa de ser densa e, de alguma maneira, recheá-la para termos uma longa-metragem.

JANE AUSTEN
(1775-1817)
Os diálogos são, obviamente, essenciais — terá sido essa uma das razões para avançar para este projecto?
Sem dúvida, esse é mesmo um ponto comum a todos os meus filmes: o diálogo é um elemento essencial da narrativa. Digamos que o diálogo contém segredos que podem vir a explodir mais tarde.

Nesse sentido, a direcção de actores foi, de algum modo, semelhante a um trabalho de palco?
Não era essa a intenção. Claro que há sessões de casting, leituras do texto do filme, mas depois de escolhidos os actores não costumo ensaiar no contexto da rodagem — prefiro a frescura do momento.

Com esse tipo de organização, o trabalho dos actores costuma trazer-lhe boas ou más surpresas?
Por vezes, não é possível escolher os actores com a devida antecedência — podem entrar numa cena sem ter passado pelo necessário tempo de preparação. Mas neste caso não houve más surpresas.

Fala-lhes da célebre questão da “motivação” das personagens?
Não, nunca lhes falo nisso [riso].

E os clássicos do melodrama? George Cukor? Vincente Minnelli? São referências de algum modo importantes para si?
São autores que admiro, claro, mas não creio que as influências funcionem de forma linear. Em Cukor, por exemplo, o que mais me impressiona são alguns filmes que ele preparou e não dirigiu — é o caso de E Tudo o Vento Levou (1939) e também de um dos filmes mais comoventes de John Ford, O Vale Era Verde (1941). Muitas vezes, admiramos realizadores que fazem coisas muito diferentes das que nós próprios fazemos. No período clássico, além de Ford, gosto imenso de Alfred Hitchcock e Preston Sturges.

Apesar de se situar no séc. XVIII, Amor e Amizade tem uma estrutura que não será muito diferente da de outros filmes seus, como Metropolitan (1990) ou Barcelona (1994).
Talvez... Em que sentido?

No sentido em que todos funcionam como contos morais. E que a moral da história pode ser: por vezes, chegamos à verdade através da mentira.
Sim, concordo. Há pessoas que consideram que é preciso dizer sempre a verdade. Muitas vezes, estão apenas a tentar justificar formas pouco sábias e até maldosas de dizer a verdade — aqueles que se transformam numa espécie de gurus da franqueza e sinceridade estão a passar ao lado do essencial.

Amor e Amizade resultou da coprodução de vários países — como funcionou a confluência de todas as contribuições?
Há algo de estranho em tudo isso. Parece ser um filme muito inglês e, de facto, a maioria do elenco, com a contribuição essencial da Protagonist Pictures, é de origem inglesa. O certo é que o essencial do financiamento veio da Irlanda (Irish Film Board), França (canal Arte) e, por fim, dos investidores americanos que já tinham apoiado o meu primeiro filme. É o mais internacional possível, embora no ecrã se apresente como essencialmente inglês — digamos que, em termos mediáticos, fizemos um filme inglês.

Nos tempos que correm, é um filme fora do comum.
É mesmo. Não creio que haja muitos filmes contemporâneos que combinem, assim, a referência de Jane Austen com elementos de comédia. Foi muito bom podermos apresentá-lo no Festival de Sundance, onde teve honras de projecção no sábado à noite. A estreia internacional ocorreu em Roterdão e, depois dos EUA, Portugal é um dos primeiros países a estrear o filme. Além do mais, as “pessoas” de Jane Austen têm gostado.

Quem são as “pessoas” de Jane Austen?
Clubes, sociedades que estiveram presentes nas projecções que fizemos em Sundance. Autodenominam-se “janeites”. Ou então “austenians”. Gosto do termo — também sou um “austenian”.