segunda-feira, maio 02, 2016

Uma lição de Eduardo Lourenço

Eduardo Lourenço
De que falamos quando falamos de transcendência? Eduardo Lourenço recordou-nos as nossas crenças e desilusões — este crónica de televisão foi publicada no Diário de Notícias (29 Abril), com o título 'Crise de transcendência'.

Na entrevista concedida por Eduardo Lourenço a Fátima Campos Ferreira, emitida no dia 25 de Abril (RTP1), ouço e registo esta frase do entrevistado: “A Europa está sem nenhum referente de ordem transcendente — de nenhuma espécie.”
Sábias palavras proferidas por alguém que nos ensinou a perscrutar a realidade para além das evidências com que nos é servida — e, tantas vezes, televisionada. Pronunciava-se Eduardo Lourenço sobre as clivagens entre o Ocidente e o mundo islâmico, numa deambulação, necessariamente breve, a pretexto da Europa que somos (ou imaginamos ser).
Num dia em que algumas evocações televisivas do 25 de Abril pareceram empenhadas em reduzir a nossa história a uma colecção de vinhetas anedóticas, as palavras de Eduardo Lourenço vieram lembrar-nos que a transcendência não se reduz a uma “filiação” religiosa, por mais genuína que possa ser a sua origem ou sentidas as suas práticas. O apelo transcendental decorre da insuficiência existencial das trocas sociais — e se os indivíduos e as colectividades se reconhecem em tal apelo é também, necessariamente, para reforçar o valor intrínseco dessas trocas.
Num tempo em que Portugal e muitos países da Europa se acomodaram à contaminação do espaço televisivo pelos horrores da “reality TV”, a possibilidade de alguma transcendência é mais urgente do que nunca. Actualmente, Love on Top (TVI) vai ao ponto de consagrar a ideia de que partilhar a performance sexual num concurso de televisão é uma grande realização pessoal... Na emissão do dia 23, Teresa Guilherme ansiava mesmo por mais agitação: “Toda a gente achava que a Casa ia ser uma pouca vergonha... E afinal os nossos concorrentes estão tão envergonhados...” Dir-se-ia que a televisão mais grosseira se propôs destruir qualquer desejo de transcendência — no limite, a exposição obscena no ecrã é promovida como único modelo de sagrado.