segunda-feira, maio 09, 2016

Elogio de Oren Moverman (1/2)

Oren Moverman
FOTO: Carolyn Cole / Los Angeles Times
Ao longo de 2016, Viver à Margem, de Oren Moverman, fica, desde já, como uma das grandes estreias da produção americana — este texto foi publicado no Diário de Notícias (5 Maio), com o título 'Hollywood não desistiu do realismo social'.

Face à estreia de um filme tão brilhante como Viver à Margem, com argumento e realização de Oren Moverman (cineasta americano, nascido em Israel, em 1966), talvez seja útil interrogarmo-nos sobre a percepção corrente, em particular no espaço televisivo, da actual produção americana. Ou seja: quando Hollywood e as suas filiais gastam a esmagadora percentagem dos seus orçamentos publicitários a promover aventuras de “super-heróis” (cada vez mais barulhentas, formatadas e repetitivas), será que ainda existe mercado capaz de acolher um filme tão diferente, ousado e inventivo como este?
A pergunta justifica-se tanto mais quanto, embora construído a partir da observação de um contexto contemporâneo — as atribulações de um sem-abrigo na imensidão da grande metrópole novaiorquina —, Viver à Margem é um objecto obviamente devedor de toda uma nobre tradição (hollywoodiana, precisamente) em que a observação das convulsões sociais se traduz numa elaborada valorização das componentes dramáticas, da consistência das personagens e também, naturalmente, do trabalho específico dos actores.
Neste aspecto, Moverman consegue que o seu intérprete principal, Richard Gere, tenha em Viver à Margem uma das melhores composições de toda a sua vasta filmografia, emprestando à personagem de George, o sem-abrigo, uma estranha densidade que nem sequer depende do conhecimento das atribulações do seu passado — em boa verdade, a resistência a lembrar tais atribulações constitui mesmo um dos fundamentais traços de definição da personagem. Aliás, o elenco é todo ele exemplar, com destaque para a sempre subtil Jena Malone, no papel da filha de George, e Ben Vereen (lembram-se dele em All That Jazz, há quase 40 anos?), compondo um sem-abrigo dotado de um contagiante gosto pela especulação moral.
O que distingue Viver à Margem de uma crónica banalmente “simbólica” sobre os contrastes urbanos começa nessa sistemática atenção às singularidades das personagens. Deparamos, assim, com as marcas de um realismo (social, justamente) que começa no carácter irredutível de cada ser humano, sendo também indissociável de uma representação dos lugares, a começar pelas ruas de Nova Iorque, que recusa qualquer facilidade de “bilhete postal”. Há até um sentimento documental na filmagem dessas ruas que, em qualquer caso, nunca exclui uma minuciosa atenção à definição dramática das personagens, aos gestos que executam e às palavras que proferem.