terça-feira, maio 31, 2016

A IMAGEM: Signe Vilstrup, 2016

SIGNE VILSTRUP
Glamour / Itália
Maio 2016

CANNES 2016 — actores & actrizes

Jaclyn Jose, Ma' Rosa
Cannes foi também um festival de actores & actrizes — este texto foi publicado no Diário de Notícias (29 Maio), com o título 'A lição dos filmes de Cannes'.

Jaclyn Jose, uma das mais populares personalidades do cinema e da televisão das Filipinas arrebatou, há uma semana, o prémio de melhor actriz da 69ª edição do Festival de Cannes. A distinção, atribuída por um júri presidido pelo australiano George Miller (Mad Max), resultou do seu trabalho no filme Ma’ Rosa, de Brillante Mendoza, crónica pungente centrada numa mulher que, com o marido, dirige uma loja (“sari sari store”) de um bairro de Manila, lutando pela sobrevivência numa saga pontuada pelo tráfico de drogas, a corrupção da polícia e as mais cruéis formas de exploração do ser humano.
Apesar de tão importante reconhecimento no maior festival de cinema do mundo, Jaclyn Jose não foi tema forte das manchetes dos meios de comunicação das mais diversas paragens. Como o não foi Shahab Hosseini, o iraniano que recebeu o prémio de melhor actor pela sua composição em Le Client, de Asghar Farhadi (também distinguido na categoria de argumento). Dir-se-ia que há matrizes de percepção de determinados acontecimentos culturais e políticos — o Festival é apenas um exemplo sintomático — que triunfam automaticamente, favorecendo a circulação de determinadas imagens e bloqueando o conhecimento de outras.
É pena que assim tenha acontecido. E não em nome dos “melhores” ou “piores” filmes que passaram no festival. Antes porque, em tempos de consagração (também ela automática) das personagens artificiais e repetitivas de muitos “super-heróis”, Cannes celebrou os valores muito humanos da singularidade das identidades e da emoção dos corpos, precisamente através dos seus actores e actrizes.
Assim, pudemos ver composições tão admiráveis como a de Adèle Haenel, interpretando uma jovem médica confrontada com a inesperada violência do seu quotidiano (La Fille Inconnue, de Jean-Pierre e Luc Dardenne), ou Isabelle Huppert, percorrendo o perturbante labirinto afectivo e social de uma mulher vítima de violação (Elle, de Paul Verhoeven). Sem esquecer os subtis trabalhos de Sandra Hüller (Toni Erdmann, de Maren Ade), Sónia Braga (Aquarius, de Kleber Mendonça Filho) e Taraneh Alidoosti (também em Le Client).
São, curiosamente, todos eles, exemplos de actrizes. As suas interpretações contrariam qualquer visão estereotipada ou moralista das personagens femininas, facto que, no contexto específico de Cannes e do seu impacto mediático, contrasta também com a percepção mais esquemática do mais ou menos feérico guarda-roupa na passadeira vermelha do Palácio dos Festivais.
Não se trata, entenda-se, de renegar a dimensão de celebração e espectáculo que um acontecimento deste teor sempre evolve (houve, como sempre, vestidos deslumbrantes na passadeira vermelha). Trata-se, isso sim, de não secundarizar a riqueza temática e o valor simbólico dos filmes que passaram em Cannes — daqui a muitos anos, quando se evocar esta edição do certame, só eles restarão.

Miles Davis & Robert Glasper

O pianista Robert Glasper é responsável pela banda sonora de Miles Ahead, o muito aguardado filme sobre Miles Davis, interpretado e dirigido por Don Cheadle (estreia portuguesa: 14 Julho). Entretanto, Glasper apresentou um outro trabalho em que a relação com a herança de Miles se traduz na reinvenção de vários dos seus temas, contando com a colaboração de talentos tão diversos como Bilal, Erykah Badu, Laura Mvula, John Scofield e Stevie Wonder — chama-se Everything's Beautiful e podemos descobrir aqui um pouco dos seus serenos contrastes através do tema Ghetto Walkin' (com Bilal) e ainda de um pequeno video de apresentação.



segunda-feira, maio 30, 2016

Masculino/feminino (segundo Ozon)

Um maravilhoso acontecimento da mais recente produção francesa: em Uma Nova Amiga, François Ozon volta a percorrer o labirinto do masculino/feminino — este texto foi publicado no Diário de Notícias (26 Maio), com o título 'Um policial sobre o masculino e o feminino'.

Há no cinema francês uma tradição romanesca que está longe de se esgotar em qualquer ilusão romântica. Digamos que é a tradição que se pode condensar num clássico como Lola Montès (1955), de Max Ophüls: os artifícios da paixão e as utopias da beleza desembocam, afinal, na nitidez da morte. François Ozon é o herdeiro mais directo, porventura mais legítimo, dessa tradição em que, obviamente, também podemos incluir os nomes de autores tão admiráveis como François Truffaut nos tempos heróicos da Nova Vaga ou, mais recentemente, André Téchiné. E tanto mais quanto o trabalho de Ozon recusa qualquer colagem copista seja a quem for, distinguindo-se antes por uma pesquisa muito pessoal de novas linguagens.
O seu filme mais recente, Uma Nova Amiga, consegue a proeza de transfigurar um belo conto de Ruth Rendell (The New Girlfriend, lançado em 1985) numa aventura afectiva e simbólica através das fronteiras convencionais do masculino e do feminino. Em cena está a relação de Claire (Anaïs Demoustier) e David (Romain Duris), este viúvo de Laura (Isild Le Besco), a grande amiga de Claire. A ausência de Laura vai ser vivida como uma aventura de descoberta em que a verdade dos desejos passa por (e, num certo sentido, exige) uma transfiguração de David num outro ser — entenda-se: numa mulher, de nome Virginia.
Se outras razões não houvesse para celebrar o filme de Ozon, a composição de Romain Duris seria suficiente. Ele consegue interpretar a “passagem” de David a Virginia através de um misto de perplexidade e desejo, medo e fascínio, que intensifica uma verdade essencial do cinema de Ozon. A saber: a identidade sexual como um simulacro que o amor não confirma, antes discute e liberta.
No plano social e político, o trabalho de Ozon não pode ser desligado de toda uma conjuntura de reavaliação de usos e costumes em que a definição clássica do núcleo familiar é posta à prova pela reconversão (sexual, antes do mais) dos seus protagonistas. Em todo o caso, importa não reduzir Ozon a um autor panfletário, muito menos colado a qualquer discurso emanado da esfera específica da política. Sem menosprezar os sinais do nosso presente, Uma Nova Amiga pode ser definido como um melodrama de garboso primitivismo em que, ao interrogarem os seus comportamentos, as personagens centrais são também levadas a avaliar o modo como o irredutível da morte se imiscui nas suas relações. Tudo isto, convém sublinhar, através de uma teia dramática que tem o seu quê de policial.

domingo, maio 29, 2016

Jenny Hval a caminho de um novo álbum

A inspiração, diz a norueguesa Jenny Hval, vem dos filmes de terror da década de 70 e desemboca num discurso pessoal de reflexão — "um moderno diário poético entre o efémero e a transcendência". Saberemos os resultados em Setembro, quando ela lançar o seu quarto álbum de estúdio, Blood Bitch, pouco mais de um ano decorrido sobre o magnífico Apocalypse, Girl. Para já, podemos descobrir o enigmático Female Vampire.

CANNES 2016 — elogio dos clássicos

Será que os clássicos vão ter repercussão, em particular no espaço televisivo? — esta crónica de televisão foi publicada no Diário de Notícias (27 Maio).

No recente Festival de Cannes (11/22 Maio), a secção de clássicos esteve longe de fazer manchetes nos noticiários televisivos (a começar pela França, entenda-se). E, no entanto, por lá passaram cópias restauradas de títulos tão significativos com Contos da Lua Vaga (1953), do mestre japonês Kenji Mizoguchi, ou Masculino Feminino (1966), belíssima crónica social dos tempos da Nova Vaga francesa com assinatura de Jean-Luc Godard, a par de raridades absolutas como Ikarie XB 1 (1963), de Jindrich Polak, produção checoslovaca justamente apontada como um antepassado do 2001: Odisseia no Espaço (1968), de Stanley Kubrick.
A relativa indiferença do universo televisivo em relação aos filmes “antigos” corresponde, afinal, a uma atitude corrente: o culto das memórias cinéfilas deixou de ser uma prioridade, prevalecendo antes uma visão ligeira, mais ou menos pitoresca, da história do cinema.
Não podemos generalizar, é verdade. E não devemos esquecer alguma diversificação a que se tem assistido no cabo. No contexto português, mesmo não esquecendo a ausência de qualquer discurso histórico capaz de enquadrar os clássicos, importa referir o significativo aumento de produções de há várias décadas nos canais TVCine — recordo o exemplo recente de uma esplendorosa cópia de Duas Semanas Noutra Cidade (1962), de Vincente Minnelli [imagem promocional ilustra este post].
Os filmes apresentados em Cannes não são uma curiosidade museológica, reflectindo o valor que tem sido reconhecido aos restauros digitais. A sua existência favorece um genuíno enriquecimento da oferta que se sente no mercado do DVD (e, em particular, do Blu-ray), potenciando também o âmbito das programações televisivas. Do ponto de vista das representações culturais, está em jogo a superação de uma visão caricatural dos filmes de todos os passados, devolvendo-os ao presente, criando condições para que os descubramos na sua perene actualidade.

Vicente da Câmara (1928 - 2016)

FOTO: Instituto Camões
Figura lendária da história do fado, senhor de uma voz melodiosa, exemplarmente clássica, Vicente da Câmara faleceu no dia 28 de Maio, em Lisboa — contava 88 anos.
O seu envolvimento com o fado foi fortemente influenciado pelo pai, D. João da Câmara, cantor lírico e locutor da Emissora Nacional, e pela tia, a fadista Maria Teresa de Noronha. A sua primeira gravação, Fado das Caldas, data de 1948. Com uma presença regular na Rádio Renascença ao longo dos anos 50, foi também uma figura pioneira nas emissões da RTP; na década de 80, a sua carreira teve um importante desenvolvimento através de muitos espectáculos no estrangeiro (desde Espanha e França até à Coreia do Sul e Malásia). Na mitologia do fado, o seu nome é indissociável de A Moda das Tranças Pretas [video], gravado na década de 50. Passou pelo cinema, integrando o elenco de A Última Pega (1964), de Constantino Esteves, em que contracenava com Fernando Farinha; participou também no filme Fados (2007), do espanhol Carlos Saura. O seu derradeiro álbum, O Rio que nos Viu Nascer, foi editado em 2006.


>>> Obituário no Diário de Notícias.
>>> Vicente da Câmara no Museu do Fado.

sábado, maio 28, 2016

Frankie Cosmos em 4K

Frankie Cosmos
[FOTO: Matthew Priestley / W Magazine]
Em Outubro de 2015, o site Pitchfork e as câmaras GoPro lançaram o projecto GP4K. Objectivo: produzir um conjunto de telediscos com a nova câmara HERO4 Black, tirando partido das suas espantosas imagens com resolução 4K. Uma das experiências foi feita com Outside with the Cuties, canção de Frankie Cosmos, incluída no seu segundo álbum, Next Thing.
Com realização de Garrett Weinholtz, o teledisco coloca a intérprete no cenário real & surreal das paisagens miniatura do museu de Northlandz, em Flemington, New Jersey, gerando um fascinante efeito de contraste e complementaridade. Isto sem esquecer, claro, que as canções de Frankie Cosmos (nome artístico de Greta Kline) prolongam o minimalismo do seu registo de estreia, Zentropy (2014), e também a sua subtileza poética — podemos escutar o álbum na base deste post.



Canon — ser ou não ser uma estrela

Em cima, uma esteticista de Lisboa; em baixo, o dono de uma restaurante de Bangalore (Índia) e uma contabilista parisiense — são variantes de uma sugestiva campanha das câmaras fotográficas Canon, fotografando personagens anónimas em poses que evocam algumas celebridades; concebida pela agência japonesa Ogilvy & Mather, a sua designação não podia ser mais sugestiva: "Everyone can be a star in front of the right camera" — ou como a câmara também faz a personagem.

sexta-feira, maio 27, 2016

Adult Jazz, opus 2

Os Adult Jazz estão de volta. Dois anos depois do magnífico Gist Is, os britânicos de Leeds apresentam Earrings Off!, segundo álbum que elege a dialéctica corpo/sociedade como tema aglutinador das suas canções. O menos que se pode dizer do primeiro tema divulgado, Eggshell, é que a sua liberdade poética volta a enraizar-se num gosto experimental que será jazzístico, pelo menos, no espírito — o teledisco, austero e magnífico, tem realização de Sam Travis.

I stuff my courage with a sock
I stuff my courage and I know what's going on
And now the language is stuck
Maybe the language doesn't know what's going on

I shrug my luggage off
I shrug my luggage and be painless in a month
I will be holy and bold
Without a handle, as a doll with only a bump

And my body cases lead smoke
Like an eggshell full of black wool

I stuff my courage with some socks
I stuffed my courage, strutted foxy like a fox
And if the body is a rock
Rock body tell me what I'm not

I mark a circle on the floor
I take a breath, and then a toothbrush to my core
And it's a sacred fight
I mist the mirror and it tells me that I'm right

And my body cases lead smoke
Like an eggshell full of black wool

A boy with a bow or a girl without one
A boy with a bow or a girl without one
Is easier said than done
I'm pacing up the edge of my room
Half-proud

Compulsory, essential song
Each line
I sing along, I know that it's wrong
Even now
I still feel fear
Feel caked in wrong
It's in the bell curve
I lick along
And get moral feelings

We'll feast on moths
With salted wings
We'll drink the blood of anything
So let's talk
Creature to creature

quinta-feira, maio 26, 2016

Futebol, cultura & sociedade (2/2)

No futebol televisivo, o prazer do jogo está a ser frequentemente substituído por discursos mais ou menos insultuosos em que o gosto de ver já não conta — este texto foi publicado no Diário de Notícias (20 Maio), com o título 'A morte do social'.

[ 'A cultura do futebol' ]

1. Da política ao futebol, o calendário social passou a estar dominado por “factos” que conseguem ocupar tempos imensos da oferta televisiva. Assim, um congresso de um partido político ou um jogo de futebol já não são tratados como se cada um deles fosse um acontecimento. Aliás, se acontecimento existe, já não damos por ele, de tal modo a sua identidade surge emparedada por discursos que tendem a esvaziar as suas potenciais significações: primeiro, porque o seu tratamento começa em mil e uma antecipações (“antecipar” passou a ser um modo pueril de “noticiar”) que transformam a informação numa colagem arbitrária de redundâncias; depois, porque o pós-acontecimento é vivido através de noções banalmente deterministas (sensíveis no modo como as “reportagens” de rua passaram a ser construídas a partir de interpretações incutidas nos entrevistados).

2. Sintomático é o facto de muitos discursos jornalísticos, recusando pensar a complexidade do mundo a que pertencem, terem passado a usar as “redes sociais” como matéria noticiosa obrigatória, não poucas vezes emprestando-lhes a dimensão de dogma alheio a qualquer factor humano. Se o social é esse labirinto de ideias, valores e práticas que, melhor ou pior, se constrói e reconstrói através das relações humanas, as suas singularidades estão a ser metodicamente anuladas pelo privilégio jornalístico que é conferido à formatação televisiva de todos os comportamentos. Chegámos ao ponto em que a importância do que quer que seja se mede (ou sugere) em função do ruído que provoca em televisão ou, na Internet, através do número de links que consegue gerar.

3. A exigência do olhar e o prazer da escuta estão em crise em televisão. Entenda-se: olhar, sentindo que não podemos ver tudo; escutar, sabendo que o som pode ser mais realista que a imagem. Por vezes, temos a sensação triste de que tal crise passou a ser um método televisivo.

SOUND + VISION Magazine
— hoje, especial CANNES

Ken Loach distinguido com a Palma de Ouro, por I, Daniel Blake, é a primeira e incontornável memória de Cannes/2016. Hoje, em mais uma edição do nosso Magazine, na Fnac, falamos da 69ª edição do festival, propondo ainda algumas memórias da sua história — a partir das 18h30, na Fnac do Chiado.

quarta-feira, maio 25, 2016

Facebook [citação]

>>> Desde o Facebook e os feeds do Twitter que aplicamos, até aos logaritmos que determinam os resultados das nossas pesquisas na Web a partir da nossa história de procura e localização, as nossas principais fontes de informação são cada vez mais organizadas no sentido de nos devolver o mundo como já o vemos — dão-nos o conforto das nossas opiniões sem o desconforto do pensamento.

22 Maio 2016

Vem aí novo álbum de The Kills

Já tínhamos escutado (e visto) duas canções do novo álbum de The Kills. Assim, depois de Doing It to Death e Heart of a Dog, aí está o teledisco de Siberian Nights, dirigido pelo actor Giovanni Ribisi, apelando a uma sensação primitiva da natureza e da sua relação agreste com o mundo dos humanos. Com lançamento para 3 de Junho, o novo registo de Alison Mosshart e Jamie Hince chama-se Ash & Ice.

I could whip you up like cream
I could drink your seven seas
Is that too close for comfort?

I could make you come in threes
I’m half way to my knees
Am I too close for comfort?

For the tyrants in a rut, I got a love
For the gutless dogs, I got a love
For the doomed youth, I got a love

Won’t you tell me please
Why they got no love for me
Won’t you tell me please
Why they show no love for me

I’ll be charging through your dreams
Riding bare chest silver steed
Am I too close to the bone?

Shake a little hup two three
I’m Jesus, rip my jeans
Am I too close for comfort?

For the millionth time, I got a love
For the blue eyed boys, I got a love
For the cruel youth, I got a love

Won’t you tell me please
Why they got no love for me
Won’t you tell me please
Why they show no love for me

Won’t you help me get through these Siberian nights?
Won’t you help me get through these Siberian nights?
You know it’s hard for me to be alone
Tomorrow we’ll go back to our sides
But tonight I need some warmth

terça-feira, maio 24, 2016

Breve memória de Cannes

Entre grandes e pequenos acontecimentos, vale a pena (re)lembrar que o essencial do Festival de Cannes não acontece na passadeira vermelha... Este texto foi publicado no Diário de Notícias (23 Maio), com o título 'Olhar à nossa volta'.

Na sessão em que foi apresentada uma das mais belas revelações desta edição de Cannes — o filme argentino La Larga Noche de Francisco Sanctis, de Francisco Márquez e Andrea Testa (secção “Un Certain Regard”) —, Thierry Frémaux, delegado geral do certame, fez questão em sublinhar um dado curioso: a vitalidade da produção da Argentina existe em paralelo com uma velha tradição de crítica e jornalismo cinematográfico.
Escusado será dizer que não se trata de estabelecer qualquer hierarquia corporativa entre cinema “filmado” e cinema “escrito”. Em todo o caso, importa não ceder ao simplismo dos tempos: muitas conjunturas marcantes da história do cinema (a começar, claro, pela Nova Vaga francesa) integram a reflexão escrita e o pensamento teórico como elementos fundamentais da sua dinâmica.
No contexto tão específico de um certame como o Festival de Cannes, este tipo de perspectiva tem tanto mais valor quanto sabemos que as visões mais ligeiras, dominadas pelo fascínio dos momentos efémeros da passadeira vermelha, tendem a reduzir a pluralidade dos filmes às ilusões da espuma mediática. Obras como La Larga Noche de Francisco Sanctis (sobre as memórias dramáticas da ditadura militar) convocam o espectador para uma compreensão dos factos individuais e da história colectiva capaz de recusar, ponto por ponto, a aceleração e os valores deterministas da ideologia televisiva dominante.
Mais do que nunca, num contexto de reconversão tecnológica (digital) dos filmes e da própria ideia de cinema, é isso que está em jogo. A saber: a defesa do cinema como um acontecimento capaz de, literal ou simbolicamente, nos ajudar a olhar à nossa volta. Do meu ponto de vista, La Fille Inconnue, dos irmãos Dardenne, foi o exemplo modelar de tal atitude.

segunda-feira, maio 23, 2016

Futebol, cultura & sociedade (1/2)

No futebol televisivo, o prazer do jogo está a ser frequentemente substituído por discursos mais ou menos insultuosos em que o gosto de ver já não conta — este texto foi publicado no Diário de Notícias (13 Maio), com o título 'A cultura do futebol'.

1. Vejo o comentador de futebol Rui Santos (SIC Notícias) a chamar a atenção para aquilo que está a “estragar o futebol”. Refere, em particular, as “lógicas de comunicação” dos chamados clubes grandes que confundem “rivalidade” com “boçalidade”, alimentando um clima de permanente agitação mediática (que, a meu ver, corresponde a uma violenta infantilização dos espectadores). Não quero favorecer o maniqueísmo de considerar Rui Santos uma voz isolada. Não se trata de criar “heróis” ou “anti-heróis” — já basta o que basta. Em todo o caso, a saudável contundência das suas palavras tornou-se coisa rara no território televisivo. Creio mesmo que passou a haver formas discursivas, provenientes de todos os quadrantes do futebol, que estão a favorecer um esvaziamento moral do simples gosto de admirar um clube (seja ele qual for). Por vezes, algumas discussões em torno de um penalty são de tal modo primárias e infelizes que o espectador não pode deixar de pensar: para simpatizar com um determinado clube, é preciso aceitar este tipo de discurso?

2. Na prática, assiste-se a um trágico esvaziamento cultural do futebol. E não devemos ter medo de usar a palavra cultura a propósito de futebol. Porque a cultura não é “ópera & bailado”, como proclamam os cínicos que menosprezam o valor de qualquer labor artístico. A cultura é o imenso caldeirão de valores (ou da falta deles) que marcam todos os meandros de qualquer tecido social.

3. Ora, no futebol, parece ter triunfado uma cultura de “guerra civil” em que já nada mais conta a não ser a possibilidade de difamar o adversário, reduzindo-o a vítima simbólica de uma noção pueril de triunfo e celebração. Tudo isto acontece num contexto (português e internacional) em que a arte de dar a ver o futebol através das transmissões televisivas evoluiu de forma fascinante. Mas quem é que ainda está, realmente, a olhar para a beleza do jogo?

Ken Loach vence em Cannes

Ken Loach e Dave Johns — rodagem de I, Daniel Blake
Ken Loach fez um drama social recorrendo a Dave Johns, um conhecido actor cómico: I, Daniel Blake é, no fundo, um objecto que retoma as raízes realistas do trabalho de Loach, insistindo em expor os desequilíbrios sociais do nosso presente. Foi o filme que lhe valeu uma segunda Palma de Ouro no Festival de Cannes (dez anos depois de Brisa de Mudança). O realismo esteve, aliás, também presente nos prémios de interpretação para a filipina Jaclyn José, em Ma' Rosa, de Brillante Mendoza, e o iraniano Shahab Hosseini, em Le Client, de Asghar Farhadi — palmarés integral no site do festival.

sexta-feira, maio 20, 2016

CANNES 2016 — Léaud

Léaud. Jean-Pierre Léaud. O eterno Antoine Doinel dos filmes de François Truffaut (Os 400 Golpes foi a revelação de Cannes/1959) surge agora em pose de Luís XIV, sob a direcção do espanhol Albert Serra. O filme, La Mort de Louis XIV, é um exercício de desconcertante contenção cenográfica, no essencial dando-nos a ver a agonia do Rei como uma acumulação de gestos teatrais ou protocolares, reafirmando o poder como fantasma de si próprio — estranho, estranhamente sensual, subtilmente político.

CANNES 2016 — Jarmusch (2)

Iggy Pop revendo, comentando e ironizando a história de The Stooges — Jim Jarmusch faz um documentário, Gimme Danger, num registo tão tradicional quanto eficaz, sublinhando o facto de a banda ter sido uma das mais influentes na definição de décadas de rock'n'roll. Ou como Cannes continua a celebrar a pluralidade do género documental.

CANNES 2016 — Jarmusch (1)

Adam Driver em motorista de autocarro, filmado por Jim Jarmusch: Paterson é a história de um homem chamado Paterson que vive na cidade de Paterson, escrevendo poesia e tendo como referência o livro Paterson, de William Carlos Williams. Jarmusch continua a experimentar as variações do seu realismo mágico, seduzido pela insólita transparência do quotidiano e pelas promessas de outros mundos que por ele circulam. Simples e directo. Complexo e metafórico.

quinta-feira, maio 19, 2016

Cannes 2016 — humanismo

Quando chega La Fille Inconnue, dos irmãos Dardenne, sentimos que mudamos de universo. Não porque eles nos falem de mundos mais ou menos galácticos, antes porque partem da "neutralidade" do quotidiano para, pacientemente, metodicamente, nos exporem o que nele é simulacro, equívoco ou apenas desgaste de percepção imposto pelo labor das ideologias dominantes. A história da médica (espantosa Adèle Haenel!) que tenta desvendar o enigma da "rapariga desconhecida" a que o título se refere transfigura-se, assim, num exercício crítico de realismo humanista, muito à frente de quase tudo o que tem sido possível ver neste festival — olhar o mundo é também discutir os pressupostos, valores e expressões da sua (des)ordem.

Cannes 2016 — utopia

Há quem já comece a arriscar dizer que o papel de Viggo Mortensen em Captain Fantastic lhe vai trazer uma nomeação para o Oscar de melhor actor (já teve uma, em 2008, com Promessas Perigosas, de David Cronenberg). Não deixa de ser uma ironia saborosa: com ou sem nomeação, a personagem de Mortensen talvez se possa definir como uma espécie de anti-super-herói, enredado no labirinto utópico que construiu. Ele é um pai de seis filhos (da infância à beira da entrada para a universidade) que, por uma série de circunstâncias sociais e conjugais, os educou num mundo "alternativo", ligado a conceitos radicais de sobrevivência — o filme é a história desse projecto e do seu inevitável preço a pagar face aos desvios que a realidade impõe. Escrito e dirigido por Matt Ross, eis um exemplo de um filme inclassificável, contra a corrente e, ao mesmo tempo, vibrante e caloroso.

quarta-feira, maio 18, 2016

CANNES 2016 - Brasil

Há oito anos que o Brasil não surgia na secção competitiva de Cannes. Regressa agora com Aquarius, de Kleber Mendonça Filho, filme que consegue três proezas enredadas umas nas outras:
1 - dar conta de uma situação de crise social a partir de um sugestivo microcosmos (uma mulher que quer conservar o seu andar, num prédio de nome 'Aquarius', resistindo às investidas de uma poderosa empresa de construção);
2 - definir uma curiosa galeria de personagens capazes de reflectir as mais diversas posições sociais, sem se esgotar em "simbolismos" mais ou menos deterministas;
3 - relançar Sónia Braga, não numa qualquer variação "juvenil", antes oferecendo-lhe um papel que faz jus à sua idade, ao mesmo tempo valorizando a sua capacidade de composição.
Se é verdade que os efeitos mais ou menos consensuais se podem reflectir no palmarés, então não será arriscado prever que Aquarius sairá de Cannes com algum prémio.

sábado, maio 14, 2016

CANNES 2016 — Spielberg

Para recriar o conto The BFG (Big Friendly Giant), de Roald Dahl, Steven Spielberg reuniu a pequena Ruby Barnhill com o digitalmente transfigurado Mark Rylance. Cinco anos passados sobre a experiência de As Aventuras de Tintin: O Segredo do Licorne, o desenvolvimento das técnicas de "performance capture" gerou uma nova sensibilidade do espaço que se traduz também numa renovada energia da fábula: The BFG nasce da confluência brilhante de tudo isso, para mais preservando (ou melhor, recuperando) um gosto realista — sobretudo nas paisagens — a que, uma vez mais, o director de fotografia Janus Kaminski corresponde com o seu invulgar talento.

CANNES 2016 — biografia

Que é, afinal, fazer a biografia de alguém? Para mais, se o biografado tiver a dimensão literária, política e mitológica do poeta chileno Pablo Neruda (1904-1973)? A resposta de Pablo Larraín, no seu admirável Neruda, envolve o reconhecimento de que biografar consiste em ocupar o lugar do outro, permanecendo o mesmo, desse processo nascendo um jogo de espelhos e contaminações que pode questionar todos os valores de cada um dos envolvidos. Para mais quando o biógrafo de Neruda (Luis Gnecco) é o polícia (Gael García Bernal) que o persegue durante a agitação política de finais da década de 40 — cinema de invulgar inteligência narrativa.

sexta-feira, maio 13, 2016

CANNES 2016 — sonho

Grande Marco Bellocchio! O italiano que não está na competição oficial (aliás, este ano, não há um único título italiano a concorrer para a Palma de Ouro...) surgiu na abertura da Quinzena dos Realizadores com o magnífico Fai Bei Sogni. Baseado num livro de Massimo Gramellini (Tem Bons Sonhos, Bertrand, 2013), o filme traça o retrato, ao mesmo tempo sensual e utópico, da relação de uma criança com a mãe que, por assim dizer, persiste década após década através da ignorância — ou do desejo de não saber — das condições em que a mãe morreu... É uma história de amor tão irredutível quanto universal, remetendo-nos, claro, para os tempos mais primitivos da obra de Bellocchio, com as suas muitas e contrastadas convulsões familiares. Ele que fez Em Nome do Pai (1971), poderia ter chamado a este seu novo filme 'Em nome da mãe'.

Elogio de Oren Moverman (2/2)

Richard Gere e Ben Vereen — VIVER À MARGEM
Ao longo de 2016, Viver à Margem, de Oren Moverman, fica, desde já, como uma das grandes estreias da produção americana — este texto foi publicado no Diário de Notícias (5 Maio), com o título 'Hollywood não desistiu do realismo social'.

[ 1 ]

Moverman, convém lembrar, não é um principiante, mesmo se este é apenas o seu terceiro título como realizador, depois de O Mensageiro (2009), sobre veteranos da guerra no Iraque, e Rampart – O Renegado (2011), centrado num polícia de Los Angeles assombrado pelas memórias do Vietname, ambos protagonizados por Woody Harrelson. Na sua carreira incluem-se também alguns notáveis argumentos para outros cineastas, com destaque para I’m Not There (2007), a poética deambulação de Todd Haynes pelo universo de Bob Dylan, e Love & Mercy (2014), retrato íntimo e paradoxal de Brian Wilson, o mago musical dos Beach Boys.
A delicadeza com que Moverman sabe organizar os tempos da narrativa, num misto de lentidão contemplativa e aceleração emocional, definem-no como legítimo herdeiro de autores como John Cassavetes (pela relação criativa com os actores) ou Robert Altman (de quem partilha o gosto pela observação de acções tão prolongadas quanto enigmáticas).
A riqueza iconográfica da sua visão realista, especialmente sofisticada nas sequências nocturnas, não será alheia à colaboração com o muito talentoso Bobby Bukowski, director de fotografia de todos os seus filmes. Bukowski voltará a integrar a ficha técnica do novo filme de Moverman, The Dinner, com lançamento previsto para 2017 — será também o reencontro com Richard Gere, desta vez na companhia de um invulgar elenco feminino que inclui Laura Linney, Rebecca Hall e Chlöe Sevigny.

quinta-feira, maio 12, 2016

CANNES 2016 — realismo

Vai ser, por certo, uma das palavras chave deste festival: realismo. Ou talvez, melhor: realismos. E, nesse domínio, os romenos continuam na linha da frente, desde logo com o novo filme de Cristi Puiu, Sieranevada (Cristian Mungiu também surgirá na competição). Dir-se-ia uma reportagem sobre um almoço familiar que, embora com um motivo grave — uma celebração religiosa em homenagem ao defunto chefe de família —, se vai transfigurando num quase vaudeville temperado de sugestões trágicas, além do mais servido por um exemplar conjunto de actores. E se quisermos formular a mais desconcertante pergunta teórica — como rodar mais de duas horas de um filme onde a câmara quase não cabe? —, encontramos aqui a resposta.

CANNES 2016 — nostalgia

Woody Allen sorri para os seus actores, Kristen Stewart e Jesse Eisenberg: a imagem reflecte a alegria de um projecto como Café Society (abertura do festival, extra-concurso), revisitando em tom romântico os bastidores de Hollywood na década de 30. É um filme que confirma o trabalho de argumento de Woody Allen como base essencial de todas as suas narrativas, neste caso reacendendo uma nostalgia em que se cruzam a mitologia e a crueldade. Sem esquecer a fundamental contribuição da direcção fotográfica de Vittorio Storaro — apetece sermos proféticos e dizer, desde já, que Storaro vai ter, no mínimo, uma nomeação para o Oscar.

quarta-feira, maio 11, 2016

CANNES 2016 começa com Woody Allen

Café Society, de Woody Allen, abre hoje, oficialmente, extra-competição, a 69ª edição do Festival de Cannes. Este ano as decisões oficiais serão tomadas por um júri constituído por:

GEORGE MILLER (realizador, Austrália) [presidente do júri]
ARNAUD DESPLECHIN (realizador, França)
KIRSTEN DUNST (actriz, EUA)
VALERIA GOLINO (actriz, Itália)
MADS MIKKELSEN (actor, Dinamarca)
LÁSZLÓ NEMES (realizador, Hungria)
VANESSA PARADIS (actriz, França)
KATAYOON SHAHABI (produtora, Irão)
DONALD SUTHERLAND (actor, Canadá)


Para a Palma de Ouro concorrem 21 longas-metragens:

TONI ERDMANN, Maren Ade (Alemanha)
JULIETA, Pedro Almodóvar (Espanha)
AMERICAN HONEY, Andrea Arnold (Reino Unido)
PERSONAL SHOPPER, Olivier Assayas (França)
LA FILLE INCONNUE, Jean-Pierre e Luc Dardenne (Bélgica)
JUSTE LA FIN DU MONDE, Xavier Dolan (Canadá)
MA LOUTE, Bruno Dumont (França)
FORUSHANDE, Asghar Farhadi (Irão)
MAL DE PIERRES, Nicole Garcia (França)
RESTER VERTICAL, Alain Guiraudie (França)
PATERSON, Jim Jarmusch (EUA)
AQUARIUS, Kleber Mendonça Filho (Brasil)
I, DANIEL BLAKE, Ken Loach (Reino Unido)
MA' ROSA, Brillante Mendoza (Filipinas)
BACALAUREAT, Cristian Mungiu (Roménia)
LOVING, Jeff Nichols (EUA)
AGASSI, Park Chan-Wook (Coreia do Sul)
THE LAST FACE, Sean Penn (EUA)
SIERANEVADA, Cristi Puiu (Roménia)
ELLE, Paul Verhoeven (Holanda)
THE NEON DEMON, Nicolas Winding Refn (Dinamarca)

terça-feira, maio 10, 2016

Que viva Minnelli!

Ao longo de Maio e Junho, toda a obra de Vincente Minnelli pode ser (re)vista na Cinemateca — este texto foi publicado no Diário de Notícias (8 Maio), com o título 'Quando Minnelli contribuía para a idade de ouro do musical'.

No cinema musical existe uma esplendorosa aristocracia em que o apelido Minnelli só pode suscitar a nossa humilde reverência. Perguntará o leitor: por causa de Liza, a admirável actriz/cantora que, em 1973, ganhou um Óscar com Cabaret? Sim, mas antes de tudo o mais por quem lhe deu o nome e, por certo, a inspiração. Ou seja, o seu pai: Vincente Minnelli (1903-1986).
Num mês marcado pelas relações entre cinema e música (incluindo um ciclo dedicado a Bob Dylan), a Cinemateca apresenta uma retrospectiva integral de Minnelli que dispensa, e muito bem, as obrigações cronológicas. Assim, durante o mês de Maio, podemos ver ou rever os seus filmes musicais (seguindo-se, em Junho, as comédias, dramas e melodramas). E porque as cumplicidades familiares não são estranhas a tão radiosas memórias, convém acrescentar que esta é uma história que inclui também como muito especial protagonista a mãe de Liza Minnelli, a sublime Judy Garland (1922-1969).
Rezam as crónicas que o casamento entre Vincente Minnelli e Judy Garland não foi o paraíso na Terra, tendo durado menos de seis anos, com o divórcio a ser oficializado em meados de 1951. A paixão surgiu em 1944, durante a rodagem do belíssimo Não Há como a Nossa Casa, centrado nas atribulações de uma família de St. Louis, Missouri, tendo por pano de fundo a Exposição Mundial de 1904 — o filme persiste como uma delicada ilustração da utopia familiar “made in USA”, pontuada por algumas das mais célebres canções de toda a carreira de Judy Garland (incluindo The Trolley Song). O realizador voltou a dirigir a sua mulher em 1948, em The Pirate/O Pirata dos Meus Sonhos, uma celebração irónica dos filmes de piratas, com música de Cole Porter e Gene Kelly no papel central.
O nome de Gene Kelly é, obviamente, indissociável do universo musical de Minnelli. O cineasta voltaria dirigi-lo em Um Americano em Paris (1951), um dos símbolos mais universais do género (a par de Serenata à Chuva, lançado um ano mais tarde), e no prodigioso Brigadoon (1954), nem sempre devidamente lembrado. Encenando a lenda de uma aldeia escocesa, totalmente fabricada em estúdio, Brigadoon — entre nós chamado A Lenda dos Beijos Perdidos — ilustra o gosto de exploração das ambíguas ligações entre realidade e fantasia, de acordo com uma lógica de espectáculo cujas apoteoses estão nos bailados de Kelly com Cyd Charisse. Curiosamente, a consagração nos Oscars só surgiria em 1959, com Gigi, protagonizado por Leslie Caron e Maurice Chevalier (nove estatuetas douradas, incluindo melhor filme e melhor realização).
Para além de Judy Garland, Gene Kelly e Cyd Charisse, importa não esquecer o nome de Fred Astaire como figura fundamental no universo de Minnelli. Dirigiu-o em algumas sequências do filme colectivo Ziegfeld Follies (1945) e ainda em Yolanda e o Vigarista (1945) e The Band Wagon/A Roda da Fortuna (1953), este cruzando a lógica do musical como a iconografia dos filmes de gangsters.
Enfim, esta é uma história que não fica completa sem citar o nome fulcral de Arthur Freed (1894-1973), o produtor da Metro Goldwyn Mayer a quem se deve, em grande parte, a idade de ouro do musical. Para além dos filmes de Minnelli, o seu nome está ligado a títulos igualmente marcantes como Um Dia em Nova Iorque (1949) ou o já citado Serenata à Chuva. Freed pode mesmo simbolizar uma ideia de produtor como cúmplice criativo de cineastas, actores e técnicos, essencial para compreendermos todas as glórias do classicismo de Hollywood.

CANNES 2016 * — filmes em competição (21)

I, DANIEL BLAKE
Ken Loach
(Reino Unido)
Habitué de Cannes, onde já ganhou vários prémios, incluindo uma Palma de Ouro (Brisa de Mudança, 2006), o inglês Ken Loach [foto] vem desmentir os rumores que apontavam O Salão de Jimmy (2014) como o encerramento da sua carreira de realizador. Sempre com a colaboração do argumentista Paul Laverty, Loach traça agora, em I, Daniel Blake, o retrato de um carpinteiro que, na sequência de um acidente, se vê pela primeira vez forçado a recorrer à segurança social — rodado em Newcastle, tem como actor principal Dave Johns, figura muito popular no Reino Unido, embora no registo de stand-up comedy.

CANNES 2016 * — filmes em competição (20)

MAL DE PIERRES
Nicole Garcia
(França)
Com uma longa carreira de actriz — incluindo um papel de destaque em O Meu Tio da América (1980), de Alain Resnais —, Nicole Garcia [foto] é uma figura prestigiada da produção francesa que tem assinado alguns títulos originais como realizadora, com destaque para Place Vendôme (1998), com Catherine Deneuve. Mal de Pierres adapta um romance da italiana Milena Agus, um drama passional vivido no pós-Segunda Guerra Mundial — a actriz principal é Marion Cotillard.

CANNES 2016 * — filmes em competição (19)

TONI ERDMANN
Maren Ade
(Alemanha)
Ligada à produção de filmes de Miguel Gomes (Tabu e As Mil e uma Noites), a alemã Maren Ade apresenta na competição Toni Erdmann, um drama sobre as relações críticas de um pai com a sua filha — com 162 minutos, é um dos filmes mais longo da competição.

segunda-feira, maio 09, 2016

CANNES 2016 * — filmes em competição (18)

THE LAST FACE
Sean Penn
(EUA)
Sean Penn já ganhou em Cannes um prémio de interpretação, em 1997, por A Mulher das Nossas Vidas, de Nick Cassavetes. Surge este ano com The Last Face, um filme sobre a ajuda humanitária em África, com Charlize Theron, Javier Bardem e Adèle Exarchopoulos (A Vida de Adèle). Até agora, a sua separação de Theron (com o filme a ser concluído já depois da divulgação da respectiva notícia) tem sido matéria da imprensa tablóide e, em boa verdade, marcado a maior parte das "antecipações" do filme — em qualquer caso, como se reflecte neste video da Wochit Entertainment, Penn estará entre os que vão trazer ao festival alguns temas com mais fortes conotações políticas.


Elogio de Oren Moverman (1/2)

Oren Moverman
FOTO: Carolyn Cole / Los Angeles Times
Ao longo de 2016, Viver à Margem, de Oren Moverman, fica, desde já, como uma das grandes estreias da produção americana — este texto foi publicado no Diário de Notícias (5 Maio), com o título 'Hollywood não desistiu do realismo social'.

Face à estreia de um filme tão brilhante como Viver à Margem, com argumento e realização de Oren Moverman (cineasta americano, nascido em Israel, em 1966), talvez seja útil interrogarmo-nos sobre a percepção corrente, em particular no espaço televisivo, da actual produção americana. Ou seja: quando Hollywood e as suas filiais gastam a esmagadora percentagem dos seus orçamentos publicitários a promover aventuras de “super-heróis” (cada vez mais barulhentas, formatadas e repetitivas), será que ainda existe mercado capaz de acolher um filme tão diferente, ousado e inventivo como este?
A pergunta justifica-se tanto mais quanto, embora construído a partir da observação de um contexto contemporâneo — as atribulações de um sem-abrigo na imensidão da grande metrópole novaiorquina —, Viver à Margem é um objecto obviamente devedor de toda uma nobre tradição (hollywoodiana, precisamente) em que a observação das convulsões sociais se traduz numa elaborada valorização das componentes dramáticas, da consistência das personagens e também, naturalmente, do trabalho específico dos actores.
Neste aspecto, Moverman consegue que o seu intérprete principal, Richard Gere, tenha em Viver à Margem uma das melhores composições de toda a sua vasta filmografia, emprestando à personagem de George, o sem-abrigo, uma estranha densidade que nem sequer depende do conhecimento das atribulações do seu passado — em boa verdade, a resistência a lembrar tais atribulações constitui mesmo um dos fundamentais traços de definição da personagem. Aliás, o elenco é todo ele exemplar, com destaque para a sempre subtil Jena Malone, no papel da filha de George, e Ben Vereen (lembram-se dele em All That Jazz, há quase 40 anos?), compondo um sem-abrigo dotado de um contagiante gosto pela especulação moral.
O que distingue Viver à Margem de uma crónica banalmente “simbólica” sobre os contrastes urbanos começa nessa sistemática atenção às singularidades das personagens. Deparamos, assim, com as marcas de um realismo (social, justamente) que começa no carácter irredutível de cada ser humano, sendo também indissociável de uma representação dos lugares, a começar pelas ruas de Nova Iorque, que recusa qualquer facilidade de “bilhete postal”. Há até um sentimento documental na filmagem dessas ruas que, em qualquer caso, nunca exclui uma minuciosa atenção à definição dramática das personagens, aos gestos que executam e às palavras que proferem.