quinta-feira, abril 28, 2016

"Truman" — psicologia em tom espanhol

Javier Cámara e Ricardo Darín
Truman foi o grande vencedor dos Goya do cinema espanhol: um filme que sabe revalorizar o modelo dos retratos psicológicos — este texto foi publicado no Diário de Notícias (20 Abril), com o título 'Vencedor dos prémios Goya valoriza a subtileza psicológica'.

Se há elogio que podemos fazer à produção cinematográfica de Espanha, é em nome de uma velha tradição narrativa. De facto, independentemente das suas diferenças internas, por certo muitas delas radicais, o cinema espanhol tem sabido preservar os mecanismos clássicos do “filme psicológico”. Sem vícios saudosistas nem preconceitos modernistas — apenas porque essa é (ou pode ser) uma via sempre válida para compreender o emaranhado das relações humanas. Consagrado nos prémios Goya como melhor filme espanhol de 2015, Truman é um exemplo feliz dessa vitalidade tradicional. E tanto mais quanto o núcleo da sua história — os últimos tempos de um homem que tem plena consciência da sua doença terminal — se podia prestar às mais grosseiras manipulações “telenovelescas”.
O filme envolve-nos, antes do mais, pela ambivalência do seu registo. A figura central, Julián, convoca o seu amigo Tomás (que vive no Canadá), dando-lhe conta da crescente fragilidade da sua saúde. Dir-se-ia um luto antecipado, vivido num registo visceralmente dramático. O certo é que Julián não pede qualquer tipo de protecção, muito menos piedade: o seu objectivo principal é garantir que o seu cão — o Truman que dá título ao filme — vai poder ficar com alguém que o estime.
Tudo isto podia ser pretexto para as maiores facilidades, mas acaba por ser gerido pelo realizador Cesc Gay (também co-autor do argumento) através de um delicada teia de pequenos acontecimentos que funcionam como outros tantos momentos de revelação das emoções mais contrastadas. Daí a decisiva importância do trabalho dos actores, sobretudo o argentino Ricardo Darín e o espanhol Javier Cámara, respectivamente como Julián e Tomás: o primeiro confirmando a subtileza de um talento que já observáramos, por exemplo, em O Segredo dos Seus Olhos (2009) ou Carancho (2010); o segundo, desde Fala com Ela (2002) uma presença regular no cinema de Pedro Almodóvar, compondo uma personagem que se distingue, antes do mais, pela capacidade de escuta.
A intensidade psicológica de um filme como Truman nada tem a ver com qualquer preocupação “simbólica”. Ao contrário de muitas ficções televisivas, a existência de uma personagem que sofre de uma doença terminal não confere ao filme o estatuto de um “caso de vida” à procura de generalizações mais ou menos simplistas. Tudo depende do carácter irredutível das personagens, dos seus gestos e da especificidade das situações que vivem.
A atenção às singularidades dos comportamentos individuais envolve um princípio eminentemente realista. Nesta perspectiva, poderá dizer-se que Truman reforça a ideia segundo a qual as mais diversas cinematografias, europeias e americanas (sul-americanas, em particular), têm procurado reagir ao naturalismo simplista do espaço televisivo, revalorizando o gosto e as exigências dos registos realistas. Toda a caracterização do espaço social em que vive Julián é significativa de tal gosto. Afinal de contas, também de acordo com uma via muito tradicional, este é um cinema capaz de contar histórias de grande apelo universal a partir da cuidada observação dos mais finos particularismos.