sábado, abril 02, 2016

O melodrama segundo Garrel (1/2)

PHILIPPE GARREL
— rodagem de À Sombra das Mulheres
O cinema intimista de Philippe Garrel está de volta às salas portuguesas com À Sombra das Mulheres — este texto foi publicado no Diário de Notícias (31 Março), com o título 'O melodrama reinventado por Philippe Garrel'.

Entrámos naquela época do ano cinematográfico em que, a acreditar em algumas notícias que ganham especial evidência no espaço televisivo, parece que o mundo ficou paralisado por uma invasão de super-heróis e “blockbusters” mais ou menos ruidosos... Mas não é bem assim. E podemos até dar-nos ao luxo de alimentar algumas saudades dos tempos heróicos da Nova Vaga francesa. Quem nos autoriza tal divagação é Philippe Garrel, de regresso às salas portuguesas com o belíssimo À Sombra das Mulheres [estreia: 31 Março].
Em todo o caso, Garrel não é, historicamente, alguém que possamos classificar como membro da Nova Vaga. Ele é, afinal, um herdeiro, por certo dos mais legítimos, dos respectivos filmes e experimentações. Nascido em 1948, em Boulogne-Billancourt, a sua afirmação como realizador — em particular através desse título emblemático que é Marie pour Mémoire (1968) — não pode ser dissociada de um tempo de crise social e interrogação política, obviamente marcado pelos dramas geracionais de Maio 68. Evocou directamente tal período em Os Amantes Regulares (2005), centrado na personagem de François, um poeta errante interpretado pelo seu filho, Louis Garrel; aliás, num perverso jogo de espelhos, o avô de François é interpretado pelo próprio avô de Louis, Maurice Garrel, pai do realizador.
Pode considerar-se, aliás, o espaço familiar como a primeira e decisiva paisagem afectiva da obra de Garrel. Desde logo através da dimensão confessional de muitos filmes, com assumidos cruzamentos com a sua história pessoal. A relação de Garrel com a cantora Nico (1938-1988), dos Velvet Underground, ecoara através da sua presença, e também das suas canções, em títulos como La Cicatrice Intérieur (1972), por certo um dos exemplos mais radicais do experimentalismo da época, Un Ange Passe (1975) ou Le Berceau de Cristal (1976); Garrel viria a evocar as memórias da sua vida comum em J’Entends Plus la Guitare (1991).
Além do mais, sem serem exactamente ensaios “sociológicos”, os filmes de Garrel vão fazendo o inventário de muitas transformações sociais, a começar pelas que questionam as estruturas tradicionais da família. Não será por acaso que, de L’Enfant Secret (1979) a Ciúme (2013), as crianças surgem a pontuar as atribulações dos adultos, num labirinto de relações, perplexidades e silêncios em que cada personagem é compelida a enfrentar os enigmas das suas emoções e também os impasses das suas funções simbólicas. Sendo Garrel um assumido discípulo de Jean-Luc Godard, pode dizer-se que essa atenção à evolução dos laços sociais é uma das marcas mais importantes da visão do seu mestre.