segunda-feira, março 28, 2016

Os atentados de Bruxelas (televisão)

Imagem de uma emissão da CNN
— o real transformou-se numa infinita nomeação de imagens
O que vemos na televisão europeia (e não só) quando nos mostram a Europa? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (27 Março), com o título 'A Europa vista de Bruxelas'.

Vejo e revejo, dezenas e dezenas de vezes, as mesmas imagens. Quase todas as notícias televisivas sobre os atentados de Bruxelas são repetidamente “ilustradas” pelas mesmas imagens de telemóveis de passageiros apanhados no meio da tragédia, de câmaras que registaram os momentos de pânico, de reportagens com pessoas que testemunharam o horror... E relanço a pergunta que, em televisão, sempre se recalca: qual a lógica cognitiva e, mais do que isso, o efeito simbólico de tão insistentes repetições?
Bem sei que a pergunta atrai sempre alguma resistência. Claro que não se trata de demonizar os dispositivos televisivos. Carece, por isso, de pertinência a reacção pueril que leva alguns a devolver a pergunta: tratar-se-ia de “culpar” as televisões pelos próprios actos terroristas?
Escusado será sublinhar que não é essa a questão de fundo. Uma vez mais, o que está em jogo é a televisão como sistema de linguagens que, a meu ver, poucas vezes se detém para pensar as próprias significações que constrói. Nesse plano (o das linguagens, insisto), o princípio de infinita repetição triunfou como lei informativa e aplica-se a tudo ou quase tudo — a começar pela avalancha de vulgaridades gramaticais de jogadores e treinadores de futebol que, todos os dias, ocupam a paisagem audiovisual.
No limite, a pergunta pode mesmo ser: que Europa vemos a partir de Bruxelas? Ou ainda, e porque tudo isto envolve a discussão da identidade europeia: como é que as imagens vindas de Bruxelas nos ajudam a pensar o nosso aqui e agora como seres do mesmo continente?
Afinal de contas, a Europa televisiva foi-se acomodando num sistema restrito de símbolos “colectivos”, de que o futebol se tornou a referência mais forte e mais quotidianamente martelada. Esta é, afinal, a Europa televisiva que, com risonho liberalismo, assistiu ao triunfo generalizado do Big Brother e outros formatos da “reality TV”, todos os dias promovendo o oposto de qualquer humanismo. A mesma Europa que se celebra, uma vez por ano, nas mediocridades do Festival da Canção da Eurovisão. Enfim, esta é a Europa que nem sequer noticia com a devida evidência os prémios da Academia de Cinema Europeu (que se realizam desde 1988).
Mesmo nutrindo uma militante admiração pela variedade criativa do actual cinema dos EUA (é o meu caso), como explicar que a Europa que sustenta os mais empenhados discursos de defesa das suas singularidades culturais seja a mesma Europa que, automaticamente, oferece inusitada evidência a qualquer medíocre “blockbuster” que traga a chancela de Hollywood?
Por cruel ironia, há poucas semanas estreara-se o filme belga Deus Existe e Vive em Bruxelas, com Benoît Poelvoorde no papel de uma divindade dada à crueldade contra os frágeis humanos. O filme era francamente simplista e algo demagógico, mas é um facto que a sua ânsia de transcendência envolve um sintoma cultural sobre o qual importa reflectir.