quinta-feira, março 31, 2016

Fellini v. Fellini

[cartaz francês]
Não, não é um filme de super-heróis... Oito e Meio, de Federico Fellini está de volta às salas — este texto foi publicado no Diário de Notícias (30 Março), com o título 'Quando Fellini se filmava no seu próprio espelho'.

É uma circunstância feliz esta de a Festa do Cinema Italiano [começou no dia 30 em Lisboa, envolvendo cinema São Jorge, UCI El Corte Inglés e Cinemateca] abrir com dois títulos que, por assim dizer, dialogam à distância de mais de meio século: por um lado, O Conto dos Contos, de Matteo Garrone, espectáculo de exuberante fantasia que recupera os contos escritos por Giambattista Basile nos séculos XVI/XVII; por outro lado, o clássico Oito e Meio, de Federico Fellini, precisamente um autor que Garrone reconhece como um dos seus mestres (é mais uma reposição que o mercado português acolhe em cópia restaurada).
Estreado em Itália em Fevereiro de 1963 (chegou às salas portuguesas cerca de um ano mais tarde), Oito e Meio entrou na mitologia dos filmes como um dos mais elaborados, profundos e também sarcásticos retratos da própria criatividade cinematográfica. Guido Anselmi, a lendária personagem interpretada pelo magnífico Marcello Mastroianni, é um assumido “alter-ego” de Fellini: um cineasta que tenta superar uma situação de bloqueio para descobrir, afinal, que os seus fantasmas mais íntimos e, em particular, as suas enigmáticas relações com as mulheres (Claudia Cardinale, Anouk Aimée, Sandra Milo, etc.) definem a matéria essencial do seu próprio universo narrativo.
No seu ofegante vai-vém entre a crueza do quotidiano e o apelo de sonhos e pesadelos, Guido definiu um padrão de personagem que, com mais ou menos talento, muitos imitaram. Para nos ficarmos por um dos exemplos mais brilhantes, porventura também menos conhecidos, lembremos que Stardust Memories/Recordações (1980), de Woody Allen, se apresenta como uma pessoalíssima variação sobre as matrizes de Oito e Meio (a começar pela enigmática pulsão poética das suas imagens a preto e branco).
Fellini contemplava-se, assim, no seu próprio espelho, afinal percorrendo as vias ambíguas de um narcisismo sempre no limite do confessionalismo mais amargo. Em todo o caso, importa lembrar que a sua atitude não pode ser desligada de todo um contexto (cinematográfico, cultural, social) em que a noção de autor, precisamente, estava a ser revista e revalorizada.

Um recorde de 4 Oscars

1963 é um ano especialmente importante em tal dinâmica, aliás marcada pela afirmação global dos chamado “cinema novo”, fenómeno de revisão crítica dos clássicos e invenção de linguagens de que a Nova Vaga francesa foi o modelo fundamental. Em França, justamente, Jean-Luc Godard assinava O Desprezo, outro filme que encenava os bastidores do trabalho cinematográfico (aliás, rodado em Itália, na ilha de Capri e nos estúdios da Cinecittà, em Roma). Em Inglaterra, Joseph Losey dirigia O Criado, escrito por Harold Pinter, visão especialmente arrojada do sistema tradicional de classes sociais. Enfim, em Portugal, Manoel de Oliveira regressava à longa-metragem com Acto da Primavera, título emblemático das novas formas de relação entre documentário e ficção.
Para Fellini, como para vários outros autores italianos — Michelangelo Antonioni, por exemplo, preparava o revolucionário Deserto Vermelho, que seria lançado em 1964 —, tratava-se de superar, em definitivo, as formas herdadas do neo-realismo e, em particular, a sua lógica redentora e metafísica. Afinal de contas, de uma maneira ou de outra, quase todos os grandes cineastas europeus enfrentavam o “liberalismo” equívoco da sociedade de consumo e a sua reconfiguração das relações humanas. Nesta perspectiva, sendo um objecto na primeira pessoa, Oito e Meio era também uma renovada interrogação das ilusões sociais já expostas em A Doce Vida (1960). Para acentuar a dimensão pessoal do empreendimento, Fellini escolheu um título de básico simbolismo: era o seu “oitavo filme e meio”, uma vez que começara com “meio filme”, Luce del Varietà (1950), co-assinado com Alberto Lattuada.
Para a história, foi também um título de consolidação do nome de Fellini como o mais internacional da produção cinematográfica italiana da época. Assim, Oito e Meio foi a sua terceira realização a arrebatar o Oscar de melhor filme estrangeiro, depois de A Estrada (1956) e Noites de Cabíria (1957). Fellini é mesmo o cineasta que assinou mais títulos (quatro) consagrados com essa estatueta dourada: voltou a ganhar com Amarcord (1974). A Itália continua a ser, aliás, a cinematografia mais premiada pela Academia de Hollywood: 14 das suas produções já ganharam o Óscar de melhor filme estrangeiro.

Psicanálise em tom russo

A música? Electrónicas obviamente competentes e eficazes, de uma segurança mais ou menos académica. Não vem daí grande mal ao mundo. Mas o colectivo russo Tesla Boy, criado em 2008, surge agora com um teledisco tão invulgar que vale a pena descobri-lo: o tema Nothing é encenado como um breve e enigmático exercício psicanalítico, capaz de desafiar a figuração corrente dos corpos — o pequeno filme, gélido mas envolvente, impecavelmente enquadrado em formato scope, tem realização de Ryan Patrick.

quarta-feira, março 30, 2016

4DX — a morte do cinema

O novo sistema de projecção 4DX promete muitos "abanões" [texto de Rui Pedro Tendinha no DN]. Reabre-se, assim, um novo tempo de interrogação da especificidade do cinema — este texto foi publicado no Diário de Notícias (25 Março), com o título 'A morte do cinema'.

O que é o 4DX? Digamos que neste momento de muitas especulações, discutir se será “bom” ou “mau” é coisa secundária. Posso até admitir que a sua implementação venha a contribuir para contrariar os prejuízos gerados pela pirataria, convidando muitos espectadores a regressar às salas.
A questão de fundo não é essa. Afinal de contas, desde as três dimensões (na década de 50) até às superproduções em 70 mm (na década seguinte), sabemos que a história do cinema se faz também do aparecimento cíclico de “formatos” apostados em contrariar a errância dos mais diversos sectores do público. O que importa discutir é a afirmação de uma ideologia cultural que, em última instância, ignora as especificidades cinematográficas, limitando-se a reproduzir e ampliar os valores do discurso comercial que sustenta o negócio dos videojogos.
Promover a ideia de que precisamos de maior “imersão” nos filmes é, por certo inadvertidamente, minimizar o génio com que George Méliès, Ingmar Bergman ou David Cronenberg nos souberam envolver (e, de facto, imergir) nas mais contrastadas convulsões visuais ou sonoras. Mesmo desejando o maior sucesso financeiro a este novo mercado, importa separar as águas e lembrar o mais simples: a crónica da morte anunciada do cinema faz-se também, assim, através do metódico apagamento do cinema como história e património.
Está a nascer outra “coisa”, porventura interessantíssima, mas para a qual importa inventar outro nome. Será que os espectadores de filmes já não procuram... filmes? Corremos mesmo o risco de, um dia destes, o liberalismo dominante surgir com uma sugestão para acrescentar alguns odores à sequência de Persona (1966) em que Bibbi Andersson narra a Liv Ullmann a orgia sexual em que se viu envolvida...

Sound + Vision Magazine
hoje às 18.30 na Fnac Chiado


No ano que assinala a passagem de meio século sobre o momento em que os Beatles deixaram os palcos para concentrar a sua atenção no estúdio (e que é o mesmo em que lançaram o álbum Revolver), lembramos um percurso através das imagens dos filmes com os quais passaram a ter uma relação preferencial com o seu público. A pré-história dos telediscos passa por aqui.

Nesta edição do Sound + Vision Magazine falaremos ainda de novos discos de Andrew Bird, Pet Shop Boys e Meilyr Jones.

E, como acontece todos os meses, evocamos um filme e um disco com meio século de vida. Até logo!

Eu, o filme e aquele título infeliz


Não há nada de errado em retomar ideias e caminhos já antes percorridos se houver bons ingredientes em jogo e uma capacidade de os integrar num novo contexto. É o que sucede com Me and Earl and The Dying Girl, a aclamada segunda obra do realizador Alfonso Gomez-Rejon, que até aqui era talvez mais conhecido pelo seu trabalho em televisão em séries como Glee ou American Horror Story. O filme entre nós estreou com o título desastroso “Eu, o Earl e a Tal Miúda”, que em nada traduz o primeiro impacte favorável que o seu título original sugere. Aliás, se os distribuidores refletirem sobte porque por vezes falham aqui os filmes que lançam em sala, pensem melhor na hora de lhes dar título português... Este sugeria uma comédia romântica pateta para público juvenil. É um filme juvenil na sua essência, sim. Mas um claro exemplo de criação para uma sensibilidade “indie”, tal como o foram Juno ou 500 Days of Summer. E convenhamos que o título traduzido não dá a ideia de o ser. De todo...

Bom, voltemos ao filme, que agora tem já edição em DVD entre nós... O ponto de partida convenhamos que não é novo. E a ideia de uma narrativa centrada num relacionamento (de amizade ou amoroso) com alguém com uma doença terminal na linha do horizonte conheceu paradigma no clássico Love Story, de Arthur Hiller, em 1970. Me and Earl and The Dying Girl reenquadra contudo as premissas de base com mais alguma imaginação do que o relativamente recente 50/50 de Jonathan Levine.

O ponto de partida é simples. Greg, que padece de uma irrevogável falta de autoestima, mas que conseguiu passar incólume pelos desafios da vida na escola ao fazer crer que se enquadra em cada um das tribos de estudantes, é um dia obrigado pela mãe a fazer companhia a Rachel, uma vizinha, da sua idade, a quem foi diagnosticada uma leucemia. Da obrigação a companhia acaba por revelar afinidades e empatia. Em cena entra ainda Earl, o único verdadeiro amigo de Greg, ambos ocupando o seu tempo a fazer pequenas variações lo-fi de filmes clássicos. Fazer um filme para a rapariga que está a morrer é tarefa que se eterniza... E o resto fica para contar depois de visto o filme.

Os condimentos que o filme acrescenta a este corpo de histórias estão sobretudo materializados na cinefilia do realizador, projetada nos filmes caseiros de Greg e Earl e em memorabilia que a art direction tratou de colocar em cena. O contexto presente traduz-se sobretudo nos vários jogos de
comportamentos (individuais e sociais). E como cereja sobre o bolo há uma banda sonora assinada por Brian Eno (feita de inéditos e de temas antigos), com participação de Nico Muhly em alguns momentos e uma curta-metragem, assinada por Edward Burch e Nathan O. Marsh, que representa o filme criado para Rachel. Premiado em Sundance e tendo depois merecido outras várias distinções, Me and Earl and The Dying Girl não é de todo um filme para fixar na história do cinema uma expressão maior da representação da juventude do tempo presente. Mas destaca-se entre a fornada de alma “indie” que serve esse mesmo público no presente.

Para ler: Batman e Super Homem,
uma reflexão política

A revista New Yorker apresenta uma reflexão sobre o filme Batman Vs Superman, notando que se vive nos EUA, em 2016, um ano eleitoral. Republicanos contra democratas?, pergunta Richard Brody, o autor.

Podem ler aqui.

terça-feira, março 29, 2016

Patty Duke (1946 - 2016)

Esta é uma imagem que pertence à história e à mitologia do cinema americano da década de 60: Patty Duke interpreta a personagem de Hellen Keller no prodigioso filme The Miracle Worker/O Milagre de Anne Sullivan (1962), de Arthur Penn. Duke faleceu no dia 29 de Março, em consequência de uma septicemia gerada por uma ruptura intestinal — contava 69 anos.
Foi aos 16 anos que interpretou o papel de Hellen Keller no cinema, retomando a composição da peça de William Gibson, na Broadway, em que o filme de Penn se baseia — a sua performance valeu-lhe o Oscar de melhor actriz secundária. Manteve uma presença irregular na produção cinematográfica, construindo o essencial da sua carreira na televisão, sobretudo a partir do sucesso da sitcom The Patty Duke Show (1963-66). No campo musical, ao longo da década de 60, gravou alguns álbuns, um deles integrando temas daquele que terá sido o seu maior sucesso cinematográfico: O Vale das Bonecas (1967), de Mark Robson.
A sua condição bipolar, detectada no começo dos anos 80, levou-o a assumir um papel público de divulgadora, no sentido de uma melhor compreensão dos factores, incidência e profilaxia das doenças mentais — nessa perspectiva, publicou o livro Brilliant Madness: Living with Manic Depressive Illness (1993), alguns anos depois da autobiografia Call Me Anna (1988). Desempenhou um dos seus derradeiros papéis em 2013, na série Glee.

>>> Trailer de The Miracle Worker; em Agosto de 2014, na CNN, comentando a morte do actor Robin Williams.




>>> Obituário no New York Times.

Ver + ouvir:
Meilyr Jones,
How To Recognise A Work Of Art



Depois de um percurso com os algo inconsequentes Race Horses, Meilyr Jones transformou o ano da rutura da banda e de um relacionamento pessoal em estímulos que transformou num belíssimo álbum de canções pop orquestrais. Este é um dos singles já extraídos do álbum a que chamou 2013.

Novas edições:
Anna Meredith, Varmints

Pode um álbum nascido sob evidente pulsão experimental ser uma peça acessível, capaz de cruzar barreiras de géneros, formas e sons, projetando-nos num domínio que é o oposto da ideia de terra de ninguém para, afinal, poder ser uma terra de todos? Não será fácil imaginar um destino de grande visibilidade mainstream para a música de Anna Meredith, até porque os consumos nesses patamares estão cada vez mais fechados a regras formulaicas que fazem parecer coisa surda tudo o que se afasta dos sabores do momento. Mas, tão capaz de entusiasmar um Royal Albert Hall em noite de Proms, como dotada de uma capacidade de sedução evidente para quem acompanha a linha da frente de acontecimentos nas vanguardas do pensamento eletrónico, esta jovem britânica, que foi já compositora residente da BBC Scottish Symphony Orchestra e desempenhou cargo semelhante com a Sinfonia Viva e, em 2012, cativou atenções com Handsfree, peça sem instrumentos interpretada pelos elementos da National Youth Orchestra, iniciou um trabalho de demanda discográfica em paralelo a este esforço na composição e pelo qual cruza todas estas sensibilidades por um gosto evidente pelas dinâmicas e sonoridades da música eletrónica.

Nos discos estreou-se em 2012 com Black Prince Fury, um primeiro EP no qual tomava as ferramentas eletrónicas como base de trabalho, procurando tanto pistas entre formas próximas dos espaços da música de dança como heranças possíveis dos minimalistas, revelando Nautilus, o tema de abertura, uma potente fanfarra para metais, um sentido de visão que dava desde logo sinais de que Anna Meredith trilhava o seu novo caminho no sentido certo. Um ano depois, o segundo EP, Jet Black Rider, juntava aos espaços já explorados a presença da sonoridade de instrumentos mais “convencionais”, colocando-os contudo num contexto diferente daquele que estamos habituados a encontrar quando os vemos no quadro de uma orquestra sinfónica. As eletrónicas voltavam a ditar a pulsação do corpo musical, experimentando formas mais próximas da canção pop, encerrando o alinhamento com ALR, uma inesperada e surpreendente versão de A Little Respect, dos Erasure.

Agora, três anos depois, o álbum de estreia, a que chamou Varmints, dá o seguro passo em frente face a estes dois primeiros ensaios sobre os fundamentos de uma linguagem que, sem ser de rutura, representa uma das mais interessantes propostas de diálogo entre os universos da música eletrónica e da música orquestral que têm surgido em cena nos últimos tempos. Há precedentes. Todd Levin, que nos anos 90 apresentou um álbum com alma de ovni no catálogo da Deutsche Grammophon, tinha já experimentado ensaiar espaços de comunicação entre estes mundos. A série Re-Composed (através sobretudo das contribuições de Moritz von Oswald ou Carl Craig) também já andou por estes caminhos. Mas o que Anna Meredith junta aqui é a sensibilidade da compositora que toma os instrumentos como ponto de partida para deles fazer nascer a busca de uma voz nova, integrada, comunicativa.

Nautilus, que regressa quatro anos depois, dá o mote e faz-nos entrar num alinhamento que, depois, lança a surpresa a cada faixa que se sucede, entre o ineditismo de algumas sugestões havendo contudo um cativante sentido de familiaridade. Como se, afinal, estas formas e sons fizessem já parte da nossa experiência. Só não tinham sido tão bem reunidos antes num corpo comum.

Do acesso de techno de R-Type, com flirt elétrico de pulsão quase metal que emerge pontualmente a meio do tema, às paisagens mais ambientais e cenicamente plácidas de Honeyed Words, passando pela experiência pop empolgante de Taken (que evoca sabores da música de um Philip Glass em finais dos anos 70 em diálogo com um corpo new wave),Varmints é, garantidamente, um dos discos mais surpreendentes, imaginativos e diferentes que vamos escutar este ano.

Para ler: o regresso dos LCD Soundsystem
(as primeiras impressões)

Antes de entrarem num intenso programa de atuações em festivais, os LCD Soundsystem deram alguns concertos de "aquecimento". O Guardian esteve lá e conta como foi...

Podem ler aqui.

Viva o cinema italiano!

Começa hoje mais uma edição da Festa do Cinema Italiano, cruzando clássicos e modernos — este texto foi publicado no Diário de Notícias (28 Março), com o título 'Festa do Cinema Italiano combina fantasia e realismo'.

Está a chegar a nona edição da Festa do Cinema Italiano — a partir de quarta-feira, em Lisboa (cinemas São Jorge e UCI-El Corte Inglês, e Cinemateca, até 7 de Abril); depois em mais 14 cidades, até meados do mês de Julho. Desta vez, o evento prolongar-se-á até ao mês de Agosto, chegando a salas de Brasil, Angola e Moçambique.
Mais do que nunca, a iniciativa da associação cultural Il Sorpasso aposta no cruzamento da actualidade da produção italiana, em particular na revelação de novos cineastas, com a revisitação de diversas memórias históricas. Assim, a abertura oficial (São Jorge, dia 30, 21h30) será feita com a ante-estreia de O Conto dos Contos, de Matteo Garrone, que esteve o ano passado na competição do Festival de Cannes, surgindo no dia seguinte (UCI, dia 31, 21h45) a cópia restaurada do clássico Oito e Meio (1963), de Federico Fellini.
O paralelismo é tanto mais sugestivo quanto Garrone reconhece em Fellini uma das suas referências tutelares. Em Cannes, precisamente, numa conversa em que o DN participou, Garrone lembrou a “influência determinante de Pasolini e Fellini, mas também de Dario Argento e Mario Bava”. Em jogo está, afinal, a exploração de “um tipo de fantasia e fantástico que não exclui o realismo”. Mais do que isso: “um gosto hiper-realista”.
O Conto dos Contos é uma produção italiana, com a participação de um produtor francês (Jean Labadie) e outro inglês (Jeremy Thomas), apostada em recriar os mundos delirantes do poeta napolitano Giambattista Basile (1566-1632). Para Garrone, a viagem às fábulas do séc. XVII envolvia também a redescoberta dos poderes primitivos do cinematógrafo: “Quisemos encontrar uma linguagem que nos remetesse para as origens do cinema, até Georges Méliès. Daí que tenhamos procurado cenários naturais que pudessem parecer artificiais; ao mesmo tempo, em estúdio, construímos cenários que, sendo artificiais, tivessem um toque realista.” Num certo sentido, o cineasta reencontrava as suas origens criativas: “Fui pintor, antes de realizar filmes. E é um facto que, ainda criança, gostava de desenhar histórias: aos sete anos, fazia verdadeiros storyboards...”
Com um elenco internacional que inclui os nomes de Salma Hayek, Vincent Cassel, Toby Jones, Alba Rohrwacher e John C. Reilly, com direcção fotográfica de Peter Suschitzky (colaborador habitual de David Cronenberg), O Conto dos Contos é falado em inglês. Cedência aos padrões dominantes? Garrone desdramatiza tal opção, sublinhando as nuances de qualquer noção de fidelidade: “Quando lemos agora estes contos, é necessariamente numa tradução, não no dialecto napolitano original; além do mais, considerámos que a língua inglesa podia ajudar a alcançar uma audiência mais alargada, dando a Basile a possibilidade de, finalmente, ser conhecido em qualquer recanto do mundo.”

Homenagem a Ettore Scola

A passagem de O Conto dos Contos antecede a sua estreia comercial, na quinta-feira, dia em que será também reposta a nova cópia de Oito e Meio. Entre as memórias propostas figura ainda outra cópia restaurada, de A Vida É Bela (1997), de Roberto Begnini, e uma evocação da obra do recentemente falecido Ettore Scola (na Cinemateca), incluindo o lendário A Ultrapassagem (1962), de Dino Risi, em cujo argumento Scola colaborou.
A programação inclui uma secção competitiva, com seis títulos de novos autores, a serem avaliados por um júri constituído pelo actor italiano Ronaldo Bonacchi, Tiago Alves (jornalista e crítico, Antena 1) e João Monteiro (co-director do MOTELx); entre os filmes sleccionados, um deles, A Espera, de Piero Messina, já tem distribuição assegurada no mercado português (estreia 14 Abril). Das outras secções, também a serem lançados nas nossas salas, estão programados: Suburra, de Stefano Sollima, Mergulho Profundo, de Luca Guadagnino, Anna, de Giuseppe Gaudino, Quo Vado?, de Gennaro Nunziante, este um grande sucesso da mais recente produção italiana, a ser apresentado na sessão de encerramento (São Jorge, dia 7 Abril, 21h30).

segunda-feira, março 28, 2016

A IMAGEM: WWF, 2016

World Wide Fund
Desligando as luzes, pelo urso polar
2016

Os atentados de Bruxelas (televisão)

Imagem de uma emissão da CNN
— o real transformou-se numa infinita nomeação de imagens
O que vemos na televisão europeia (e não só) quando nos mostram a Europa? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (27 Março), com o título 'A Europa vista de Bruxelas'.

Vejo e revejo, dezenas e dezenas de vezes, as mesmas imagens. Quase todas as notícias televisivas sobre os atentados de Bruxelas são repetidamente “ilustradas” pelas mesmas imagens de telemóveis de passageiros apanhados no meio da tragédia, de câmaras que registaram os momentos de pânico, de reportagens com pessoas que testemunharam o horror... E relanço a pergunta que, em televisão, sempre se recalca: qual a lógica cognitiva e, mais do que isso, o efeito simbólico de tão insistentes repetições?
Bem sei que a pergunta atrai sempre alguma resistência. Claro que não se trata de demonizar os dispositivos televisivos. Carece, por isso, de pertinência a reacção pueril que leva alguns a devolver a pergunta: tratar-se-ia de “culpar” as televisões pelos próprios actos terroristas?
Escusado será sublinhar que não é essa a questão de fundo. Uma vez mais, o que está em jogo é a televisão como sistema de linguagens que, a meu ver, poucas vezes se detém para pensar as próprias significações que constrói. Nesse plano (o das linguagens, insisto), o princípio de infinita repetição triunfou como lei informativa e aplica-se a tudo ou quase tudo — a começar pela avalancha de vulgaridades gramaticais de jogadores e treinadores de futebol que, todos os dias, ocupam a paisagem audiovisual.
No limite, a pergunta pode mesmo ser: que Europa vemos a partir de Bruxelas? Ou ainda, e porque tudo isto envolve a discussão da identidade europeia: como é que as imagens vindas de Bruxelas nos ajudam a pensar o nosso aqui e agora como seres do mesmo continente?
Afinal de contas, a Europa televisiva foi-se acomodando num sistema restrito de símbolos “colectivos”, de que o futebol se tornou a referência mais forte e mais quotidianamente martelada. Esta é, afinal, a Europa televisiva que, com risonho liberalismo, assistiu ao triunfo generalizado do Big Brother e outros formatos da “reality TV”, todos os dias promovendo o oposto de qualquer humanismo. A mesma Europa que se celebra, uma vez por ano, nas mediocridades do Festival da Canção da Eurovisão. Enfim, esta é a Europa que nem sequer noticia com a devida evidência os prémios da Academia de Cinema Europeu (que se realizam desde 1988).
Mesmo nutrindo uma militante admiração pela variedade criativa do actual cinema dos EUA (é o meu caso), como explicar que a Europa que sustenta os mais empenhados discursos de defesa das suas singularidades culturais seja a mesma Europa que, automaticamente, oferece inusitada evidência a qualquer medíocre “blockbuster” que traga a chancela de Hollywood?
Por cruel ironia, há poucas semanas estreara-se o filme belga Deus Existe e Vive em Bruxelas, com Benoît Poelvoorde no papel de uma divindade dada à crueldade contra os frágeis humanos. O filme era francamente simplista e algo demagógico, mas é um facto que a sua ânsia de transcendência envolve um sintoma cultural sobre o qual importa reflectir.

domingo, março 27, 2016

Andrew Bird + Fiona Apple

Haverá, por certo, boas razões para voltarmos ao novo álbum do americano Andrew Bird, Are You Serious. De qualquer modo, registe-se, para já, uma pequena maravilha que dá pelo nome de Left Handed Kisses, crónica amarga e doce das ilusões românticas, em dueto com a sempre admirável Fiona Apple (cujo último álbum, The Idler Wheel..., já tem quase quatro anos) — o teledisco, maravilhosamente simples, tem assinatura de Philip Andelman.

Ethan Hawke interpreta Chet Baker

Revelado no Festival de Toronto de 2015 e só agora lançado em algumas salas dos EUA, Born to Be Blue é daqueles filmes que, a pouco e pouco, vai construindo o seu impacto. A ponto de algumas vozes americanas apontarem, desde já, Ethan Hawke como merecedor de uma nomeação para os Oscars... Seja como for, o desafio não é pequeno: trata-se, nada mais nada menos, de interpretar Chet Baker (1929-1988). Fiquemos com o trailer. Notícias de distribuição em Portugal? — para já, não há.

FNAC [dia 30]: Sound + Vision Magazine

As reedições dos Beatles vão estar em foco na próxima sessão do nosso Sound + Vision Magazine: um reencontro com um património exuberante, além do mais agora relançado através da recuperação de muitos videos [exemplo aqui em baixo: Penny Lane], finalmente devolvidos à sua qualidade original — FNAC, Chiado [quarta, dia 30, 18h30].

As cartas de Frank Underwood

A exibição dos episódios da nova temporada de House of Cards reflecte os prós e os contras de todo um conceito de difusão televisiva — este texto foi publicado no Diário de Notícias (25 Março), com o título 'Um castelo de cartas'.

Hoje em dia, por vezes, o universo televisivo não valoriza a língua portuguesa. E não estou apenas a falar da hecatombe gramatical e discursiva todos os dias protagonizada por alguns treinadores e jogadores de futebol — em última instância, muitos deles nem terão consciência de que foram mediaticamente “empurrados” para um protagonismo que não se fundamenta em nenhuma necessidade informativa, muito menos em qualquer valor socialmente pertinente.
A identificação das séries televisivas é um dos domínios em que a maior parte dos difusores deixou de fazer qualquer esforço. Não há nenhum purismo linguístico nesta observação. Haverá muitos casos em que a preservação do original se justifica. Mas há outros em que apenas se ignora o valor das palavras portuguesas.
Repare-se nessa série admirável que é House of Cards (cuja quarta temporada está a passar no TV Séries). O seu retrato dos bastidores do poder político em Washington expõe, de facto, um impressionante “castelo de cartas”, não havendo nenhuma motivação pertinente para, num caso como este, não utilizar a sugestiva tradução portuguesa, tão subtilmente simbólica como o título original.
Com a personagem de Frank Underwood (Kevin Spacey) no cargo de Presidente dos EUA, a nova temporada estabelece uma perturbante ligação metafórica com a actualidade, uma vez que no horizonte estão novas eleições presidenciais. Mais do que isso: a situação de ruptura com a mulher, Claire (Robin Wright), abre espaço a um conflito em que a questão fulcral do poder se cruza com os detalhes do mais assombrado intimismo. Isto sem esquecer que a introdução da personagem de Elizabeth Hale, mãe de Claire, além de adensar a teia familiar da intriga, nos permite reencontrar Ellen Burstyn, uma das grandes senhoras dos últimos cinquenta anos da história de Hollywood. Em boa verdade, há em House of Cards algo do grande cinema político que Hollywood quase deixou de fazer...

sábado, março 26, 2016

Garry Shandling (1949 - 2016)

Actor, argumentista, produtor, foi ao longo de três décadas uma figura muito popular da televisão nos EUA: Garry Shandling faleceu no dia 24 de Março, em Los Angeles, vítima de ataque cardíaco — contava 66 anos.
A popularidade de Shandling começou no início da década de 80, graças às suas performances em The Tonight Show, na altura apresentado por Johnny Carson [video: primeira participação, em 1981]. O programa It's Garry Shandling's Show, as participações em Saturday Night Live e, já na década de 90, em The Larry Sanders Show, combinando as regras do talk show e sitcom, constituíram momentos emblemáticos da sua carreira. Com participações pontuais no cinema, escreveu e protagonizou De que Planeta és Tu? (2000), dirigido por Mike Nichols.


>>> Obituário no New York Times.

Satisfação em Cuba

De acordo com uma espectadora do concerto dos Rolling Stones em Cuba, a história do país passará a ter uma fronteira simbólica: haverá um "antes" e um "depois" do evento da Cidade Desportiva de Havana [The Guardian]. De Jumpin’ Jack Flash até Satisfaction, foram duas horas de espectáculo, vividas como uma cerimónia artística plena de ecos políticos, poucos dias depois da visita de Barack Obama.
Fica o reconhecimento de que este é apenas um breve instante de uma história — de Cuba e das suas relações com o exterior — que vai continuar a ser escrita, agora com um pouco mais de rock'n'roll. E ficam também algumas imagens insubstituíveis: eis um registo da chegada da banda, em video de The Guardian, e alguns momentos de Jumpin' Jack Flash, num registo oficial dos Stones.



Quando os Art of Noise
revisitaram Henry Mancini



Foi há precisamente 30 anos. Em março de 1986 os Art of Noise apresentavam em single uma nova leitura para o clássico tema que Henry Mancini tinha composto para o genérico da série policial Peter Gunn, cuja banda sonora se tornou num dos clássicos maiores da história da música ao serviço da ficção televisiva.

Originalmente lançado em 1959, o tema conheceu inúmeras versões ao longo dos anos, por nomes como os Emerson, Lake & Palmer ou Deodato. A primeira das versões surgiu logo no mesmo ano do original num single de Duane Eddy.

Para a sua versão de 1986, que integra o alinhamento do álbum In Visible Silence, os Art of Noise recuperaram a presença de Duane Eddy, com este single tendo assinalado um dos episódios de maior popularidade de toda a sua obra. A versão dos Art of Noise sublinha bem a intenção original do compositor, que sempre viu esta sua composição como mais influenciada pelo (então emergente) rock'n'roll do que pelo jazz.

sexta-feira, março 25, 2016

"Spectre" em Blu-ray

Tempos houve em que as edições em DVD e, em particular, em Blu-ray se apresentavam, por regra, com uma variedade imensa de extras — a promoção falava mesmo em muitas horas e discos complementares de extras. Isso passou a ser a excepção. E mesmo a edição em Blu-ray de 007 Spectre chega ao mercado com uma modesta meia hora de conteúdos adicionais. Dito isto, importa valorizar o que é proposto: um documentário sobre a execução do fantástico plano de abertura [video] do filme, mostrando em particular os bastidores em que os 1500 figurantes foram vestidos e maquilhados. E deixando uma simpática mensagem de Sam Mendes: em tudo o que podia ser encenado fisicamente, ele dispensou os artifícios digitais. 

DC Comics v. Hollywood

Batman v. Super-Homem: O Despertar da Justiça chegou às salas de todo o mundo — esta nota foi publicada no Diário de Notícias (24 Março), com o título 'Ben Affleck fechado no seu fato de borracha'.

Não simplifiquemos: desde os tempos heróicos de Georges Méliès (há mais de 100 anos!...) até ao presente, a história do cinema é indissociável dos célebres efeitos especiais (que, de facto, foram inventados pelo próprio Méliès). Acontece que, face a um apoteótico desastre como este Batman V. Superman, a inteligência criativa de Hollywood parece ter sido metodicamente destruída pelos técnicos e tecnocratas que confundem a complexidade de qualquer narrativa com a produção de explosões e ruídos ensurdecedores, dispensando qualquer atenção a personagens e situações.
Na prática, tentando rivalizar com a Marvel, a DC Comics consegue a proeza pouco invejável de destruir a riqueza simbólica e a energia espectacular de duas figuras, Batman e Super-Homem, que pertencem ao fascinante património da grande cultura popular made in USA. Além do mais, chega a ser penoso ver um actor tão dotado como Ben Affleck passar o tempo a tentar fazer algum gesto significativo no imobilismo cruel do seu fato de borracha...

A IMAGEM: Stas Komarovski, 2016

STAS KOMAROWSKI
Iana Godnia / Barneys
2016

quinta-feira, março 24, 2016

Batman v. Super-Homem (memórias)

1978
Muito antes do desastroso Batman v. Super-Homem: O Despertar da Jutiça, o cinema tinha verdadeiros projectos de espectáculo com os super-heróis da BD — este texto foi publicado no Diário de Notícias (23 Março), com o título 'Quando começou a idade moderna dos super-heróis...'.

Em 1978, quando surgiu o Superman, de Richard Donner, com Christopher Reeve, ficou célebre um desabafo feliz do realizador: “O meu Super-Homem voa e voa maravilhosamente — isso é algo que ninguém me pode tirar.”
Tal contentamento pareceria deslocado se ouvíssemos agora Zack Snyder a celebrar os dotes voadores dos heróis de Batman v. Super-Homem: O Despertar da Justiça. De facto, os modernos recursos digitais banalizaram tais proezas (e o novo filme é também um amargo sintoma dessa banalização). Acontece que, em finais da década de 70, conseguir filmar o lendário vigilante de “S” no peito, vogando por cima dos arranha-céus de Metropolis, para mais com a capa vermelha em controlada e elegante ondulação, estava longe de ser coisa óbvia, muito menos automática. Para a história, com o seu orçamento de 55 milhões de dólares, Superman ficou mesmo como o mais caro filme feito até então (um ano antes, por um preço de 11 milhões, o primeiro título de A Guerra das Estrelas quase parecia um produto de cinema independente). Em termos industriais e comerciais, assistia-se ao triunfo do modelo de “blockbusters”, lançado em 1975 com um filme admirável de Steven Spielberg, chamado Tubarão.
1989
Nas últimas décadas, para o melhor e para o pior (cada vez mais para o pior...), a história cinematográfica dos super-heróis tem sido também a história das muitas manipulações técnicas que se aplicaram — ou, por vezes, se inventaram — para pôr gente a voar, cidades a ruir, galáxias a explodir. Se um filme como Superman conquistou um estatuto de clássico, isso deve-se, não à ostentação dos efeitos especiais, mas sim ao modo como a sua utilização estava ao serviço da intensidade dramática de um universo de aventuras e da vocação espectacular de uma personagem.
O mesmo se poderá dizer, aliás, do outro filme que baliza a idade moderna dos super-heróis, neste caso centrando-se na figura, igualmente inconfundível, do Homem-Morcego: Batman (1989), de Tim Burton, repôs a duplicidade de Bruce Wayne no imaginário cinéfilo, ao mesmo tempo inaugurando uma “tendência” que vale a pena sublinhar. A saber: a importância de algumas figuras “secundárias” na definição simbólica ou, sobretudo, irónica do próprio herói. Assim, as gargalhadas vorazes do Joker são essenciais no espírito de “ópera bufa” que Burton explora, a ponto de se poder dizer que o trabalho de Jack Nicholson na sua composição é mais emblemático (e ficou mais conhecido) que a própria interpretação de Batman por Michael Keaton. Para a história mitológica destas atribulações, recorde-se que um dos nomes que chegou a ser pensado para assumir a personagem do Joker foi David Bowie.

quarta-feira, março 23, 2016

Mapplethorpe — novo documentário

ROBERT MAPPLETHORPE
Auto-retrato
1988
Apresentado no Panorama do Festival de Berlim, com transmissão agendada na HBO a partir do mês de Abril, o documentário de Fenton Bailey e Randy Barbato propõe-se revisitar a obra de Robert Mapplethorpe através do inigualável impacto social das suas imagens — eis o trailer de Mapplethorpe: Look at the Pictures.

Rita Gam (1927 - 2016)

Foi uma figura com alguma popularidade na produção americana dos anos 50/60: a actriz Rita Gam faleceu no dia 22 de Março, no Centro Médico Cedars-Sinai, em Los Angeles, devido a problemas respiratórios — contava 88 anos.
De seu nome verdadeiro Rita MacKay, foi a primeira mulher do realizador Sidney Lumet (de 1949 a 1954). Tornou-se especialmente conhecida através de papéis de mulher fatal em títulos que foram desde o épico sobre a Roma antiga (O Sinal do Pagão, Douglas Sirk, 1954) até à superprodução bíblica (O Rei dos Reis, Nicholas Ray, 1961). Depois de um período em quase só trabalhou em televisão, reapareceu em 1971 em três títulos de Hollywood: Klute (Alan J. Pakula), O Solitário do Rio Grande (Henry Hathaway) e Amantes Desconhecidos (Otto Preminger). Amiga pessoal de Grace Kelly, foi dama de honor no seu casamento com o Príncipe Rainier do Mónaco — costumava dizer que deu mais entrevistas por causa desse evento do que pela sua carreira.

>>> Obituário no site Deadline.

A arte de Douglas Slocombe

A esmagadora maioria das evocações de Douglas Slocombe — falecido a 22 Fev. 2016 [NYT], poucos dias depois de ter completado 103 anos — destacou o seu contributo para os filmes da saga de Indiana Jones, o primeiro dos quais, Os Salteadores da Arca Perdida (1981), lhe valeu a sua terceira e última nomeação para o Oscar de melhor fotografia (que nunca ganhou). Claro que a contribuição de Slocombe para o visual daquela inovadora saga de aventuras não pode ser secundarizado. Em todo o caso, importa sublinhar que, muito antes do seu envolvimento com a produção de Hollywood, ele foi um dos mais dignos representantes das qualidades do cinema britânico, em particular através da sua ligação com os lendários estúdios Ealing. Aqui ficam três exemplos da refinada arte de Slocombe na encenação da luz e das cores.

>>> O HOMEM DO FATO CLARO (1951) — Dirigido pelo grande Alexander Mackendrick,  com Alec Guinness num dos seus papéis mais lendários, constitui um puro exemplo clássico de uma comédia social capaz de integrar os mais inusitados "desvios", neste caso através da actividade de um cientista "louco", não muito disponível para satisfazer as leis do seu estatuto social.


>>> O CRIADO (1963) — Um dos grandes filmes que o americano Joseph Losey dirigiu em Inglaterra e também uma das mais ricas e complexas interpretações de toda a carreira de Dirk Bogarde. Visão contundente do sistema de classes britânico, atravessada por um subtil subtexto homossexual, foi a primeira colaboração de Losey com o argumentista/dramaturgo Harold Pinter.


>>> POR FAVOR, NÃO ME MORDA O PESCOÇO (1967) — A maravilhosa paródia de Roman Polanski aos clássicos de vampiros contém reminiscências do espírito de absurdo de narrativas da Europa central; se tal decorria das raízes culturais do realizador, o certo é que Slocombe soube interpretá-las através de uma direcção fotográfica que tem tanto de realismo carnal como de assombramento cenográfico.

O Picasso de Fidel Castro

A história das artes faz-se também de muitos cruzamentos humanos, singulares encontros de ideias e afectos. Fidel Castro, por exemplo, é detentor de uma pintura de Pablo Picasso, datada de 1952. Mais do que isso: a obra contém uma dedicatória do próprio autor. A imagem pertence ao notável trabalho de Pete Souza, fotógrafo oficial da Casa Branca, durante a viagem do Presidente Barack Obama a Cuba — Souza divulgou-a no seu Instagram.

terça-feira, março 22, 2016

A IMAGEM: Martin Sutovec, 2016

MARTIN SUTOVEC
Terror em Bruxelas
22 Março 2016

Para que servem as salas de cinema?

Como está a ser pensada a dinâmica de estreias do mercado cinematográfico? E será que alguém a está a pensar?... — este texto foi publicado no Diário de Notícias (20 Março).

Depois da temporada dos prémios de cinema, finalizada com os Oscars, o mercado internacional está a entrar num novo ciclo, como sempre dominado pelos blockbusters. Na prática, isto significa que o espectador comum passou a ser metralhado com campanhas de elaborada agressividade que, voluntariamente ou não, tendem a afunilar as próprias opções de consumo — na saturação de “informação” em que vivemos, parece não haver mais nada para ver a não ser as últimas aventuras dos super-heróis da Marvel (que, convém não esquecer, se transformou numa das forças mais poderosas da indústria de Hollywood).
Bem sabemos que o terreno está minado de equívocos. A começar por aquele que favorece a mais básica estupidez: os “críticos” estariam sempre contra o grande espectáculo... Noutros tempos, a defesa de Batman (1989), de Tim Burton, servia de pretexto para acusar os mesmos “críticos” de terríveis cumplicidades com todas as monstruosidades que pudessem vir da América...
Hoje, como sempre, antes mesmo de qualquer consideração especificamente cinematográfica (há filmes “bons” e “maus” em todos os modelos de produção), o problema de fundo está na capacidade do mercado cinematográfico — por exemplo, num pequeno país como Portugal — preservar o fundamental valor da diversidade. Mais do que isso: conseguindo expor essa diversidade em todas as plataformas mediáticas.
Há cerca de dois anos, um analista do mercado dos EUA (Peter Bart, da revista Variety) comentava, com grande preocupação, o facto de, em determinada semana do Verão, os espectadores americanos terem à sua disposição seis novas estreias. E perguntava: como é que o espectador médio vai ter disponibilidade para consumir tantos títulos? Pois bem, nas salas portuguesas, nas próximas três semanas, surgirão, sucessivamente: oito, dez e treze filmes!
Não está em causa, insisto, que possam aparecer alguns excelentes blockbusters. Acontece que todos os outros títulos, incluindo os que envolvem alguma dimensão espectacular — penso, por exemplo, no caso desse belíssimo “filme-ópera” que é A Assassina, de Hou Hsiao-Hsien —, parecem condenados a uma discreta visibilidade. E é um facto que se anunciam alguns objectos potencialmente muito interessantes como: À Sombra das Mulheres, nova deambulação afectiva do francês Philippe Garrel; Mergulho Profundo, com assinatura do italiano Luca Guadagnino (autor de Eu Sou o Amor); ou O Abraço da Serpente, do colombiano Ciro Guerra, nomeado para o Oscar de melhor filme estrangeiro.
Não tenhamos ilusões: a lógica de evolução do audiovisual, nomeadamente através das várias formas de difusão televisiva ou em “streaming”, tende a desvalorizar o papel das salas. Resta saber se não se corre o risco de condenar essas mesmas salas ao papel dominante de rentabilização acelerada dos blockbusters, destruindo a sua dimensão simbólica e, no limite, o seu valor comercial.

segunda-feira, março 21, 2016

Olivia Wilde protagoniza campanha

Olivia Wilde oferece o seu rosto e a sua presença a uma campanha de delicada inteligência, concebida pela agência Saatchi & Saatchi, de Nova Iorque. Campanha de quê? É essa a questão... Vale a pena ver, serenamente, até final, sem outro dado prévio. Mais informações [depois de ver o clip] no site oficial.

CANNES 2016 — o cartaz

É sob o signo de Jean-Luc Godard — mais precisamente do seu filme Le Mépris / O Desprezo (1963) — que se faz o cartaz da 69ª edição do Festival de Cannes.
Hervé Chigioni e o gráfico Gilles Frappier criaram uma imagem poderosa, com Michel Piccoli a subir a escadaria da chamada Casa Malaparte (concebida em 1937 pelo arquitecto Adalberto Libera, para Curzio Malaparte), na ilha de Capri — as águas serenas do Mediterrâneo aguardam o esplendor do cinema, esse domínio criativo que, em O Desprezo, era evocado através das palavras cépticas de Louis Lumière: "uma arte sem futuro". Confirmaremos a partir de 11 de Maio — para já, dois minutos e meio de imagens e sons godardianos.

Alberto Seixas Santos — realismo & utopia

Robert Kramer em GESTOS & FRAGMENTOS
A obra de Alberto Seixas Santos pode ser vista ou revista, a partir de hoje, na Cinemateca — este texto foi publicado no Diário de Notícias (20 Março), com o título 'Para redescobrir o realismo de Alberto Seixas Santos'.

Nome fulcral na história do cinema português do último meio século, Alberto Seixas Santos [completou 80 anos no dia 20 de Março] é autor de uma obra apostada em questionar as convulsões do nosso século XX. As suas cinco longas-metragens, de Brandos Costumes (1974) a E o Tempo Passa (2011), serão mostradas a partir de hoje num ciclo na Cinemateca que inclui também outros títulos em que participou como co-autor ou intérprete.
A trajectória de Seixas Santos [foto] é indissociável dos valores da geração do Cinema Novo (Ernesto de Sousa, Fernando Lopes, Paulo Rocha, etc.). Tais valores começaram por se afirmar nas práticas cineclubistas (foi dirigente e animador do ABC Cineclube de Lisboa) e na intervenção crítica (colaborou, por exemplo, nas revistas Imagem, Seara Nova e O Tempo e o Modo). Vivia-se um tempo em que a Nova Vaga francesa e a referência teórica e moral dos Cahiers du Cinéma condensavam uma ideia de um cinema realmente inovador cujo gosto de experimentação não podia ser desligado de uma vontade de metódica observação das dinâmicas sociais e políticas. E também do seu desejo de outras formas de vida — retomando uma expressão do próprio Seixas Santos, o ciclo intitula-se “O realismo utópico”.
Nesta perspectiva, Brandos Costumes é um singularíssimo objecto. Em primeiro lugar, porque coloca em cena o imaginário do Estado Novo a partir da figura de Salazar, presença emblemática dos jornais de actualidades das décadas de 1930/40 “recriada” pela figura paterna que administra o espaço familiar em que a acção se situa; depois, porque o faz a partir de um festivo jogo de linguagens em que a distanciação à maneira de Brecht não exclui, antes convoca, as referências populares vindas do nosso teatro de revista.

Documentário & ficção

As duas longas-metragens que se seguiram, Gestos & Fragmentos (1982) e Paraíso Perdido (1992) definem, com Brandos Costumes, uma trilogia exemplar sobre a herança do salazarismo e os primeiros anos da nossa democracia. Gestos & Fragmentos é mesmo uma experiência sem paralelo na produção portuguesa, discutindo as convulsões do pós-25 de Abril a partir de três frentes narrativas: numa encontramos Otelo Saraiva de Carvalho, comentando o seu papel nos acontecimentos; noutra, igualmente documental, Eduardo Lourenço apresenta a sua visão desses mesmos acontecimentos; noutra, enfim, assumidamente ficcionada, uma personagem interpretada pelo cineasta americano Robert Kramer (autor do clássico Milestones, de 1975) discute as peripécias e os enigmas do 25 de Novembro.
As dificuldades que marcaram a produção de Paraíso Perdido tornam-no, talvez, o momento mais “imperfeito” da filmografia de Seixas Santos. Em todo o caso, é um filme que importa reavaliar na evolução histórica do cinema português. Através da relação de um professor universitário e uma jovem com menos trinta anos que ele, somos confrontados com um labirinto de memórias e perplexidades em que o passado colonial colide com um presente recheado de interrogações. De alguma maneira, as personagens e histórias de Paraíso Perdido antecipam o misto de expectativa e desencanto que marca as diferentes gerações que encontramos em Mal (1999) e E o Tempo que Passa.
Seixas Santos estará presente hoje (21h30) na sessão de abertura, com E o Tempo Passa. No dia 29 (21h30), é exibida pela primeira vez na Cinemateca a curta-metragem A Rapariga da Mão Morta (2005), seguida de Refúgio & Evasão (2014), retrato filmado do autor com assinatura de Luís Alves de Matos. O ciclo termina no dia 30 (21h30), com a passagem de Mal; nesse mesmo dia (18h30), a Cinemateca promove um encontro/conversa com o realizador.

domingo, março 20, 2016

Iggy Pop, anti-depressivo

O título não podia ser mais elucidativo: Post Pop Depression é uma elaborada confissão musical, capaz de reconhecer que os efeitos mais drásticos dos velhos caminhos talvez só possam ser superados ao espelho, voltando a questionar as suas origens. Com ou sem auto-ironia, o 17º álbum de estúdio do sr. James Newell Osterberg Jr., mais conhecido por Iggy Pop, conta com produção de Josh Homme (Queens of the Stone Age) e aí está, novinho em folha, quer dizer, sem preconceitos de revisitar esses cenários dos velhos tempos que o inspiram e justificam — uma das suas primeiras apresentações, através do tema Gardenia, ocorreu em The Late Show, com Stephen Colbert.

O. J. Simpson revisto pela televisão

No seu academismo dramático e narrativo, a série sobre o caso O. J. Simpson é um exemplo típico da mais banal formatação televisiva — este texto foi publicado no Diário de Notícias (18 Março), com o título 'Encenando O. J. Simpson'.

Escusado será sublinhar que a série O Caso O. J. Simpson (Fox) transporta e, de algum modo, consagra um dos mais típicos valores da televisão enquanto sistema de percepção do mundo. A saber: a reencenação de factos vividos por pessoas reais. “Baseado numa história verídica” tornou-se mesmo a expressão que serve de emblema a muitas experiências ficcionais.
O fenómeno, bem entendido, não é estranho ao mundo do cinema. Recentemente, pudemos observá-lo através de diversos filmes que concorreram a algumas das principais categorias dos Óscares, a começar pelos que ganharam nas categorias de argumento: O Caso Spotlight e A Queda de Wall Street. Em todo o caso, as diferenças são significativas. Enquanto tais filmes propõem narrativas de fascinante complexidade moral e simbólica (aliás, enraizadas nas mais nobres tradições de Hollywood), a televisão cede, muitas vezes, à sedução de um folclore superficial e maniqueísta.
Assim acontece com O Caso O. J. Simpson (escrevo a partir dos primeiros três episódios). A série, aliás, inaugura um ciclo de produções dedicadas ao “crime real” (American Crime Story) e parece ter como objectivo primeiro a criação de efeitos mais ou menos anedóticos em que cada personagem se distingue apenas por uma componente repetida e repetitiva: a procuradora Marcia Clark (Sarah Paulson) é “obsessiva” na investigação de O. J.; o amigo Robert Kardashian (David Schwimmer) é “cândido” na defesa do acusado; o advogado Johnnie Cochran (Courtney B. Vance) é “militante” na apreciação do lugar social dos negros, etc., etc., etc.
No centro de tudo isso surge, como é óbvio, a figura de um O. J. Simpson sem qualquer espessura dramática, para mais interpretado por um esforçado Cuba Gooding Jr., histriónico até à involuntária e patética caricatura. Em boa verdade, o pensamento narrativo de uma série como esta reduz-se à acumulação de breves situações “pitorescas” que reduzem tudo e todos a marionetas sem humanidade.

sexta-feira, março 18, 2016

"Taxi Driver" — 40 anos

Scorsese + De Niro
2016 é o ano em que Taxi Driver completa 40 anos. Filme seminal da segunda metade do século XX, momento singular da colaboração entre Martin Scorsese e Robert De Niro, revelação absoluta de Jodie Foster, com um prodigioso argumento de Paul Schrader, Taxi Driver será objecto de especial celebração na 15ª edição do Festival de Tribeca (de que De Niro é um dos fundadores e mentores). Assim, a 21 de Abril, o filme será projectado na sua cópia digital 4K (revelada em 2011, no Festival de Berlim), seguindo-se uma conversa com Martin Scorsese, Robert De Niro, Jodie Foster, Cybill Shepherd e Paul Schrader, moderada por Kent Jones, director de programação do certame — uma revisitação da grande metrópole, transfigurada, na expressão de Matthew Eng, numa "cidade de estranhos".

Melodrama & artes marciais

Hou Hsiao-Hsien está de volta com a delicadeza e a perturbação de A Assassina — esta nota foi publicado no Diário de Notícias (17 Março).

Filme de artes marciais? Sim, até certo ponto assim podemos definir A Assassina. Esta é a história de Nie Yinniang (Shu Qi), jovem guerreira dos tempos da Dinastia Tang (séc. VIII) que foi treinada para aniquilar os membros do governo que se entregam a práticas corruptas — até que a encarregam da morte do seu primo...
Uma teia melodramática? Sem dúvida, mas não parece haver um modelo claro em que seja possível “encaixar” o trabalho do cineasta chinês Hou Hsiao-Hsien (nascido em Meixian, em 1947), nome emblemático da produção de Taiwan. Estamos, afinal, perante um objecto de contagiante liberdade narrativa, em que o fulgor do fresco histórico se combina com os artifícios de uma encenação que, à falta de melhor, porventura de forma sugestiva, podemos classificar como operática.
O autor de Tempo para Viver e Tempo para Morrer (1985) e Flores de Xangai (1998) confirma-se, assim, como uma personalidade fulcral na actual produção asiática, conseguindo essa proeza sempre sedutora que consiste em construir o universal a partir dos mais secretos particularismos.