sábado, fevereiro 27, 2016

Jesus segundo o Bloco de Esquerda

1. O Bloco de Esquerda lançou uma campanha nacional para assinalar o dia 10 de Fevereiro em que o Parlamento "terminou a discriminação na lei da adoção”. Dia histórico, não tenhamos dúvidas, marco importante (ainda que apenas legislativo) na criação de novas formas de entendimento e vivência das relações humanas, e no respeito pelas diferenças individuais, sejam elas de que natureza forem.

2. Como é sabido, o referido cartaz — encimado pelo lema "Jesus também tinha 2 pais" — tem suscitado muitas reacções negativas, inclusive de personalidades do BE ou a ele historicamente ligadas: Marisa Matias, por exemplo, considerou-o "um erro"; por seu lado, Miguel Vale de Almeida escreveu: "Não percebo a razão de uma campanha para celebrar algo já conquistado (e com a Procriação Medicamente Assistida ainda pendente). Também não percebo o recurso à religião, que sempre se defendeu, e bem, ter de estar fora do debate" [DN].

3. Em boa verdade, a onda de indignação que se tem manifestado em sectores ideológicos muito diversificados é mais um exemplo da cegueira dominante, detectável em todos os sectores políticos, face ao funcionamento mediático da nossa sociedade. Acima de tudo, é espantoso que não se compreenda que a consolidação eleitoral do BE tem passado por uma hábil gestão da sua visibilidade pública, fenómeno a que já aqui chamei "o mediatismo do Bloco de Esquerda" — no limite mais delirante, qualquer discreta convulsão que aconteça na sociedade portuguesa pode sempre ser noticiada através de algum sinal vindo do BE. Para tal estratégia, mesmo não escamoteando a salutar demarcação individual de algumas personalidades, é indiferente a instrumentalização do imaginário católico — ou de qualquer outra referência histórica e cultural.


4. Nesta perspectiva, importa também dizer que o objectivo não é "ofender", pelo menos no sentido em que os que se consideram ofendidos colocam o problema. Aquilo a que assistimos é ao exercício de uma banal lógica de marketing que, evidentemente, não pensa na sensibilidade dos outros (a começar pela sensibilidade religiosa), nem sequer está preocupada com qualquer tipo de verosimilhança discursiva. Alguma vez Jesus foi personagem de qualquer reflexão sobre a adopção gay? Não importa... Também não consta que Albert Einstein tenha sido um militante das pastilhas de mentol — basta associar uma coisa a outra e assistir ao espectáculo social que isso desencadeia. Aliás, como sempre acontece, o espectáculo prolonga-se através das condenações do cartaz, nomeadamente de personalidades da Igreja [DN], cuja legitimidade não está em causa, embora, uma vez mais, se evite qualquer reflexão crítica sobre um espaço "social" em que prevalece a ideologia do Facebook — quanto mais efeitos mediáticos se desencadearem, multiplicando links ou alargando circuitos, melhor.

5. Esta é uma conjuntura que, também uma vez mais, não pode ser separada do simplismo da dicotomia "esquerda/direita" e, muito concretamente, do modo como Bloco de Esquerda e Partido Comunista secaram a identidade ideológica do Partido Socialista. Aliás, a consagração de uma ideia banalmente voluntarista da "esquerda", enraizada num "acordo de governação" que se faz do desconhecimento mútuo dos respectivos parceiros (Jerónimo de Sousa chegou mesmo a declarar, serenamente, que nas negociações com o PS nunca o PCP se reuniu com o BE), está a contribuir, com apoteótica indiferença, para a reorganização ideológica das forças de "direita" — entenda-se: para o retorno de uma ideia forte, menos crispada e mediaticamente mais ágil, de "direita".