sábado, janeiro 16, 2016

O calvário do professor Marcelo

Dramaticamente carente de ideias próprias, o espaço tele-político aposta em penalizar Marcelo Rebelo de Sousa por causa da sua presença na... televisão — este texto foi publicado no Diário de Notícias (10 Janeiro).

[ 'Marcelo, candidato do PS': 1 + 2 ]

No mundo das imagens televisivas, temos assistido a um curioso fenómeno, tecido de memórias precisas e insinuações difusas. Assim, alguns candidatos à Presidência da República têm apontado a posição “vantajosa” de que partiria Marcelo Rebelo de Sousa, decorrente da sua longa permanência nos ecrãs de televisão como comentador político.
Não se trata, entenda-se, de voltar a analisar os mecanismos de tal actividade. Limito-me, por isso, a referir que não sou admirador do seu estilo (privilegiando a fulanização da política e a redução das grandes clivagens ideológicas a diferenças mais ou menos pitorescas, banalmente “psicológicas”, entre pessoas), mesmo se não posso deixar de lhe reconhecer uma obsessiva coerência. O que gostaria de sublinhar é o facto de os candidatos, incluindo Marcelo, não se atreverem a exprimir o mais discreto ponto de vista sobre os fenómenos populistas da televisão em Portugal (tema social, por excelência, indissociável de qualquer percepção cultural do país). Ao mesmo tempo, face ao professor Marcelo, há quem esteja pronto a reconhecer que, afinal, os eventos televisivos não são politicamente indiferentes. Curioso, sem dúvida.
Claro que a demissão intelectual dos candidatos face ao poder cultural da televisão é apenas uma variante da atitude corrente dos partidos políticos (as excepções individuais não alteram o pano de fundo): encara-se a televisão como mero “transmissor” das posições dos políticos, sendo sintomático que, ao longo dos anos, as grandes polémicas audiovisuais sejam, quase sempre, sobre grelhas de debates eleitorais e tempos de antena.
Em boa verdade, em quatro décadas de democracia, os políticos (caucionados, é certo, por alguns modelos discursivos de jornalismo) conseguiram a proeza triste de excluir a reflexão sobre a televisão do espaço do pensamento cultural. O que tem devastadoras consequências práticas e simbólicas: a televisão pode ter contribuído para o triunfo de matrizes narrativas profundamente estereotipadas (novelas), pode mesmo celebrar a despudorada desumanização das relações humanas (reality TV); o certo é que nada disso move ou comove quem se apresenta como detentor de uma visão abrangente da sociedade portuguesa. Entretanto, condena-se Marcelo Rebelo de Sousa ao calvário de quem é “culpado” de ter uma prolongada presença no pequeno ecrã...
Há mais de duas décadas, num espantoso filme chamado Quiz Show (1994), Robert Redford partia de um caso verídico (envolvendo a manipulação de resultados num concurso televisivo dos anos 50) para dar a ver o modo como a televisão existe como um espaço de encenação, tão legítimo como qualquer outro, que importa questionar na sua ilusória transparência. É mais fácil demonizar a persona televisiva de Marcelo, repetindo os dispositivos de fulanização do próprio visado e evitando a certeza mais urgente: é preciso pensar a vida cultural portuguesa sem excluir a cultura televisiva dominante.