quinta-feira, dezembro 24, 2015

Natal vs. cinefilia

Os filmes de Natal são uma tradição que, de facto, se foi decompondo com o tempo (e as televisões) — este texto foi publicado no Diário de Notícias (20 Dezembro), com o título 'O Natal cinéfilo já não é o que era''.

Nas vésperas do Natal de 2004, Polar Express, de Robert Zemeckis, surgiu como uma aposta renovadora no panorama cinematográfico da quadra festiva. Apesar de contar com Tom Hanks como cabeça de cartaz, a história de uma criança que viaja até ao Pólo Norte, na expectativa de um encontro com o Pai Natal, tinha como verdadeira vedeta a tecnologia. De tal modo que entrou no Livro de Recordes do Guinness como o primeiro filme integralmente fabricado através do método de motion capture (por vezes referido como performance capture).
Que estava em jogo? A possibilidade de criar um universo de fantasia desenhada, não através da animação tradicional, mas sim começando por filmar com actores de carne e osso. Na prática, o motion capture envolve uma rodagem prévia com os intérpretes, a partir da qual se cria uma base de movimento e acção que, por sua vez, é sujeita a um tratamento característico de um desenho animado. Polar Express conseguiu um impacto comercial apenas mediano, mas abriu todo um novo capítulo expressivo que tem vindo a ser prolongado através de experiências como Beowulf (2007), também de Zemeckis, ou As Aventuras de Tintin (2011), de Steven Spielberg.
Onde estão, então, os filmes de Natal? Pois bem, por mais que custe às boas almas, quase desapareceram. Desde logo, porque as televisões generalistas há muito reduziram o leque de propostas cinematográficas, aliás reforçando uma secundarização do cinema que, como é óbvio, está longe de se limitar à época natalícia. Depois, porque a lógica do mercado (por certo reflectindo um abalo sociológico que valeria a pena analisar) tende a privilegiar outros produtos: este ano, os trunfos principais de Hollywood são mesmo o regresso da saga Star Wars, e um “western” para adultos, The Hateful Eight, com assinatura de Quentin Tarantino.
É, por isso, com convicta nostalgia que evocamos mestres como Jean Renoir (A Vendedeira de Fósforos, 1928), Vincente Minnelli (Não Há como a Nossa Casa, 1944) ou Frank Capra (Do Céu Caíu uma Estrela, 1946). Mesmo não menosprezando as maravilhas técnicas do cinema deste século, os seus filmes falam-nos de gente muito viva, com actores e actrizes que ainda nem sequer conheciam os desvios digitais que podiam enriquecer (?) as suas personagens..
Na verdade, a cinefilia já não é o que era. No Natal, ou a propósito do Natal, a tradição acabou mesmo por integrar sentimentos perturbantes e contraditórios, como o sarcasmo que encontramos na personagem de um duende interpretado por Will Ferrell (Elf, o Falso Duende, 2003) ou a rede de desencantos que define uma família “como as outras”, observada por Arnaud Desplechin (Um Conto de Natal, 2008).
No mercado português, há, apesar de tudo, um arremedo de tradição. Assim, no dia 24 chegará às salas escuras Snoopy e Charlie Brown, não um típico filme de Natal, mas pelo menos uma celebração de uma infância que, ironicamente, combate as ideias feitas dos adultos. Em qualquer caso, o verdadeiro espírito da quadra está no mais inusitado dos filmes: chama-se Coração de Cão e envolve uma tocante mensagem de ternura e solidariedade assinada por Laurie Anderson. O pretexto é “apenas” a morte de Lolabelle, a cadela da autora, mas se este é o momento de celebrar a vida e o amor, então não haverá filme mais natalício.