sexta-feira, dezembro 04, 2015

A visão cósmica de Zulawski


Andrzej Zulawski consegue consumar a "impossível" tarefa de adaptar Cosmos, de Witold Gombrowicz — este texto foi publicado no Diário de Notícias (28 Novembro), com o título 'Uma nova dimensão da realidade'.

Nestes tempos difíceis, a visão dominante sobre o que seja uma boa “adaptação literária” encontra-se, obviamente, parasitada pelos mais rotineiros padrões televisivos. Na prática, prevalece o simplismo muito académico, infinitamente redutor, segundo o qual “adaptar” um livro, seja ele qual for, é colocar as personagens a debitar, tanto quanto possível, os diálogos que estão publicados, sem esquecer o complemento “artístico” dos cenários “naturais” e do guarda-roupa “histórico”... É em nome de tais valores que, em contextos muito variados (incluindo Portugal), se têm produzido e difundido os mais respeitados horrores.
Vem a propósito recordar as limitações de tal imaginário (e consequente falta de imaginação), quanto mais não seja porque o filme Cosmos, de Andrzej Zulawski, constitui uma metódica negação de todas as suas práticas. Convenhamos que a adaptação do romance homónimo de Witold Gombrowicz (1904-1969), publicado em 1965, dificilmente poderia ser sustentada pela preguiça de qualquer academismo. Aliás, apetece dizer que estamos perante um texto “inadaptável”, capaz de desafiar o cinema a dar “visibilidade” a acontecimentos que, em boa verdade, parecem indissociáveis das especifidades e do fulgor da palavra escrita.
Tal como David Cronenberg no seu admirável O Festim Nu (1991), segundo William S. Burroughs, também Zulawski compreende que a energia da palavra atrai a liberdade da imagem (e do som!). De tal modo que a aventura existencial de Witold (Jonathan Genet) e Fuchs (Johan Libéreau), procurando a quietude “ideal” de um lugar distante das neuroses citadinas, se desenvolve como uma descoberta dos fantasmas que circulam por dois cenários convencionais: a mãe Natureza, agora revista como uma entidade que alienou qualquer ilusão naturalista; e o espaço da família, decididamente a viver contaminado pela crueldade de um humor visceralmente burlesco.
Não admira, por isso, que este seja mais um momento da filmografia de Zulawski em que ele convoca o melhor dos seus actores — lembremos os casos limite de Romy Schneider e Isabelle Adjani, respectivamente em O Importante É Amar (1975) e Possessão (1981). Jean-François Balmer, Sabine Azéma e Victoria Guerra [foto] são admiráveis no modo como encarnam as atribulações do clã Woytis, dir-se-ia virando do avesso tudo aquilo que, em ficções mais acomodadas, nos tenta iludir com a ilusória transparência do mundo e as gratificações da normalidade.
Estamos perante um exemplo admirável de um cinema que resiste à impostura das “reproduções”. Na verdade, as imagens (e os sons!) não são a duplicação de coisa nenhuma, apenas a fabricação de uma nova dimensão da realidade que, instante a instante, confirma e desmente os nossos olhos e, sobretudo, os nossos esforçados desejos. Será preciso acrescentar que tudo isto se apresenta pontuado pelo eco de um riso épico e contagiante?