segunda-feira, novembro 30, 2015

A geopolítica segundo Spielberg

A PONTE DOS ESPIÕES
Revisitando os tempos da Guerra Fria, Steven Spielberg relança as mais nobres matrizes do classicismo de Hollywood — este texto foi publicado no Diário de Notícias (25 Novembro), com o título 'Quando a grande aventura é o xadrez da geopolítica'.

O novo filme de Steven Spielberg, A Ponte dos Espiões, com Tom Hanks a assumir a personagem de um advogado que tenta obter uma troca de prisioneiros em plena Guerra Fria, parece corresponder a uma certa vontade de realismo que tem contaminado muitos títulos recentes, das mais diversas origens. Trata-se, de facto, de mais uma narrativa “inspirada em factos verídicos”, para mais relançando-nos nas atribulações de um tempo em que a construção do Muro de Berlim desenha, literal e simbolicamente, um novo mapa da Europa.
Estamos perante mais um exemplo das preocupações históricas de Spielberg, à semelhança de títulos emblemáticos da sua filmografia como A Lista de Schindler (1993), evocando o Holocausto, ou Amistad (1997), sobre uma revolta de escravos. Aliás, os dois filmes anteriores a A Ponte dos EspiõesCavalo de Guerra (2011) e Lincoln (2012) — decorrem do mesmo tipo de preocupações, abordando, respectivamente, um episódio da Primeira Grande Guerra e a luta legislativa que conduziu à abolição da escravatura.
Em qualquer caso, vale a pena referir que a convocação de contextos históricos muito precisos nunca foi estranha aos “outros” filmes de Spielberg, habitualmente descritos como “mais espectaculares”. Lembremos o exemplo lendário, por excelência: promovido como “o regresso da grande aventura”, Os Salteadores da Arca Perdida (1981) não era também uma bela parábola política centrada na resistência do arqueólogo Indiana Jones aos desígnios dos nazis?
Sustentado por um elaborado argumento, resultante da colaboração dos irmãos Coen com Matt Charman, pode dizer-se que A Ponte dos Espiões trata o xadrez da geopolítica como um jogo aventuroso. Não à maneira do heroísmo de James Bond, entenda-se (que, em qualquer caso, pelo menos na época de Sean Connery, é também indissociável do mesmo contexto de confronto EUA/URSS). Antes através de uma personagem inesperada, de alguma maneira compelida a discutir a própria possibilidade de alguma manifestação individual de heroísmo.
James B. Donovan (Hanks) é, assim, o advogado especializado em seguros que, por pressão da sua própria firma, se descobre envolvido num labirinto de factos, relações e enigmas que começa na prisão de Rudolf Abel (Mark Rylance), acusado de actividades de espionagem ao serviço da URSS. Simplificando (até porque importa preservar o direito do leitor descobrir a intriga sem informações excessivas sobre as suas peripécias), digamos que o núcleo dramático do filme tem menos a ver com as tensões entre americanos e soviéticos e mais com a silenciosa cumplicidade afectiva que se vai desenhando entre Donovan e Abel.
Nesta perspectiva, pode dizer-se que o trabalho de Spielberg se desenvolve no cruzamento da inspiração humanista de um Frank Capra (autor dos emblemáticos Doido com Juízo e Peço a Palavra, de 1936 e 1939, respectivamente) com a tradição liberal enraizada nas convulsões temáticas e formais de Hollywood nas décadas de 1960/70 (Frankenheimer, Pakula, Pollack, etc.). É uma visão eminentemente paradoxal, de exaltação dos valores da liberdade e também de observação da solidão primordial de cada ser humano. A sua base não é exactamente a “reconstrução” histórica (não encontramos aqui nenhum decorativismo que se baste a si próprio), mas sim a vertigem que a própria história coloca em marcha, oscilando entre as abstracções colectivas e a irredutibilidade de cada indivíduo.
Não admira, por isso, que este seja um objecto de imaculado classicismo. Desde a sofisticada direcção fotográfica de Janusz Kaminski até à delicadeza sinfónica da música de Thomas Newman (no lugar do fiel John Williams, momentaneamente indisponível por razões de saúde), A Ponte dos Espiões atesta o sereno génio de um cineasta que não cede à facilidade das modas (mesmo as que ele ajudou a pôr em marcha). Enfim, não esqueçamos a composição de Tom Hanks: ele continua a ser o exemplo modelar de um actor que, como diria Hitchcock, sabe representar a odisseia de pessoas normais face a factos e contextos que as transcendem — e que as obrigam a transcender-se.

domingo, novembro 29, 2015

Guia para The Dead Weather [1]

A história de The Dead Weather começa com outra banda... Por isso, não digam a ninguém, mas permitam-me que proclame, militantemente, que a coisa mais genuína (não digo a "melhor", não quero ofender ninguém) que o rock produziu no século XXI dá pelo nome de The Kills. Que é como quem diz: a aliança entre a americana Alison Mosshart e o britânico Jamie Hince — som agreste, habitado pela mais delicada poesia, tudo imaginado numa austeridade de guitarras capaz de encher pavilhões com o sentimento de uma intimidade à flor da pele.
Abreviando, lembremos que The Kills chegaram a um quarto álbum, o prodigioso Blood Pressures (2011), como quem desemboca num planalto redentor. Não desapareceram, comemoraram mesmo o seu 10º aniversário, mas (ainda) não voltaram a gravar.
* * * * *
The Dead Weather viria a ser o produto de um belo acaso. Rezam as crónicas que tudo começou com Jack White, centralíssima personagem de toda esta odisseia, a sentir a voz a falhar... Foi em Memphis, Tennessee: o ex-White Stripes estava num concerto com os seus The Raconteurs e, perante as dificuldades, solicitou a Mosshart (The Kills integravam a digressão de The Raconteurs) que desse uma ajuda no tema Steady, As She Goes — na prática, arrancou aí o projecto The Dead Weather.
No começo de 2009, White e Mosshart, com a competente companhia de Dean Fertita (guitarra) e Jack Lawrence (baixo), começaram a gravar nos estúdios Third Man, criados por White em Detroit, Michigan, em 2001. Poderão perguntar: fazer uma música orgulhosamente independente, contaminada pela nostalgia do blues e a vibração do garage rock... sem um baterista? A resposta é simples: reencontrando um velho sonho adolescente, a bateria estava entregue... ao próprio White.
O primeiro single de The Dead Weather, Hang You from the Heavens (Fertita/Mosshart), foi editado a 11 de Março de 2009. Sugere-se que apertem os cintos... Ou talvez não: o respectivo teledisco, assinado por David Swanson, tem por cenário uma cabine para tirar fotografias; o lado B oferecia uma versão do tema de Gary Numan Are 'Friends' Electric? [audio aqui em baixo].




>>> Site oficial de The Dead Weather.

Black Friday ???

Não uma "sexta-feira negra", já que falar português não está na moda... Leio nas notícias informações sobre o dia chamado 'Black Friday' e o seu conceito. Tudo bem. As lojas fazem as promoções que entenderem e, é um facto, o seu poder mediático é devastador — ou não fosse a publicidade uma das linguagens mais poderosas do nosso tecido social.
O que surpreende é que vivemos num país em que, a propósito de tudo e nada, somos bombardeados com a estupidez do mais primário anti-americanismo (observe-se a facilidade com que pessoas inteligentes falam das "americanas" do cinema, como se desse modo resumissem mais de um século de uma história gloriosa...). Entretanto, neste mesmo país vemos lojas, montras, campanhas, jornais, televisões e tudo o que está "in" na Net entregarem-se à celebração da 'Black Friday' como se tal evento fizesse parte das nossas tradições mais fundas desde o culto da Virgem Maria. Marketing? Por certo. Mas o nome mais adequado é outro: cinismo.

sábado, novembro 28, 2015

O desafio da televisão [citação]

FOTO: Graça Castanheira
>>> Octávio Paz supôs recentemente que a humanidade futura se dividiria em duas raças: a dos homens livres e poderosos, aqueles que lêem, e os outros, aqueles que olham para a televisão. É pena que não tenha posto entre os poderes os que não lêem nem vêem televisão, mas são os senhores da televisão. De qualquer maneira, esta profecia pouco eufórica não me parece fatal. A televisão existe, não é em si um novo império do mal. Não é útil nem fácil distinguir nela uma boa ou má televisão. Que critérios conceber para isso? Mas é possível vivê-la como um desafio à nossa capacidade de discernimento, à essência mesma da nossa liberdade, que não criou a televisão para que ela nos devorasse.

EDUARDO LOURENÇO
Gradiva, 1998

O jornalismo face ao horror

A LISTA DE SCHINDLER (1993)
Como lidamos com o terrorismo? Em particular, como avaliamos as questões básicos do informar e dar a ver? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (22 Novembro), com o título 'As nossas narrativas do horror'.

Uma vez, num contexto cultural bem diverso, perante a possibilidade de se fazer uma abordagem jornalística do filme A Lista de Schindler (1993), de Steven Spielberg, alguém me replicou, com toda a seriedade e simpatia, que seria importante poder ligar o filme a um “tema”...
Arrepio-me sempre que penso em tal episódio. Detecto nele um muito tradicional menosprezo pelo fenómeno cinematográfico, tão enraizado e assumido que, nem mesmo face a uma abordagem do Holocausto, tal atitude consegue compreender que o “tema” é... o próprio filme.
Mas não vejo a questão como especificamente ideológica. Ou melhor: avalio-a como sintoma de uma ideologia jornalística que continua a ter um peso imenso no nosso espaço audiovisual, permanecendo impensada (quando não automaticamente aplicada) por muitos profissionais. A sua regra nº 1 é esta: nada acontece como facto cru, tudo carece de ser enquadrado numa “temática” mais ou menos repetitiva e determinista.
Exemplo caricato, de todos os dias, é a militância pueril com que muitos comentadores de futebol falam de “justiça” a propósito dos resultados dos jogos — continuo à espera que algum explique em que tribunal devem ser julgadas as equipas que, segundo eles, jogam “mal” e ganham jogos (mas o silêncio persiste, o que significa que esses mesmos comentadores se assumem como oráculo, sem recurso, da “justiça” que proclamam).

in La Voix de l'Amérique
Exemplo incomparavelmente mais dramático e perturbante é a avalanche de imagens em torno do 13 de Novembro, em Paris. Tenho consciência de que não será legítimo reduzir tais imagens a um “sentido” único e unívoco (nem sequer partir daí para duvidar da seriedade dos que, profissionalmente, as trabalham). Mas importa reflectir um pouco sobre os seus efeitos globais, quanto mais não seja para sermos dignos dos valores da “globalização” que tanto apregoamos.
E há dois desses efeitos que parecem impor-se automaticamente, como se não houvesse ninguém a seleccionar e emitir as imagens. O primeiro é de natureza “simbólica”: nada acontece que não seja rapidamente contaminado pelo sublinhado de alguma retórica; no limite, a imagem de um cadáver já não emana da brutalidade dos factos porque se insere numa linguagem em que o valor principal parece ser a produção continuada de clímaxes. O segundo decorre desse método de acumulação: a repetição incessante das mesmas imagens, ainda que sustentada pela mais pura compaixão humana, tende a produzir um clima de descarnada banalização — aquilo que se vê todos os dias, a todas as horas, mostrado nas mesmas sequências e montagens, acaba por existir como um elemento “normal” da paisagem social.
Em tempos de tantas crispações juvenis, espero que seja claro que não se trata de suspeitar de qualquer “cumplicidade” da informação democrática com o horror do terrorismo. Seja como for, mantemo-nos em défice: pensamos pouco, ou quase nada, o modo como o terrorismo também desafia as práticas jornalísticas, em particular as narrativas televisivas.

Tarantino e o glorioso 70 mm

A frase é antiga e volta a ser actual: "Filmado em glorioso Ultra Panavision 70" — o novo filme de Quentin Tarantino, The Hateful Eight (estreia nos EUA no dia de Natal), é um western que aposta em recuperar as velhas glórias do gigantismo do 70 mm. De tal modo que o seu lançamento será feito em cerca de uma centena de salas americanas que souberam preservar as necessárias condições de projecção de um formato indissociavelmente ligado às superproduções dos anos 50/60 (Ben-Hur, Lawrence da Arábia, etc.) — eis um pequeno filme promocional sobre o retorno às câmaras Panavision de 70 mm e o espectáculo prometido por Tarantino.

sexta-feira, novembro 27, 2015

Cinema / populismo / televisão

Com a estreia de O Leão da Estrela, confirma-se uma estratégia de produção e difusão colada ao poder narrativo e social dos mais medíocres registos televisivos — este texto foi publicado no Diário de Notícias (26 Novembro), com o título 'Na teia do populismo'.

Iniciada com O Pátio das Cantigas, a trilogia de propostas revivalistas do produtor e realizador Leonel Vieira prossegue com O Leão da Estrela (para se concluir com a estreia, em 2016, de A Canção de Lisboa). Mais ainda do que em relação ao título anterior, qualquer comparação com o original é alheia ao projecto — mesmo o enquadramento clubista e geográfico da expressão “leão da Estrela” (personagem interpretada por António Silva no filme de 1947) está posto de parte.
Não creio, infelizmente, que haja muito a acrescentar às considerações que O Pátio das Cantigas suscitava. Por um lado, desvaneceu-se qualquer ligação cinéfila ao passado da comédia no cinema português (que continua a ser mitificado para além de qualquer contextualização histórica ou cultural). Por outro lado, se O Leão da Estrela tem a ver com alguma linguagem específica, as suas raízes estão na mais medíocre televisão que se tem produzido no nosso país, incluindo a avalanche de telenovelas e a degradação dos padrões clássicos de comédia, agora reduzidos a uma infinita banalização das matrizes herdadas da tradição do teatro de revista (precisamente a que, melhor ou pior, sustentava as comédias produzidas nas décadas de 1930/40 pela indústria montada pelo regime salazarista).
Seria saudável que as pessoas envolvidas num filme como este compreendessem que ninguém discute a legitimidade do seu trabalho. Acontece que as suas características não podem deixar de desencadear juízos de valor negativos junto daqueles que, há muitas décadas, defendem uma dinâmica audiovisual que saiba demarcar-se dos formatos mais estereotipados das televisões. No limite, reactivar insultos contra a “crítica” dispensa o esforço de qualquer pensamento, apenas reforçando as misérias correntes do populismo.

Ver + ler + ouvir:
Ra Ra Riot + Rostam, Water



Os Ra Ra Riot estão de regresso e, neste cartão de visita para um novo álbum contam com a colaboração de Rostam Batmanglij, dos Vampire Weekend. A canção está todavia bem longe dos caminhos do projeto paralelo Discovery que, há uns anos, juntou Rostam ao vocalista dos Ra Ra Riot.

Novas edições: Baio

“The Names”
Glassnote
4 / 5

Longe dos ritmos de outras eras – nos sessentas lançavam-se muitas vezes dois álbuns por ano, nos setentas e oitentas o ritmo abrandou, mas manteve-se habitualmente coisa anual – os ciclos de vida dos discos fazem com que as longas temporadas de estrada e pausa afastem frequentemente por dois ou três anos entre si a edição de muitos álbuns de estúdio. E com os Vampire Weekend em pousio desde o lançamento do belíssimo Modern Vampires of The City, que os confirmou como uma das mais inspiradas bandas nova-ioquinas dos últimos dez anos, nada como estarmos atentos ao que, em nome próprio, ou entre colaborações, os seus elementos nos vão mostrando. Já encontramos o vocalista Ezra Koenig em várias parcerias, assim como vimos Rostam Batmangilj na pele de produtor ou até mesmo a dividir com Wesley Miles (dos Ra Ra Riot) a breve (mas bem estimulante) vida do projeto paralelo Discovery. Chris Baio, o baixsta do quarteto, tinha já editado alguns EPs em nome próprio. Mas é agora, com o álbum The Names que assinala a sua estreia a solo com um corpo de composições de maior fôlego.

Convém talvez lembrar que as vivências musicais de Chris Baio não se cingem ao universo revelado nos Vampire Weekend e que, antes de ter encontrado a banda entre colegas da Columbia University (onde estudou russo e matemática) tinha já integrado outras bandas e, sobretudo, trabalhado como DJ, apresentando-se como Baio. E foi por aí que começou a desenhar a sua discografia a solo em primeiros EPs editados em 2012 e 2013 onde deixava clara essa vontade em retomar uma relação mais próxima com a música de dança, terreno pouco evidente no universo Vampire Weekend.

Três anos depois dos “primeiros sintomas” revelados em Sunburn, a sua música encaminhou-se para os domínios da canção, mantendo as ferramentas electrónicas numa linha da frente do protagonismo instrumental, embora ensaiando ideias de uma pop mais luminosa, sem necessariamente procurar as soluções mais habituais nas suas experiências de música de dança. The Names é assim um ensaio de uma pop na verdade mais reflexiva que fisicamente expansiva, revelando sobretudo um gosto pela procura de uma assinatura de autor na procura dos sons e no cuidado da sua arrumação. É um disco de canções que escapam a modas e fórmulas, mas que revelam um ecletismo de quem somou experiências e vivências e agora procura entre elas fazer nascer uma voz própria. Há luzes e cores por aqui, uma voz que e molda às canções e que, mesmo sem ser coisa imponente ou nitidamente característica, encontra uma identidade no diálogo cuidado que estabelece entre a composição, a instrumentação e a produção. A leste dos ditados do hype indie e sem preocupações em seguir os sabores do momento em quaisquer outros domínios, e sem procurar uma caução nos Vampire Weekend (mas mantendo o sentido doce e leve da sua música), Baio faz deste The Names uma bela surpresa.

Para ler: os filmes do ano da 'Sight + Sound'

A revista publicada pelo BFI acaba de apresentar a sua lista dos 20 melhores filmes do ano. Miguel Gomes e Pedro Costa estão entre os escolhidos.

Podem ver aqui a lista

quinta-feira, novembro 26, 2015

O menosprezo pelo pensamento

1. O menosprezo pelo pensamento circula com facilidade na sociedade portuguesa: questão histórica, política, simbólica — complexa, sem dúvida.

2. Em todo o caso, é interessante referir que, dos tempos do salazarismo, transitou para a democracia uma visão ideológica das práticas críticas que continua a ser dominante [escusado será dizer que estas linhas são escritas a partir de um ponto de vista que se reconhece minoritário]. Axioma brutal dessa visão: o mercado existe para desmentir o pensamento.

3. No cinema, tal visão utiliza sempre o mesmo silogismo: se a crítica diz "mal" de um filme, um eventual sucesso comercial desse mesmo filme desmente a justeza da própria crítica [exemplo sintomático, obviamente decorrente de uma honesta convicção: o título acima reproduzido, publicado no jornal i, 25-08-15]. Implicitamente, por certo involuntariamente, sugere-se que a estupidez dos críticos é de tal modo gigantesca e patética que desconhecem a especificidade do seu próprio pensamento, de algum modo esperando que os índices da economia venham "transcrever" os seus juízos de valor (como é que uma análise de linguagens narrativas, imagens, sons, planos, montagem, é "desmentida" por uma tabela excel de bilheteiras, eis o que fica por esclarecer).

4. Escusado será dizer que a argumentação carece da mais básica consistência — o seu impensado é imenso. Primeiro, porque "a" crítica não existe — na melhor das hipóteses, existem críticos, no plural. O labor crítico é um espaço marcado por profundas diferenças (de pensamento, justamente) e, mesmo que possamos considerar que todos os críticos são medíocres, de facto não se exprimem como um rebanho. Depois, porque, com mais ou menos talento, um pensamento crítico é isso mesmo, um pensamento — não algo que se possa reduzir ao dizer "bem" ou dizer "mal", muito menos algo que dependa dos movimentos de qualquer índice de box office.

4. a) - Vale a pena recordar, a esse propósito, que a demonização da crítica adquire as mais contrastadas configurações, inevitavelmente decorrentes das componentes de determinados contextos ideológicos e políticos — hoje em dia, exprimir um juízo negativo sobre um filme "popular" parece legitimar todas as formas de insulto; há 40 anos, exprimir um juízo positivo sobre um filme "popular" (cf. Tubarão) justificava, no mínimo, que o crítico em causa fosse remetido para a Sibéria...

5. O que é interessante, insisto, é que tal argumentação encara a dinâmica económica e financeira como um factor automático de desautorização de qualquer pensamento. Qualquer? Não exactamente, apesar de tudo. Valeria a pena, por exemplo, saber se os biliões que o negócio do tabaco movimenta em todo o mundo anulam, automaticamente e sem possibilidade de recurso, as considerações que os médicos tecem há muitas décadas sobre as relações entre os cigarros e as mais diversas formas de cancro...

6. O que é que os cigarros tem a ver com os filmes? Os críticos são os médicos do cinema? Nada disso, como é óbvio — evitemos as derivas demagógicas do senso comum. O que, aqui, se pensa não é exactamente o "tabaco" ou o "cinema". O que assim se pensa é a dominação de uma visão economicista dos comportamentos humanos em que se tenta impor a ideia de que as performances financeiras dispensam qualquer forma de pensamento.

7. O problema não está em que existam filmes que nos dividam — salvo erro, a história do cinema é também a história dessas divisões. O problema reside no facto de alguns valores sociais dominantes nos quererem convencer da importância de não pensar.
_____

* POST SCRIPTUM: Pensar os "recordes" dos filmes, por exemplo, é uma atitude cujo valor jornalístico merece ser enaltecido. Sobretudo se, ao mesmo tempo, tal pensamento reflectir a preocupação, igualmente jornalística, de tentar compreender o mundo à nossa volta, colocando algumas das perguntas mais prementes que a questão suscita. Cinco perguntas, pelo menos:

I — Quais são os modelos social e economicamente dominantes de ficção, nomeadamente no espaço televisivo?
II — Que diferenças existem, e quais os seus efeitos concretos, entre as campanhas promocionais de filmes distintos (de qualquer origem geográfica ou cultural)?
III — De que modo o espaço televisivo promove, ou não, um pensamento plural sobre o cinema?
IV — De que modo a escola promove, ou não, um conhecimento alargado da pluralidade do cinema e da sua história?
V — De que modo as formas jornalísticas dominantes se interessam, ou não, pela divulgação dos produtos cinematográficos (de qualquer origem geográfica ou cultural) que não desfrutam de grandes campanhas promocionais?

Setsuko Hara (1920 - 2015)

Primavera Tardia (1949)
Lendária actriz dos filmes de Yasujiro Ozu (1903-1963), a japonesa Setsuko Hara faleceu no dia 5 de Setembro [a notícia só agora foi divulgada], vitimada por uma pneumonia — contava 95 anos.
Embora tenha trabalhado também sob a direcção de outros grandes mestres do Japão, como Akira Kurosawa (No Regrets of Our Youth, 1946) ou Mikio Naruse (Meshi, 1951), Setsuko Hara, na sua pose radiosa e indecifrável, é uma presença indissociável de Ozu. Com ele fez seis filmes, incluindo a trilogia mágica em que o realizador, num efeito de carinhosa assinatura, lhe atribuiu sempre o nome de Noriko: Primavera Tardia (1949), Verão Precoce (1951) e Viagem a Tóquio (1953), este o mais mítico trabalho de Ozu, retratando o Japão do pós-guerra através de um subtil confronto de valores, sensibilidades e gerações.
Setsuko Hara retirou-se muito cedo, em meados da década de 60. Tal como Ozu, foi sempre uma pessoa avessa a exposições mediáticas. Em boa verdade, o pouco que dela sabemos é o muito que está registado pelas câmaras — a sua vida pertence ao cinema como uma passagem imponderável que, serenamente, contorna a certeza da morte.
Setsuko Hara, Yasujiro Ozu e Chieko Higashiyama
— rodagem de Viagem a Tóquio (1953)
>>> Trailer de Viagem a Tóquio.


>>> Obituário no jornal The Guardian.
>>> Setsuko Hara no site Ozu-san.
>>> Artigo de Donald Richie: 'Ozu e Setsuko Hara'.

Paris, 2015

Rennes (16 Nov.)
FOTO: Damien Meyer /AFP / Getty Images
Tão perto, tão longe... Estranhas medidas do tempo, neste tempo de tantas acelerações e esquecimentos. Revemos estas imagens e, para além das certezas que a história inscreveu em nós, há nelas uma ferida abstracta que nos faz supor (ou desejar) que se trata de uma tragédia distante, porventura ilusória, a que não pertencemos.
São fotografias (admiráveis) sobre os atentados de 13 de Novembro em Paris, coligidas no sempre interessante blog 'The Big Picture', do jornal The Boston Globe — vale a pena ver as 40 imagens do portfolio "Paris attacks".

Le Mans (16 Nov.)
FOTO: Jean-François Monier / AFP / Getty Images

quarta-feira, novembro 25, 2015

O marketing e os seus jogos

Terminou a saga cinematográfica The Hunger Games. E não foi o cinema que ganhou os jogos — este texto foi publicado no Diário de Notícias (18 Novembro), com o título 'A saga do marketing'.

Há uma perturbante actualidade simbólica na sugestão metafórica que preside à construção do universo de ficção da saga The Hunger Games. A juventude que é compelida a participar em jogos letais, transmitidos pela televisão para uma população apática, envolve contundentes paralelismos com tempos menos futuristas... Acontece que uma boa ideia de ficção não é, obrigatoriamente, uma base sólida para sustentar as exigências de muitas franchises contemporâneas.
Recorde-se a patética mediocridade em que desembocou a saga Twilight, depois de ter começado com um interessante filme assinado, em 2008, por Catherine Hardwicke. Iniciado em 2012 com uma realização de Gary Ross, o historial de The Hunger Games não terá deixado a níveis tão deprimentes, mas este A Revolta – Parte 2 ilustra os dois pecados mortais de uma produção que já só obedece às imposições de um marketing sem qualquer gosto cinéfilo: primeiro, um prolongamento postiço da própria acção, obrigada a “esticar” um pouco mais de filme para filme; depois, uma banalização dramática de personagens e situações que faz, por exemplo, com que a campanha de cartazes seja visualmente mais rica do que o próprio filme (aliás, tal como acontecia na Parte 1). No limite, a cena final, revelando-nos o destino familiar de Katniss Everdeen (Jennifer Lawrence) pertence menos a um genuíno cinema de aventuras, evocando mais a iconografia de um banal anúncio de shampoo ou iogurtes biológicos.
É bem verdade que, nas últimas décadas, envolvendo criadores como Steven Spielberg ou Tim Burton, as franchises de Hollywood têm gerado algumas inesquecíveis maravilhas. O certo é que, com o passar do tempo, alguns filmes parecem feitos pelos seus contabilistas — não é, definitivamente, a sua especialidade.

terça-feira, novembro 24, 2015

Hoje há Sound + Vision Magazine
às 18.30 na Fnac Chiado


A edição de uma antologia com os filmes promocionais dos Beatles (ou seja, os antecessores dos telediscos), a revelação de preciosidades da coleção de cassetes de Kurt Cobain - em Montage of Heck - e a chegada às salas de cinema de um novo filme de Steven Spielberg (Ponte de Espiões) fazem os três grandes destaques da edição deste mês do Sound + Vision Magazine. É hoje, às 18.30, na Fnac Chiado.

segunda-feira, novembro 23, 2015

Novas edições:
Robert Forster, Songs to Play

LP, CD e ed. digital Tampete
4 / 5

A caminho de se assinalarem os 35 anos sobre o lançamento de Send Me a Lullaby, o álbum de estreia dos The Go-Betweens, reencontramos Robert Foster, uma das duas forças criativas da banda (a outra, Grant McLennan morreu há já nove anos), a regressar aos discos após um hiato relativamente longo. De resto, desde o seu álbum anterior (The Evangelist, que data de 2008), de Robert Forster o que recebemos de absolutamente novo foi um volume com uma seleção de alguns dos textos que ele tem escrito sobre música desde há algum tempo e que lançou com o título The 10 Rules of Rock and Roll: Collected Music Writings 2005–09, representando todavia o mais expressivo corpo de trabalho destes últimos anos a redação de uma série de memórias com as quais acompanhou a primeira de três caixas antológicas sobre a obra dos Go-Betweens que lançou já este ano.

Songs to Play é um disco bem diferente da coleção de canções claramente assombradas pela perda do amigo Grant McLennan que Forster nos dera a ouvir no disco de 2008. É um álbum mais luminoso, bem humorado, que não esconde um tempo de felicidade e de autoestima em alta e que se revela musicalmente rico em acontecimentos, sem contudo contrariar as marcas de identidades habituais na sua forma de cantar e na característica relação que tem com a guitarra. Este é o álbum que, mesmo mantendo-se mais próximo da identidade introspetiva de Forster do que das visões mais pop e luminosas das canções de McLennan, representa, na obra a solo deste primeiro, o disco que caminha mais perto das heranças pop dos Go-Betweens (sobretudo face aos discos de meados dos oitentas), não faltando ainda aqui frequentes citações ao universo dos Velvet Underground, afinal uma referência que ilumina a sua identidade desde sempre.

O disco mantém presente a forma algo conversada de Robert Forster cantar, num registo que serve brilhantemente uma escrita que sabe contar histórias, retratar figuras e acontecimentos, assim como falar do que se sente e pensa. Musicalmente há sinais de novas experiências, em parte decorrendo do trabalho com novos colaboradores, entre os quais estão elementos dos John Steel Singers (de Brisbane, de onde é natural), que tem produzido, e da sua mulher, a violinista Karin Baumler, assim como do seu filho Louis, a discreta presença de sintetizadores alargando as texturas e cenografias também para além do que nos dera a escutar em discos anteriores. São estes pequenos detalhes que, a cada audição, fazem de Songs to Play um pequeno mundo que vai conquistando um lugar em nós. Para se revelar, ao cabo de estabelecida uma franca familiaridade, num dos melhores episódios da sua obra além dos Go-Betweens.

Miss Piggy como... Adele



O mais recentre spot publicitário para o regressado formato televisivo d’Os Marretas usa o mais recente single de Adele como banda sonora e Miss Piggy como protagonista numa clara alusão ao teledisco de Hello.

Para ler: histórias de Paris na New Yorker

Numa semana que nos fez centrar atenções em Paris e em todo o "nosso" mundo ao seu redor, há novas histórias para ler com aquelas ruas por cenário.

Estas, de Alexandra Schwartz, foram publicadas pela New Yorker. Podem ler aqui.

Memórias dos 70 mm

Rever Cleópatra, de Joseph L. Mankiewicz, num ecrã de televisão? Porque não?... Resta saber que memórias ainda cultivamos — este texto foi publicado no Diário de Notícias (20 Novembro), com o título 'O cinema em tom clássico'.

Reencontro o clássico Cleópatra (1963) num canal de cinema (TVCine) e não posso deixar de pensar que, nem que seja por cruel ironia, este será um filme para sempre assombrado.
Joseph L. Mankiewicz (1909-1993) ficou de tal modo marcado pelas atribulações que rodearam a respectiva produção — incluindo a agitação mediática em torno do par Elizabeth Taylor/Richard Burton — que se recusava a falar publicamente do filme. O que, em qualquer caso, não correspondeu a qualquer retirada: Mankiewicz ainda dirigiu mais algumas preciosidades, incluindo essa admirável farsa policial que é Sleuth/Autopsia de um Crime (1972).
Mas não é a essa herança que me refiro. Penso, sobretudo, no facto de Cleópatra, rodado no período áureo das “superproduções” em 70mm, corresponder a um conceito de grandiosidade que, por mais voltas que se dêem, não encontra correspondência nos ecrãs caseiros, mesmos os maiores e mais sofisticados.
Peço que não me interpretem mal. Não menosprezo (longe disso) a revisão de clássicos do cinema em televisão; além do mais, a cópia de Cleópatra agora disponível constitui, de facto, um caso exemplar de transcrição da película para os formatos digitais. Acontece que vale a pena perguntar (voltar a perguntar) de que modo o espaço televisivo trabalha para preservar as memórias do cinema clássico.
Existe, afinal, um défice de colaboração entre os territórios cinematográfico e televisivo. E por mais que se diga que, hoje em dia, a sua fronteira é tão ténue quanto instável, nada disso justifica que o carácter específico do cinema — em particular do classicismo cinematográfico — seja secundarizado como coisa mais ou menos pitoresca. Dir-se-á: não compete às televisões fazer pedagogia cinematográfica... Talvez, mas o que está em jogo é, antes do mais, de natureza comercial — pensar que um público alheado da pluralidade das memórias é um bom público não passa de uma ilusão do marketing mais canhestro.

domingo, novembro 22, 2015

Memória de Paulo Cunha e Silva

MORTE EM VENEZA (1971)
Paulo Cunha e Silva (1962-2015) deixou-nos um legado de ver e querer ver, pensar e compreender, que desembocou numa derradeira iniciativa em torno do tema, utópico entre todos, da Felicidade — este texto foi publicado no Diário de Notícias (15 Novembro), com o título 'A felicidade de Paulo Cunha e Silva'.

Estive pela última vez com Paulo Cunha e Silva (falecido na quarta-feira, 11) no dia 20 de Setembro, numa sessão no auditório da Biblioteca Almeida Garrett, nos Jardins do Palácio de Cristal, no Porto. Integrado num ciclo de cinema organizado no âmbito da Feira do Livro do Porto, projectava-se o filme Morte em Veneza (1971), de Luchino Visconti.
A notícia brusca e brutal da sua morte confere um eco particular a esses momentos. Desde logo, porque se tratava de mais uma iniciativa, como muitas outras a que Paulo Cunha e Silva esteve ligado ao longo dos anos (nomeadamente na Fundação de Serralves), de inusitado impacto — ver aquela sala esgotada para assistir a uma “antiguidade” como Morte em Veneza (para mais em dia de jogo grande no Estádio do Dragão) não é coisa banal ou desprezível. Além do mais, a organização do evento, através da acção do Cineclube do Porto, tinha conseguido uma raridade absoluta: o filme de Visconti foi projectado, não em formato digital, mas numa velha cópia de 35 mm.
Paulo Cunha e Silva
A cópia, todos o reconhecemos, não era tecnicamente imaculada, quanto mais não seja porque o triunfo tecnológico e comercial do digital (cujas vantagens não estão em causa) produz sequelas dramáticas no funcionamento da exibição cinematográfica que, escusado será sublinhá-lo, estão muito para além do caso particular deste filme de Visconti. O certo é que a sessão não pôde deixar de ilustrar uma lição básica, mas essencial, que o trabalho de Paulo Cunha e Silva nos legou. A saber: o progresso cultural não é assunto de mera acumulação de “novidades”, nascendo antes de uma permanente abertura à possibilidade de combinar os desejos e interrogações do presente com a multifacetada riqueza de todos os passados culturais. No plural, claro.
A valorização de tal lição não é, neste caso, para mim, dissociável do reencontro com um filme que levei muito tempo a compreender. Descobri-o, de facto, num momento em que algumas ilusões “progressistas” impunham a recusa ou, pelo menos, um certo distanciamento da visão “antiquada” de Visconti. Afinal de contas, no mesmo ano de 1971 surgiam em Itália dois filmes “políticos” que, em Maio de 1972, viriam a vencer, ex-aequo, o Festival de Cannes — eram eles A Classe Operária Vai para o Paraíso, de Elio Petri, e O Caso Mattei, de Francesco Rosi. Valeria a pena revê-los e reavaliá-los.
Mais de quarenta anos depois, Morte em Veneza é “apenas” um filme que, de acordo com o tema que Paulo Cunha e Silva escolheu para ligar as actividades da Feira do Livro do Porto, nos confronta com as atribulações da Felicidade. Cruel palavra: felicidade. Por um lado, envolve um impulso utópico de que, apesar de tudo, não desistimos; ao mesmo tempo, por outro lado, faz-nos sentir a escassez de qualquer programa cultural que não encontre expressão mais geral nas opções de governação, não apenas de um município (seja ele qual for), mas de todo um país.

Fundamentalismos [citação]

>>> "Eu digo-lhe sobre o que é isto. É sobre dois tipos de disciplina, dois tipos de fundamentalismo. De um lado estão os bancos ocidentais a tentar exigir austeridade a um país como a Turquia, a um país como o Zaire. Depois, do outro lado, está a OPEP a pregar ao Ocidente sobre o consumo de petróleo, os nossos hábitos grosseiros, a nossa auto-indulgência e desperdício. Os bancos calvinistas, os produtores de óleo islâmicos. Falamos uns com os outros como os surdos e os cegos."

DON DeLILLO
1982

Novos nus de Erwin Olaf

1. Cruel ironia: não é fácil falar de imagens de nus. Porquê? Por certo porque a nudez envolve um despojamento que não anula uma profunda teatralidade. A saber: como falar daquilo que, realmente ou ilusoriamente, nos aproxima de uma verdade primordial?

2. Acontece que a estupidez liberal dos nossos tempos se confunde com um moralismo cego. Na prática, a nudez tende a ser apresentada em função de uma dicotomia "pró ou contra" que, além do mais, promove uma ignorância letal em relação à existência (histórica e estética) da nudez como ancestral signo de expressão humana.

3. Os novos nus do fotógrafo holandês Erwin Olaf constituem um exemplo cristalino da capacidade de colocar em cena a singularidade do humano. Não são fotografias "ousadas" (como diz o jornalismo mais medíocre face à revelação de um qualquer nu de algum "famoso"), são imagens que desafiam a própria noção de que a nudez é um "revelador" de um mais além da significação humana — bem pelo contrário, o que aqui descobrimos é a estranheza indizível, porventura indecifrável, do corpo como signo natural do humano. Em última análise, compreendemos que o corpo não é a expressão de uma natureza universal e unívoca ("nua", precisamente), mas sim a tela viva de um alfabeto que convoca o nosso olhar para o radicalismo sem nome da beleza — 'Skin Deep'.

sábado, novembro 21, 2015

Steve Jobs por Aaron Sorkin (2/2)

Realizado por Danny Boyle e protagonizado por Michael Fassbender, Steve Jobs é, antes de tudo o mais, o resultado de um prodigioso argumento escrito por Aaron Sorkin — este texto foi publicado no Diário de Notícias (12 Novembro), com o título 'A arte de bem falar'.

[ 1 ]

De que falamos quando falamos de um retrato biográfico? Importa contrariar a facilidade desse lugar-comum televisivo segundo o qual fazer uma biografia é “reconstituir” uma época de acordo com as normas correntes do telefilme, com cenários “naturalistas” e roupas “de época”... É esse, afinal, o sentido vulgar (e vulgarizador) do discurso tecnocrático segundo qual as televisões deviam fazer mais séries “históricas” para ter mais “cultura”...
Escrito por Aaron Sorkin, também um notável argumentista de televisão (Os Homens do Presidente, The Newsroom), Steve Jobs é, em tudo e por tudo, o contrário dessa visão. E não só porque o retrato do lendário homem da Apple está “concentrado” em três momentos que simbolizam a evolução da sua estratégia industrial e, em particular, do próprio conceito de computador. Assistimos também a um verdadeiro processo de revelação que a realização de Danny Boyle, através de um didactismo que tem o seu quê de poético, sustenta como uma discussão sobre o que significa, ou pode significar, o estabelecimento de uma relação humana.
Escusado será dizer que a questão da paternidade que Jobs não quer assumir está no centro de tal dinâmica (e não será das menores maravilhas deste prodigioso filme a representação da filha de Jobs em três etapas distintas, com 5, 9 e 19 anos de idade). Admirável é o facto de tudo isso passar pelo labor incessante das palavras. Este é, de facto, um daqueles filmes que desafiam o disparate segundo o qual, normalmente, as personagens falam no “intervalo” das cenas de acção... Nada disso: as palavras são o primeiro e decisivo nível da acção. Porquê? Porque o que distingue o ser humano não é tanto o computador que usa para comunicar com o seu semelhante, mas sim o poder da fala. E os silêncios que o habitam.

Arcadia, 1985



Em novembro de 1985 três elementos dos Duran Duran juntavam-se num projeto paralelo no qual exploraram caminhos de uma pop elegante e sofisticada. Com o nome Arcadia tiveram como cartão de visita o single Election Day, que apresentaram num teledisco pelo qual passaram algumas referências a Jean Cocteau.

Mercury Prize para Benjamin Clementine

O vencedor do Mercury Prize 2015 é Benjamin Clementine — mais precisamente, o seu registo de estreia At Least for Now. De facto, a distinção, promovida pela British Phonographic Industry, é para o "melhor álbum do ano", produzido no Reino Unido ou Irlanda. Eis o tema Nemesis, um belo exemplo das singularidades de Clementine, discípulo de Nina Simone, algures entre a pop mais clássica e, por vezes, as derivações da spoken word.


Recorde-se que Benjamin Clementine tem cinco concertos agendados para este mês de Novembro, em Portugal:

* Theatro Circo, Braga — domingo, 22/11
* Teatro Aveirense, Aveiro — terça, 24/11
* Casa da Música, Porto — quarta, 25/11
* Vodafone Mexefest (Av. Liberdade), Lisboa — sexta, 27/11
* Teatro das Figuras, Faro — sábado, 28/11

>>> Site do Mercury Prize.
>>> Site de Benjamin Clementine.

sexta-feira, novembro 20, 2015

Ver + ouvir:
David Bowie, Blackstar


N. G.: Menos de dois anos sobre o lançamento do álbum The Next Day e um após a apresentação do single Sue (Or in a Season of Crime), a chegada de Blackstar deixa por um lado evidente que, após os dez anos de hiato, David Bowie retomou o seu ritmo habitual de trabalho. E mesmo sendo pouco provável que algum dia volte a fazer digressões, a ideia de que pode criar novos discos (como o que apresenta em janeiro) ou mesmo outros projetos (como o musical Lazarus, que está aí a chegar), devolveram-no a rotinas que garantem assim novas pistas a uma das mais ricas, versáteis e influentes obras da história do universo pop (e arredores). Blackstar (que se anuncia com o símbolo de uma estrela negra de cinco pontas) traz contudo um elemento novo a todo este jogo de acontecimentos. Ou, melhor, retoma uma ideia que lhe garantiu vários episódios de ousadia, surpresa e visão: a reinvenção.

The Next Day, editado em inícios de 2013, era um soberbo manifesto de escrita de canções de fôlego rock’n’roll – plenas de alusões a etapas anteriores e ricas em autorreferenciação. A surpresa, nesse reencontro após dez anos de silêncio, fez-se pelo regresso em si. E pelo tom inesperado como aconteceu, o que não nos impede de reconhecer ali o seu melhor disco centrado no trabalho das guitarras desde os dias de Scary Monsters (1980) e de ter, em canções como Where Are We Now? ou The Stars are Out Tonight dois clássicos a inscrever na lista dos grandes momentos da sua obra. Há um ano Sue (or in a Season of Crime) desviava o foco da criação para terrenos mais próximos do jazz. Ao chamar músicos da orquestra de Maria Schneider e ao tomar o saxofone (na verdade o instrumento primordial de Bowie) como novas peças a explorar, transgrediu a forma mais classicista da canção pop/rock e lançou pistas num tema que serviu para mostrar que a história então evocada numa nova antologia não vivia apenas do passado. Mas ficava a dúvida. Era esta nova canção uma mera experiência pontual ou, antes, uma ponte para qualquer nova realidade? Agora, um ano depois, sabemos que esta última hipótese estava certa.

Tal como o que ficara sugerido nos primeiros teasers e trailer do teledisco, Blackstar volta ostensivamente as costas às experiências do disco anterior. Não é de todo uma novidade em Bowie, bastando confrontar Scary Monsters com Let’s Dance. Ou Earthling com hours… Isto para nem mergulhar nos anos 70, onde a novidade acontecia de forma ainda mais intensa.

Os sintetizadores lançam os fundos, a voz navega quase como que flutuando sobre os ambientes (e aqui podemos falar de familiaridade com caminhos recentes da obra de Scott Walker), os fundos rítmicos herdam ecos das experiências de meados dos noventas, porém sem aquela necessidade em seguir as pistas do presente drum’n’bass como se escutou em Earthling (que o tempo acabaria por reconhecer como um disco datado). Tensa e assombrada, a canção vai evoluindo, abre caminho a outras partes, desenha a meio um momento de classicismo que quase nos faz recuar a ecos de inícios dos setentas, retomando depois o tema de abertura e resolvendo, dez minutos depois, a canção com um sentido de arrumação que denota uma peça bem estruturada. Os músicos de jazz (os mesmos que colaboraram em Sue, estão de volta, pontuando instantes e ajudando a desenhar o cenário. Mas desta vez há uma outra ordem na condução das partes e formas da canção. Sem repetir os caminhos e sonoridades de Station to Station, mas com alguma familiaridade com o modo como, ali, Bowie tinha já mostrado uma capacidade para criar uma peça vocal mais elaborada, extensa e cénica e tematicamente intensa.

É cedo ainda para falar do álbum. Que, é sabido, chega a 8 de dezembro. Mas David Bowie dá-nos aqui não só a canção mais arrepiante que escutámos este ano. Como se mostra uma vez mais capaz de responder, em pleno, à velha máxima dos Monty Python, quando nos anunciam que aí vem algo completamente diferente. E assim foi!


J. L.: Blackstar vai, por certo, suscitar as mais diversas leituras "metafóricas", quanto mais não seja porque David Bowie, bem o sabemos, é um criador do novo a partir da reescrita de si próprio — há quem sugira, por exemplo, que o verso "Something happened on the day he died" remete para "Major Tom", a personagem do astronauta que circula por Space Oddity, Ashes to Ashes e Hallo Spaceboy.
Em qualquer caso, registe-se o prodigioso trabalho figurativo do teledisco realizado por Johan Renck (acrescentando na sua videografia uma obra-prima a outra, chamada Nothing Really Matters, para Madonna, em 1999). Preservando a pluralidade de sentidos que Bowie convoca, de algum modo duplicando a estrutura fragmentária (não fragmentada...) da canção, Renck arquitecta uma teia de paisagens contíguas em que a ironia do "livrinho vermelho" do maoísmo (de cor nada berrante, hélas!) se combina com ambiências de uma parábola rural (?) em que os espantalhos são corpos vivos de um estilizado filme de terror.
Dito de outro modo: não se trata de "ilustrar" a canção, antes de a assumir como etapa de um processo em que o jogo de imagens constitui, por assim dizer, a continuação da música por outros meios — como se prova, há quem faça política (visual e simbólica) sem se submeter às angústias de maiorias e minorias, apenas mantendo-se fiel aos valores da sua própria irredutibilidade. How many people lie instead of talking tall?

Memórias de uma noite no Le Bataclan


É natural que o Le Bataclan seja um dia lembrado pela história não através da música que por aquela sala parisiense passou, mas pelo massacre que a 13 de novembro ali ceifou a vida a muitos que assistiam a um concerto dos Eagles of Death Metal. Há contudo outras noites na história desta sala que convém não esquecer. Até para contrariar o desejo daqueles que lançam o terror: o de que façamos o silêncio sob um clima medo. Para contrariar o silêncio e mostrar que o medo é na verdade mais sonoro junto de quem teme a cultura, recordemos uma noite no Le Bataclan. Uma noite única, em 1972…

Entre as muitas noites de música que a sala no número 50 do Boulevard Voltaire em Paris viveu há de facto uma que representa um episódio único de pontual reunião de três figuras que, alguns anos antes, tinham gravado um dos álbuns mais influentes de todos os tempos.

Editado em 1967, The Velvet Underground and Nico lançava uma série de sugestões e ideias que, como poucos outros discos o conseguiram fazer, criou um vasto mundo de descendências, ainda hoje sendo evidente a sua força como fonte de inspiração. Não é por acaso que se fala tanto daquela ideia, atribuída a Brian Eno, que conta que poucos poderão ter sido os que compraram a primeira edição do álbum de estreia dos Velvet Underground, mas que todos eles terão depois formado uma banda…

Em 1972 os Velvet Underground eram uma banda já descaracterizada e moribunda, tendo pela frente apenas o álbum (menor) Squeeze, que seria editado em 1973, no qual já só participariam Doug Youle e alguns músicos de estúdio… Nico tinha sido a primeira a sair, não participando já no segundo álbum. Depois afastou-se John Cale… E Lou Reed manteve as rédeas da banda nas suas mãos até editar Loaded… E em abril de 1970 é a sua vez de bater com a porta.

Nos primeiros dias de 1972 correm rumores que cruzam nomes antes ligados aos Velvet Underground. Lou Reed estava em Londres a gravar aquele que, meses depois, seria o seu primeiro álbum a solo. John Cale estava a trabalhar em sessões de gravação com a Royal Philharmonic Orchestra. E de Nico, que então vivia com o realizador Philippe Garrel, dizia-se que estaria em Paris a trabalhar num possível quarto álbum em nome próprio.

Cale tinha uma data agendada no Le Bataclan. E após alguns ensaios, de que são conhecidos registos gravados, no dia 29 de janeiro os três juntam-se ali perante uma plateia de mil pessoas, tendo o jornal britânico Melody Maker então noticiado que o dobro da multidão na sala teria ficado na rua, sem bilhete.

Ao contrário do que era habitual nos Velvet Underground o concerto revelou uma tranquila noite acústica, pela qual passaram não apenas canções que tinham gravado com a sua antiga banda, como temas que entretanto representavam experiências posteriores. O concerto ordenou as canções em três blocos, o primeiro cabendo a Lou Reed (que cantou temas como I’m Waiting For The Man, Heroin ou Berlin, a que chamou a sua canção a la Barbra Streisand), o segundo a John Cale (com Ghost Stories, Empty Bottles e The Biggest Loudest Hariest Group of All, que nunca teve depois versão em estúdio) e o terceiro a Nico (com Femme Fatale e No One is There, entre outras). No fim esta, embora cansada, promete mais uma canção ainda, cantando I’ll Be Your Mirror, juntando-se todos eles, depois, em All Tomorrow’s Parties.

Um concerto semelhante em Londres chegou a ser falado na imprensa mas não se materializou. Imagens desta noite em Paris chegaram aos pequenos ecrãs no programa de televisão Pop Deux.

Para ler: Star Wars e Hollywood

Em contagem decrescente para a estreia de Star Wars: The Force Awakens, vale a pena ir lendo estas reflexões sobre este universo levantando outros pontos de vista.

Podem ler aqui um novo texto no Guardian.

De George Lucas aos estúdios Disney

Seja como for o novo título da saga Star Wars, com ele inicia-se um capítulo em que a marca Disney passa a ter um papel fundamental — este texto foi publicado no Diário de Notícias (15 Novembro), com o título 'Como é que a Disney vai gerir a saga de George Lucas?'.

Quando foi convidado para a dirigir o novo episódio da saga criada por George Lucas — Star Wars: O Despertar da Força, estreia 17 Dezembro —, J. J. Abrams hesitou. O convite da Lucasfilm, empresa agora integrada no império Disney, chegou-lhe através Kathleen Kennedy, velha aliada de Lucas e também de Steven Spielberg (nomeadamente na produção dos filmes de Indiana Jones). Na altura envolvido na pós-produção de Star Trek: Além da Escuridão (2013), Abrams não pôde deixar de sentir que lhe pediam para retomar uma herança totalmente ligada ao encantamento da sua própria infância — nascido em 1966, tinha 11 anos quando descobriu as aventuras inter-galácticas de Luke Skywalker (Mark Hamill), Han Solo (Harrison Ford) e Princesa Lea (Carrie Fisher). Em declarações à revista britânica Empire, deixou mesmo este desabafo: “Nunca é bom aproximar-nos demasiado daqueles que são, historicamente, os nossos ídolos. Era qualquer coisa de tão próximo e tão íntimo que a ideia do meu envolvimento, francamente, me pareceu algo perigosa.”
J. J. Abrams
O certo é que o acordo se estabeleceu, podendo Abrams prolongar, assim, uma carreira de sucessos nas áreas de realização (Missão Impossível 3, 2006), produção (a série televisiva Perdidos, 2004-10) ou escrita de argumentos (O Regresso de Henry ou Armageddon, respectivamente de 1991 e 1998). Mais do que isso: o lançamento de Star Wars: O Despertar da Força, primeiro de três novos episódios de uma das sagas mais rentáveis de toda a história do cinema, envolve dramáticos desafios financeiros e simbólicos para a máquina de Hollywood. E o envolvimento dos estúdios Disney não será o menor deles: conseguirá a casa do Rato Mickey manter a chama (entenda-se: a performance comercial) do universo herdado de Lucas?
É bem verdade que as campanhas que envolvem produtos deste género tentam fabricar a ideia de que tudo acontece num universo global unificado por fãs em delírio em todos os cantos do planeta... Mas bastará lembrar os valores de tais campanhas para compreendermos que Hollywood joga, aqui, alguns dos seus trunfos mais fortes (e também financeiramente mais arriscados). O orçamento de 223 milhões de dólares para a chegada de Star Wars: o Despertar da Força às salas de todo o mundo (incluindo acções de marketing e custo de cópias) é superior ao da própria produção do filme (que terá fica em cerca de 200 milhões).
George Lucas
Muita coisa mudou desde que, em 1977, Lucas, com o primeiro Star Wars (entre nós ainda lançado com a adequada tradução portuguesa: A Guerra das Estrelas), se transformou numa das personalidades mais poderosas do audiovisual americano. Ironicamente, o projecto começou por não ser acarinhado pelos grandes estúdios, a ponto de a Universal ter voltado atrás no compromisso de produzir American Graffiti e o primeiro Star WarsAmerican Graffiti foi concretizado (segunda longa-metragem de Lucas, logo após o premonitório THX 1138), o segundo viria a ser apoiado pela 20th Century Fox.
Na altura, Lucas e Spielberg impuseram-se como líderes criativos de um novo conceito industrial, os blockbusters (ainda hoje dominante nos mercados de todo o planeta). O seu funcionamento obedece a três regras fundamentais: um investimento promocional igual ou superior ao da própria produção; lançamentos massivos que visam, antes de tudo o mais, uma grande concentração de receitas nas primeiras duas ou três semanas de exibição; enfim, um apelo cada vez maior às faixas etárias infantis e juvenis (que passaram a ser a presença dominante nas salas escuras).
Em 2012, quando a Lucasfilm foi vendida à Disney, Lucas resumiu assim o fim de um capítulo da sua existência: “Ao longo de 41 anos, a maior parte do meu tempo e dinheiro foi para a companhia. Agora que inicio um novo capítulo na minha vida, é gratificante poder ter a possibilidade de dedicar mais tempo e recursos à filantropia.” Ele será, por certo, um dos convidados de honra na ante-estreia do novo Star Wars, agendada para 14 de Dezembro, em Los Angeles. Seja como for, estará em jogo a consolidação de uma nova geração de Hollywood e também, afinal, de uma nova vaga de espectadores.

quinta-feira, novembro 19, 2015

A silhueta de Julia Holter

Já conhecíamos o novo álbum de Julia Holter, Have You In My Wilderness (nº 4 da sua discografia), através de Feel You. Surge agora um novo teledisco, de Silhouette, com realização de Rick Bahto — uma viagem no interior de uma ausência (He can hear me sing / Though he is far, I'll never lose sight of him), filmada com uma delicadeza tocante, quase documental.

Steve Jobs por Aaron Sorkin (1/2)

Realizado por Danny Boyle e protagonizado por Michael Fassbender, Steve Jobs é, antes de tudo o mais, o resultado de um prodigioso argumento escrito por Aaron Sorkin — este texto foi publicado no Diário de Notícias (9 Novembro), com o título 'Para além da lenda'.

Na sua sabedoria clássica, o realizador Frank Capra (1897-1991) conhecia os fundamentos da consistência cinematográfica. Um dia, questionado sobre os três factores decisivos na arquitectura de um bom filme, deu uma esclarecedora resposta: “O argumento, o argumento e o argumento”.
Face à inteligência narrativa de Steve Jobs, não serei eu a diminuir as qualidades da realização de Danny Boyle: este é mesmo um caso em que Boyle sabe evitar o formalismo gratuito que tem marcado alguns dos momentos menos interessantes da sua filmografia, com destaque inevitável para o anterior Transe (2013). Seja como for, o génio deste retrato do homem em que se confundem a tecnologia e a mitologia da Apple não pode deixar de ser atribuído, antes de tudo o mais, ao prodigioso trabalho do argumentista Aaron Sorkin.
Estamos, de facto, perante um descendente directo da nobreza dos escritores de Hollywood (em 2011, ao receber o Oscar de melhor argumento adaptado por A Rede Social, de David Fincher, evocou mesmo o nome emblemático de Paddy Chayefsky). Ao “resumir” a biografia de Jobs, da autoria de Walter Isaacson, num tríptico carregado de simbolismo (evocando os lançamentos de produtos decisivos na evolução histórica dos computadores), Sorkin liberta a personagem da sua própria lenda, devolvendo Jobs à condição humana, porventura demasiado humana, de um ser marcado pelas mais intrigantes e fascinantes contradições afectivas.
Em tempos de celebração dos efeitos especiais e das proezas ruidosas dos “super-heróis”, não estará na muito na moda dizê-lo, mas é um facto: Steve Jobs é um filme sem preconceitos de abraçar as matrizes mais clássicas do retrato psicológico. Convém, por isso, não esquecer o outro génio do filme: chama-se Michael Fassbender e interpreta Steve Jobs.