sábado, outubro 31, 2015

ABC da "esquerda/direita"

PABLO PICASSO
Palhaço
1962
A. A lógica com que a maioria dos meios de comunicação (a começar pela televisão) tenta compreender o mundo à sua/nossa volta é um mistério. Assim, por exemplo, em entrevista à SIC Notícias, Jerónimo de Sousa esclareceu que, nas conversações em curso com o Partido Socialista, nunca o Partido Comunista Português se reuniu com o Bloco de Esquerda — num contexto mediático em que se valorizam as coisas mais anódinas, é tragicamente sintomático que ninguém formule uma pedagógica perturbação em torno dos fundamentos desse acordo a três, em que dois nunca se encontraram.

B. Desgraçadamente, esse é apenas um detalhe no impensado que vai alargando o seu território social. A saber: afinal, de que esquerda falamos quando falamos de um acordo entre três partidos de esquerda? A questão é esta: depois de muitos anos de divergências — e, em particular, de demarcações mútuas entre PS, PCP e BE —, seria da mais básica sensatez reflectir sobre os sentidos transcendentes e redentores que se atribuem a essa palavra esquerda, começando por dizer, serenamente, que não é salutar para ninguém usá-la como um “abre-te Sésamo” dotado dos mesmos poderes descritivos da fórmula H2O para identificar a composição química da água.

C. A própria “direita” aceita viver enredada no mesmo maniqueísmo, não sabendo como expor o vazio ideológico da “esquerda” — porque o vazio ideológico da “direita” não é, no plano simbólico, muito diferente. Não havendo personalidades políticas que arrisquem formular a ideia básica de que há um cansaço imenso, socialmente bloqueante, na dicotomia “direita/esquerda”, observamos o país a ser empurrado para uma guerra de "valores" em que predomina a agressividade verbal e escasseiam as ideias.

Bradley Cooper em pose de "chef"

Através de mecanismos mais ou menos perversos, há filmes condenados à partida pelo próprio mercado: À Procura de uma Estrela constitui mais um exemploo esclarecedor — este texto foi publicado no Diário de Notícias (22 Outubro).

O filme chama-se entre nós À Procura de uma Estrela, mas nada tem a ver com celebridades de Hollywood (nem com essa degradação jornalística das estrelas que são os “famosos” da telenovela). No seu centro está Adam Jones, cozinheiro ultra-dotado, “chef” de prestígio, que tenta reconstruir a sua vida depois de um dramático período de toxicodependências várias. E, de facto, o seu objectivo é obter mais uma estrela do guia Michelin para o seu restaurante...
Tais atribulações bastarão para compreender que este é um filme que escapa aos modelos correntes, não tendo super-heróis mais ou menos ruidosos, nem se parecendo com a agitação visual de um jogo de vídeo. De tal modo que até os seus produtores, os perspicazes irmãos Weinstein (da Weinstein Company), não têm sabido muito bem o que fazer com tão insólito objecto, primeiro chamando-lhe Adam Jones e, depois, emendando para Burnt (num trocadilho com a palavra “queimado” que, no mínimo, cheira a esturro).
Há outra maneira de dizer tudo isto (e é um pouco triste): cada vez que aparece um filme sustentado pelo mais sóbrio classicismo — com personagens realmente humanas e privilegiando o trabalho dos actores —, os mercados globais parecem desconhecer os ingredientes porque, em boa verdade, deixaram de ter estratégias sólidas para defender aquilo que, afinal, tem as suas raízes no mais nobre património de Hollywood.
Não é um filme sobre gastronomia, mas sim um sólido estudo psicológico, competentemente dirigido por John Wells (que conhecemos, por exemplo, através do magnífico Um Quente Agosto). E convém acrescentar que o protagonista, Bradley Cooper, está muito longe de poder ser reduzido ao registo cómico de A Ressaca (2009) e respectivas sequelas. Se dúvidas ainda restarem sobre o seu talento, observem-se as nuances da sua composição de Adam Jones, sobriamente acompanhado pela sempre brilhante Siena Miller. Aliás, não deixa de ser desconcertante que, na sua estratégia de lançamento do filme, os Weinstein nem sequer joguem o mais básico trunfo cinéfilo: é que o par Cooper/Miller já tinha dado provas concludentes num filme chamado Sniper Americano (2014), de um tal Clint Eastwood.

Kate Bush, 1985



Passam 30 anos sobre o momento em que Kate Bush apresentou Cloudbusting como segundo single extraído do alinhamento do álbum The Hounds of Love. A acompanhar o single surgiu este magnífico teledisco, concebido com a colaboração de Terry Gilliam e realizado por Julian Doyle, no qual a cantora contracena com o ator Donald Sutherland, criando uma curta-metragem que evoca a figura de Wilhelm Reich.

sexta-feira, outubro 30, 2015

Ver + ouvir:
Duran Duran, Pressure Off



Um dia teremos de refletir sobre o porquê dos calendários de apresentação de alguns telediscos estarem agora algo deslocados dos que definem o lançamento dos discos. Podemos recordar o mais recente álbum de Madonna. Ou o que sucede com Pressure Off que, apresentado como single no verão, e com álbum lançado em setembro, só em outubro conheceu o respetivo teledisco. Assinala-se, assim, um novo episódio na videografia dos Duran Duran, num teledisco com realização de Nick Egan.

Para ler: quarenta andares de caos
num clássico de J.G. Ballard

Hoje escrevo sobre o romance Arranha-Céus, de J.G. Ballard, na Máquina de Escrever. Fica aqui o parágrafo de abertura do texto:


Tratemos as coisas pelos nomes. E ao assinalarmos a edição, pela Elsinore, de Arranha-Céus, de J.G. Ballard – estando já confirmados lançamentos, pela mesma chancela, de novas traduções de Crash e Kingdom Come – observamos algo que hoje em dia, salvo pontuais exceções, representa uma rara aposta do panorama livreiro português numa obra de ficção científica. Ficção científica? Então não é este o autor de Império do Sol (do qual, por estes lados, muito mais gente terá visto a adaptação ao cinema que lido o livro)? E não era ele mesmo um escritor que não gostava desse “rótulo”? Respondendo por partes… Sim, é o autor de Império do Sol, livro que transpira vivências autobiográficas de memórias de infância quando, aos 13 anos de idade, e em plena II Guerra Mundial, Ballard se viu fechado, com os pais, num campo de prisioneiros japonês em solo chinês. E sim, como tantos outros autores, era avesso a rótulos. Mas a verdade é que ambas estas dúvidas apontam a uma verdade comum. A violência a que foi submetido muito jovem ter-lhe-á sacudido do horizonte, mais cedo do que o habitual, um sentido de descrença no homem e neste mundo que habitamos. E é inevitável acreditar que foram essas as vivências que dele fizeram um dos autores mais marcantes na construção de uma visão mais assombrada do futuro próximo, observando (não muito distante) o final do século XX como um tempo não de esperança e luz, mas antes o palco para o fim do sonho tecnológico. Com ele, e apesar de no passado terem já surgido distopias como O Admirável Mundo Novo de Huxley ou 1984 de Orwell, a melancolia tolda de outra forma toda uma série de visões. E sim, falamos de ficção científica.


Podem ler aqui o texto completo.

Vamos pôr o Sequeira
no lugar certo



O Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA) lançou esta semana uma campanha de crowdfunding tendo em vista a aquisição da Adoração dos Reis Magos (1828), de Domingos António Sequeira, obra da qual o museu tem já no seu acervo o cartão final e alguns desenhos preparatórios. Para atingir os 600 mil euros necessários, o museu pede a cada um que deseje colaborar uma contribuição mínima de seis cêntimos. A obra foi vendida pela filha do pintor em 1845, ou seja, oito anos após a morte, e manteve-se desde então em coleção particular. 

Para contribuir pode aceder ao site do museu e seguir as instruções.

quinta-feira, outubro 29, 2015

Telemóveis e automóveis

Sob o lema 'Don't emoji and drive', a fábrica italiana da Ford tem desenvolvido uma campanha, tão concisa quanto elaborada, chamando a atenção para os perigos da utilização do telemóvel na condução — eis um dos cartazes e um magnífico spot, da responsabilidade da agência Blue Hive.

Cegueira [citação]

>>> Olho para os seres humanos; cada um é um veneno para o outro. Uma mãe para o seu filho, e vice-versa, etc. Mas a mãe está cega e o mesmo se passa com o filho. Talvez tenham consciências culpadas, mas que bem lhes faz isso? A criança é cruel, mas ninguém lhe ensina a ser diferente e os seus pais estragam-na com o seu estúpido afecto; e como poderão eles, ou o seu filho, compreender isto? É como se todos fossem cruéis e inocentes.

LUDWIG WITTGENSTEIN
Edições 70, Lisboa, 2000

Regresso a "Regresso ao Futuro" (3/3)

Robert Zemeckis e Michael J. Fox
— rodagem de Regresso ao Futuro (1985)
21 de Outubro de 2015 tornou-se um dia mitológico na história do cinema a partir do momento em que Marty McFly (Michael J. Fox), proveniente do ano de 1985, viajava no tempo e "aterrava" nessa data — este texto foi publicado no Diário de Notícias (21 Outubro).

[ 1 ]  [ 2 ]

Há uma amarga ironia no facto de as comemorações em torno de Regresso ao Futuro se sobreporem ao lançamento em todo o mundo do mais recente filme de Robert Zemeckis, O Desafio (Título original: The Walk), sobre a travessia de Philippe Petit, em 1974, ligando as Torres Gémeas do World Trade Center. De facto, sendo Zemeckis um dos mais ousados experimentadores do cinema americano das últimas três décadas, não deixa de ser desconcertante que a espantosa utilização do 3D em O Desafio, capaz de nos fazer repensar os conceitos cinematográficos de espaço e narrativa, tenha sido muitas vezes recebida com um misto de ligeireza e indiferença.
Georges Méliès
Vale a pena recordar que entre os primeiro e segundo títulos de Regresso ao Futuro, Zemeckis assinou outro filme decisivo na evolução das técnicas de figuração cinematográfica: Quem Tramou Roger Rabbit? (1988) combinava de modo exuberante as figurinhas dos desenhos animados com os actores de carne osso, afinal abrindo possibilidades que a produção mais recente tem confirmado e, com maior ou menor felicidade, desenvolvido.
Zemeckis possui essa muito primitiva capacidade de desafiar o naturalismo “congénito” do cinema. De facto, a noção segundo a qual os filmes servem para “reproduzir” o mundo à nossa volta tornou-se um pobre enunciado da mais rasteira cultura televisiva, sempre apostada em tratar as imagens como se fossem meras “duplicações” de um real disponível e transparente. Ora, criadores como Zemeckis, fiéis à herança do mago Georges Méliès (1861-1938), ensinam-nos a compreender que o real é também o resultado do olhar que nele aplicamos, abrindo as hipóteses de um jogo figurativo cuja fronteira instável é sempre a nossa identidade. Com ele, aprendemos também a perguntar o que é isso de ser espectador.

Conversando sobre 007

Foto JL
Com chancela da Máquina de Escrever, ao fim da tarde do dia 28, a FNAC acolheu uma conversa sobre o agente secreto 007 (a poucos dias da chegada do novo Spectre, o 24º título oficial de James Bond). Na companhia de Eurico de Barros, os dois autores deste blog discorreram sobre temas e tendências, actores e personagens. E também canções: eis as três que foram recordadas através de imagens.

SHEENA EASTON, For Your Eyes Only (1981)

DURAN DURAN, A View to a Kill (1985)

MADONNA, Die Another Day (2002)

terça-feira, outubro 27, 2015

Elvis com orquestra

No âmbito das comemorações do 80º aniversário do nascimento de Elvis Presley (1935-1977), vai surgir, a 30 de Outubro, um álbum que utiliza os seus registos de algumas canções emblemáticas (Love Me Tender, In the Ghetto e até Bridge Over Troubled Water), agora com o som de uma grande orquestra — nada mais nada menos que a Royal Philarmonic Orchestra. Chama-se If I Can Dream e foi gravado nos estúdios de Abbey Road. Eis uma entrevista com Priscilla Presley sobre a produção do álbum (em particular sobre a combinação de registos originais com novas orquestrações), conduzida por Leonard Lopate, na WNYC.


O tema que dá o título ao álbum é uma célebre composição de Walter Earl Brown que inclui algumas citações de discursos de Martin Luther King; Elvis gravou-a em Junho de 1968, cerca de dois meses depois do assassinato de King, tendo-a revelado no final de um programa de televisão, na NBC (3 Dez. 68), que ficaria conhecido como '68 Comeback Special — eis o respectivo registo.

segunda-feira, outubro 26, 2015

Portugal, 1942, por Carlos Saboga (2/2)

A uma Hora Incerta recorda um Portugal vigiado pela PIDE; para Carlos Saboga (argumentista e realizador), tudo passa pela concepção das personagens e o trabalho dos actores — este texto foi publicado no Diário de Notícias (18 Outubro), com o título 'Repensando a história'.

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Antes de realizar dois filmes — Photo (2013) e, agora, A uma Hora Incerta —, Carlos Saboga deixou a sua marca de argumentista em títulos como O Lugar do Morto (António-Pedro Vasconcelos, 1984), Matar Saudades (Fernando Lopes, 1988), O Milagre segundo Salomé (Mário Barroso, 2004), Mistérios de Lisboa (Raul Ruiz, 2010) ou Linhas de Wellington (Valeria Sarmiento, 2012). Como ele próprio diz, o seu gosto pela “intriga” é menos intenso que a sua paixão pelas personagens, quer dizer, pelas convulsões humanas que os actores podem colocar em cena.
Sendo A uma Hora Incerta um filme apostado em encenar a acção da polícia política do Estado Novo, eis o que, compreensivelmente, não será um factor secundário em tal dinâmica criativa. Devido à cobardia intelectual da direita ou através da demagogia dos clichés da esquerda, a abordagem de personagens da PIDE enquista-se, por vezes, em soluções simplistas que recalcam os matizes da história, quer dizer, a necessidade de pensar essa história para além dos lugares-comuns (contra eles, se for caso disso) enraizados em discursos políticos cada vez mais esgotados na banal gestão do seu efémero impacto televisivo.
Não é todos os dias, de facto, que podemos deparar com um filme português que, como A uma Hora Incerta, trata a história como algo mais do que uma montra de símbolos em que só nos resta censurar os “maus” e celebrar os “bons”. Carlos Saboga sabe colocar em cena os caminhos tortuosos do fascismo português para além de qualquer facilidade panfletária, expondo uma teia de factos e silêncios em que, no limite, se diluem as fronteiras entre repressão política e pulsão sexual. Conhecer a história não é o mesmo que juntar meia dúzia de figuras a fazer grande alarido num estúdio de televisão... Tanto pior para nós.

Novo Bowie chega em Janeiro

8 de Janeiro de 2016 — é nessa data que David Bowie celebrará o seu 69º aniversário; precisamente no mesmo dia, chegará às lojas o seu 25º álbum de estúdio, intitulado Blackstar.
Já se conhecia um fragmento do tema-título, utilizado no genérico da série televisiva The Last Panthers (a estrear no Sky Atlantic, a 12 de Novembro). Graças à notícia agora publicada por The Times, sabe-se que esse é um tema que dura 10 minutos, integrando, além da voz de Bowie, uma secção soul e outra de canto gregoriano — e não existe versão curta para rádio: "é tudo ou nada", esclarece o jornal. Além do mais, Blackstar integrará a peça Lazarus, uma produção off-Broadway inspirada pelo filme O Homem que Veio do Espaço (1976), de Nicolas Roeg, protagonizado por Bowie [recordamos o trailer, aqui em baixo].
O álbum contém sete faixas para uma duração total de cerca de 45 minutos, tendo sido gravado em Nova Iorque, nos estúdios de The Magic Shop, com um grupo de músicos de jazz. Segundo The Times será, muito provavelmente, o "mais bizarro trabalho" já assinado por Bowie.


>>> Site oficial de David Bowie.

domingo, outubro 25, 2015

O PCP em banda desenhada

KARL MARX
(1818-1883)
1. É verdade que, ao longo do século XX, em nome do comunismo, se cometeram crimes horrendos cujos ecos políticos, afectivos e simbólicos não podem nem devem ser rasurados. Em todo o caso, seria mera estupidez moral considerar que o Partido Comunista Português, ou qualquer um dos seus militantes, devam ser considerados como entidades que só podem viver na infinita expiação desses crimes — ainda que, uma vez mais, seja oportuno recordar que o continuado silêncio do PCP, e de todos os seus militantes, sobre tais crimes configura uma atitude politicamente pueril que contraria a saúde democrática de toda a sociedade.

2. É igualmente verdade que existe disperso na sociedade portuguesa um sentimento anti-comunista que tende a confundir-se com as mais sinistras manifestações fascizantes. Por isso mesmo, em nome da democracia, continua a ser importante renovar o voto político formulado por Melo Antunes, em 1975, no emblemático "Documento dos Nove", (re)colocando o PCP no interior da dinâmica democrática — isto não omitindo, claro, que o nosso aqui e agora não se confunde, nem de longe nem de perto, com a conjuntura de 1975.

3. Nada disto impede — bem pelo contrário: justifica e legitima — o reconhecimento dos ziguezagues discursivos do PCP nos últimos meses, no mínimo dando provas de uma hipocrisia que não se adequa à continuada exaltação do "povo", dos "trabalhadores" e da defesa dos seus "interesses". Entre as muitas reveladoras peripécias que podemos observar e coligir, eis três exemplos que, por si só, definem um pequeno conto do absurdo.

OJE, 13 Junho 2015
EXPRESSO, 30 Setembro 2015
DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 24 Outubro 2015

4. Há uma dimensão caricatural, de sugestiva banda desenhada, em tais peripécias. Mas será bom não empolá-la. Dito de outro modo: o que aqui encontramos são sintomas de um processo histórico incomparavelmente mais fundo, espalhado por um tempo muitíssimo mais longo e complexo, em alguns casos com lamentáveis manifestações de intolerância do PCP em relação ao Partido Socialista (e, ironicamente ou não, ao seu dirigente António Costa). A questão é esta: o PCP é detentor convicto de um gigantesco passado de sistemática demonização do mesmo PS com o qual, agora, diz ter um acordo "bem encaminhado" — além do mais, não vejo a maioria da nossa classe jornalística, sempre tão empenhada em encostar à parede o mais incauto político que possa ter dado dois espirros com sons diferentes, a fazer o mais pequeno esforço para questionar o PCP sobre tão obscenas contradições.

5. Assombramento que se renova: nada disto pode ser dissociado da possibilidade fulcral de o PS assumir uma atitude de pensamento e criatividade face ao dilema tradicional "direita/esquerda" e, mais especificamente, à sua identidade partidária, ideológica e ética. Perante a continuada demissão do PS face a tal desafio, compreende-se que a chamada de atenção de Cavaco Silva para a insuficiência operacional daquele dilema — e para a gravidade de outro chamado Europa — seja maioritariamente tratada como obra do demónio. Em Portugal, é sempre mais fácil insultar quem se atreva a pensar do que... pensar.

A IMAGEM: Erwin Olaf, 2008

ERWIN OLAF
Bodegón
2008

Sob o signo do Netflix

O Netflix chegou a Portugal, directa ou indirectamente obrigando a repensar o funcionamento comercial do espaço televisivo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (23 Outubro).

Esta foi a semana de lançamento do serviço de streaming Netflix em três países europeus: Itália, Espanha e Portugal. Depois do seu enorme impacto no mercado americano, o Netflix obriga a repensar todas as estratégias de difusão em televisão e na Internet — e, sobretudo, de difusão dos produtos cinematográficos.
Não creio que adiante muito colocarmo-nos numa posição ingenuamente futurista (“o Netflix vai impor uma matriz única de difusão”) ou enquistarmo-nos numa nostalgia pré-histórica (“os filmes só devem ser vistos nas salas escuras”). As nuances são muitas e, por certo, diferentes de país para país. Por alguma razão, no Festival de Cinema de Roma [16/24 Out.], o impacto do Netflix na Europa tem sido tema fulcral dos colóquios promovidos no âmbito do respectivo mercado.
Em todo o caso, no contexto português, talvez seja inevitável reconhecer que o Netflix “cai” numa paisagem comercial em que, infelizmente, há muito tempo, assistimos a uma dramática desertificação cinematográfica. Dito de outro modo: por opção ou contágio, as televisões generalistas secundarizaram o cinema, não apenas através da sua colocação em horários cada vez mais noctívagos, mas também consagrando a ditadura narrativa da telenovela (ainda está por aparecer um filme capaz de transformar as matrizes de telenovela em qualquer coisa de especificamente cinematográfico...).
Em boa verdade, o que está em jogo não se esgota na guerra concorrencial que, por certo, se vai abrir entre o Netflix e os diversos operadores e canais que, de uma maneira ou de outra, difundem produtos cinematográficos. O que está em jogo envolve a necessidade de pensar o triunfo de uma cultura audiovisual em que o cinema, como linguagem específica, tende a ser reduzido a uma curiosidade pitoresca sem história nem património. Em última instância (e muito para além do Netflix), trata-se de discutir a educação para as imagens televisivas e cinematográficas. Quem, da nossa classe política, se interessa pelo assunto?

sexta-feira, outubro 23, 2015

Regresso a "Regresso ao Futuro" (2/3)

21 de Outubro de 2015 tornou-se um dia mitológico na história do cinema a partir do momento em que Marty McFly (Michael J. Fox), proveniente do ano de 1985, viajava no tempo e "aterrava" nessa data — este texto foi publicado no Diário de Notícias (21 Outubro).

[ 1 ]

Se o nosso gosto cinéfilo envolver alguma forma de fé, podemos acreditar que hoje mesmo [21-10-2015] temos a possibilidade de conhecer Marty McFly. Quem? Pois bem, a personagem de Michael J. Fox na saga Regresso ao Futuro, de Robert Zemeckis.
Seria (ou será) num momento muito preciso: 16h 29m. Isto porque no filme Regresso ao Futuro II, era nesse horário que McFly desembarcava no dia 21 de Outubro de 2015, viajando no espectacular DeLorean, o carro/máquina do tempo inventado pelo seu companheiro de viagem, Dr. Emmett Brown (Christopher Lloyd). McFly e Brown provinham de 1985 e chegavam ao futuro (este nosso presente) para tentar alterar os dados que podiam conduzir à prisão do filho de McFly (também interpretado por Michael J. Fox). Enfim, as coisas estavam longe de ser tão simples (?) porque, entretanto, o “mau da fita” Biff Tannen (Thomas F. Wilson) lhes roubava o DeLorean, recuando a 1955 para baralhar os dados e comprometer o futuro de toda a gente...
Na história das franchises do cinema americano das últimas décadas, a trilogia de Regresso ao Futuro é, por certo, uma das mais lendárias (e também das mais rentáveis, aproximando-se dos mil milhões de dólares de receitas globais). Em boa verdade, quando surgiu o primeiro título, em 1985, Zemeckis não tinha previsto novos capítulos das aventuras de McFly. O certo é que o sucesso do filme abriu essa possibilidade, de acordo com uma lógica que, para o melhor ou para o pior, estava a triunfar em Hollywood. Nessa altura, por exemplo, Tubarão (1975), de Steven Spielberg, já tinha dado origem a duas sequelas (não dirigidas por Spielberg).
Sempre com a colaboração de Bob Gale nos argumentos, Zemeckis começou por assegurar a participação de Michael J. Fox e Christopher Lloyd. Depois, o estúdio produtor, Universal, aceitou o projecto de rodagem sucessiva de dois novos filmes, desse modo acabando por rentabilizar cenários e reduzindo os custos globais de produção: Regresso ao Futuro II surgiria em finais de 1989 e Regresso ao Futuro III no Verão do ano seguinte.
A “coincidência” de Regresso ao Futuro II com o nosso presente tem suscitado as mais variadas formas de comemoração. E não há dúvida que o filme conseguia antecipar algumas significativas transformações tecnológicas, desde os ecrãs planos montados em paredes até aos óculos de realidade virtual. Há mesmo uma cena em que, através de um ecrã, meio televisão, meio computador, McFly participa numa insólita vídeo-conferência em que o uso de alguns dados pessoais parecem corresponder a uma espécie de primitiva “rede social”.
Entre as invenções que, de facto, nunca aconteceram, há automóveis voadores, uns divertidos sapatos Nike cujos laços se apertam automaticamente e até uma forma de pagamento através do reconhecimento do polegar. Em qualquer caso, os objectos mais míticos de toda a saga Regresso ao Futuro serão os chamados hoverboards (skates voadores); a curiosidade que suscitaram deu origem a muitas especulações sobre a sua existência, tanto mais que, nos extras de uma edição em DVD, Zemeckis decidiu dizer com um ar muito sério que existiam realmente e não eram um efeito especial...
Nos EUA, o “Dia Regresso ao Futuro” [21] está pontuado pelas mais diversas promoções do futuro que não aconteceu, incluindo uma embalagem de Pepsi igual à que se vê no filme. Tendo em conta que, em 2015, McFly observava a fachada de um cinema a anunciar a exibição de “Tubarão Parte 19” (de facto, só se fizeram quatro, incluindo o original de Spielberg), os estúdios da Universal lançaram mesmo um trailer paródico [video] promovendo Jaws 19... É caso para dizer que Regresso ao Futuro deixou de estar à frente do seu tempo para se diluir, festivamente, no nosso.

quinta-feira, outubro 22, 2015

Cavaco Silva e o fim do "soarismo"

JOSÉ MALHOA
Fado
1910
* A história televisiva da política pode ser também uma máquina de perversos simbolismos edipianos — assim, foi o filho de Mário Soares, João Soares, que em nome do PS surgiu em primeiro lugar a apelidar publicamente de coisa "estranha" as palavras do Presidente da República [indigitando Pedro Passos Coelho para formar governo].

* "Em 40 anos de democracia, nunca o Governo de Portugal dependeu de forças políticas anti-europeístas", disse Aníbal Cavaco Silva na noite de 22 de Outubro de 2015.

* Haverá, por certo, razões sensatas e legítimas para discutirmos muitas variantes da performance de Cavaco Silva como Presidente da República (e também, como é óbvio, no papel de primeiro-ministro). Em todo o caso, na sequência das eleições de 4 de Outubro, o discurso em que indigitou Pedro Passos Coelho entrará para a história como uma tomada de posição que põe o dedo na ferida mais antiga da democracia portuguesa.

* Dito de outro modo: o PR estabeleceu uma clara linha de demarcação, não entre "direita" e "esquerda", mas sim entre europeístas e anti-europeístas.

* No fundo, Cavaco Silva sublinhou, com surpreendente contundência e lucidez, um dado vital (aliás: o dado vital) da conjuntura que estamos a viver. A saber: é o Partido Socialista que está no cerne de tudo o que vier a acontecer, já que em nome da "esquerda" se tem estado a colocar, nem que seja por um perverso processo de denegação, no sector anti-europeísta da sociedade portuguesa.

* Termina, assim, o "soarismo" — o de Mário Soares, entenda-se.

Portugal, 1942, por Carlos Saboga (1/2)

CARLOS SABOGA
(FOTO: Reinaldo Rodrigues / Global Imagens)
A uma Hora Incerta recorda um Portugal vigiado pela PIDE; para Carlos Saboga (argumentista e realizador), tudo passa pela concepção das personagens e o trabalho dos actores — esta entrevista foi publicada no Diário de Notícias (18 Outubro), com o título 'Choca-me a falta de interesse pelo passado de alguma juventude'.

De onde vem o título A uma Hora Incerta e porque é que o escolheu?
Vem de um poema de Primo Levi que se chama Sobrevivente. É, de resto, uma citação de um outro poema, de Coleridge, que por sua vez se inspirou num provérbio latino, “mors certa, hora incerta”, ou seja, a morte está certa, mas a sua hora não se conhece. Gosto muito da expressão, porque não é só a morte que é incerta, mas a própria vida — a única coisa que não é incerta é que nascemos. E creio que as personagens vivem, de facto, uma hora incerta.

Será o filme uma crónica histórica, sobre o ano de 1942, que se vai transformando numa parábola?
Parábola não sei se será o termo... Para mim, é uma história de amor de uma rapariga que quer ser reconhecida pelo pai. Creio que não será um acaso que os meus filmes tenham sempre um pano de fundo histórico, como se a história tivesse mais ou menos a mesma importância que um cenário. A uma Hora Incerta nasceu, sobretudo, de recordações de infância, por vezes ligadas ao cinema, em particular a um filme de 1943, de Lewis Milestone, sobre a resistência norueguesa aos nazis, com Errol Flynn e Ann Sheridan, entre nós chamado Um Raio de Luz (Edge of Darkness) — não tem a ver com o filme que fiz, mas foram recordações desse tipo que me levaram a pensar numa história passada durante a guerra. São recordações que me remetem para a infância, quando ia ver um filme, por exemplo, apenas porque era com o Gary Cooper — ainda hoje, para mim, o mais importante são os actores.

As personagens pertencem mais à história ou a essas memórias da infância?
São as personagens que me guiam na escrita do argumento, são elas que me levam a inventar situações, mais do que a intriga. Escrevi muito para televisão onde, para realizadores e produtores, a intriga era o mais importante, o que acabava por afectar as personagens.

Como construiu as personagens dos inspectores da PIDE, interpretados por Paulo Pires e Pedro Lima?
Quando penso naquela época em Portugal, escusado será dizer que a PIDE teve imensa importância. A minha família era da oposição, sendo o meu pai comunista, e lembro-me dele na clandestinidade ou, então, preso — deixei de o ver aos oito anos, só o reencontrando na prisão ou através de encontros clandestinos que ele me marcava, com senha e tudo. Fico sempre surpreendido com o facto de os inspectores da PIDE não aparecerem com mais frequência na nossa ficção literária e cinematográfica. Não sou pioneiro, claro, mas achei que valia a pena abordá-los, precisamente enquanto personagens, não como meros símbolos.

São personagens definidas através de uma hierarquia, mas também de um subtexto sexual, muito discreto, mas muito intenso.
O que há em todas as minhas personagens é uma parte de mistério que não sei muito bem o que é, que não compreendo nem procuro compreender.

Até que ponto isso contaminou a célebre questão da “reconstituição” da época?
Começo por fazer um trabalho aprofundado de documentação. É algo que me ocupa muito tempo e depois... esqueço. Daí que, realmente, “reconstituição” não seja a boa palavra. Até porque há muitos anacronismos no filme que não me incomodam, porque não traem o clima da época, o “ar do tempo”. O grande anacronismo é o momento em se que ouve a banda sonora de Casablanca: o filme foi, de facto, lançado em 1942, mas só seria exibido em Portugal em 1945.

Depois de Photo (2013) e, agora, com A uma Hora Incerta, sente-se mais livre a realizar a partir dos seus argumentos?
Provavelmente, a resposta é sim. Mas é sobretudo uma questão lógica: há sempre problemas quando se escreve, mas agora escrevo com menos terror da página branca.

E ao fazer um filme como A uma Hora Incerta, o que espera do próprio espectador?
Claro que não sou missionário, não penso que vou mudar o mundo com um filme. Mas choca-me muito a ignorância da história e, sobretudo, a falta de interesse pelo passado que encontro em alguma juventude. Todos os meus projectos têm e terão a ver com a história, incluindo a história do próprio cinema.

András Schiff no Carnegie Hall


* András Schiff
> CARNEGIE HALL, 10 Março 2015
— HAYDN Piano Sonata in C Major, Hob. XVI: 50
— BEETHOVEN Piano Sonata No. 30 in E Major, Op. 109
— MOZART Piano Sonata in C Major, K. 545
— SCHUBERT Piano Sonata in C Minor, D. 958


Em Março do ano corrente, o pianista András Schiff deu um concerto admirável no Carnegie Hall, em Nova Iorque, com um propósito muito particular e sugestivo: reunir quatro sonatas assinadas por outros tantos compositores nos seus derradeiros anos de vida. Haydn, Beethoven, Mozart e Schubert surgem, assim, reunidos num turbilhão de cumplicidades e diferenças que o próprio Schiff define como um interminável work in progress de fascinantes revelações — graças à NPR, temos à disposição o registo integral de tão intensos momentos musicais.

quarta-feira, outubro 21, 2015

Regresso a "Regresso ao Futuro" (1/3)

21 de Outubro de 2015 tornou-se um dia mitológico na história do cinema a partir do momento em que Marty McFly (Michael J. Fox), proveniente do ano de 1985, viajava no tempo e "aterrava" nessa data — hoje, portanto.
Aconteceu em Regresso ao Futuro II (1989), de Robert Zemeckis, e por isso o planeta está cheio de comemorações, incluindo edições em Blu-ray e um livro, Back to The Future - The Ultimate Visual History, recheado de documentos sobre os bastidores de rodagem da trilogia Back to the Future. Desse livro, precisamente, podemos conhecer algumas imagens nas páginas da Vanity Fair — memórias de um tempo que desafiou as medidas do tempo cinematográfico.
Michael J. Fox e Christopher Lloyd

Chris Rock apresentará os Oscars

"Deixemo-nos de coisas, não passa de um desfile de moda. Quem é o negro heterossexual que se dá ao trabalho de se sentar para ver os Oscars? Mostrem-me um. Além disso, não dão valor à comédia, nem há muitos negros nomeados — para que é que hei-de assistir?"
Chris Rock proferiu estas palavras no começo do mês de Fevereiro de 2005, em declarações à Entertainment Weekly. Sarcasmo mais ou menos ambíguo?... Fosse como fosse, no dia 27 desse mesmo mês, a 77ª edição dos Oscars de Hollywood foi apresentada por... Chris Rock!
Uma década depois, por desespero ou masoquismo, porventura revelando um sentido de estratégia que nos escapa, a Academia de Hollywood acaba de anunciar o nome do apresentador da 88ª cerimónia dos seus prémios. A saber: Chris Rock...
Será a 28 de Fevereiro de 2016.

terça-feira, outubro 20, 2015

A National Gallery filmada por Wiseman

FREDERICK WISEMAN
Cannes, 2014
(Foto: JL)
O filme de Frederick Wiseman sobre a National Gallery, em Londres, constitui um exemplo modelar de uma visão sensível à arte e à sua história — este texto foi publicado no Diário de Notícias (11 Outubro), com o título 'Quando os políticos não falam de arte'.

Revejo o extraordinário documentário de Frederick Wiseman, National Gallery (agora lançado em DVD), e fixo-me, desde logo, na sua breve e fascinante sequência de abertura. No âmbito de uma visita guiada, uma funcionária daquele museu de Londres comenta uma pintura medieval, insistindo em particular no facto de os actuais espectadores do quadro necessitarem de fazer um esforço de raciocínio e adaptação para compreenderem a sua percepção na época (1377) em que foi colocado no interior de uma igreja: desde a luz difusa dessa igreja até às agruras de um dia a dia marcado por muitas doenças e mortes, somos levados a sentir as irredutíveis diferenças entre o efeito simbólico daquele objecto na sua origem e a visão que, agora, dele podemos construir.
Há outra maneira de dizer isto: conhecer a arte e as suas imagens não é o mesmo que acumular referências mais ou menos enciclopédicas, supostamente capazes de consolidar um saber uno e unívoco, fechado e definitivo. Por alguma razão, a câmara de Wiseman dá especial atenção a dois tipos de olhares: o dos espectadores, claro, contemplando, entre a surpresa e o maravilhamento, os tesouros da National Gallery; e o dos que lá trabalham, em particular nas oficinas de restauro, garantindo que as memórias sejam, antes de tudo o mais, um fenómeno eminentemente material.
Falar de arte — do seu valor patrimonial, tanto quanto da nossa relação com os respectivos objectos e criadores — é algo que, infelizmente, quase desapareceu da cena política. Não se trata, entenda-se, de defender qualquer infantilismo “lírico”, segundo o qual os políticos deveriam pontuar o seu discurso público com divagações mais ou menos “artísticas”. O problema está muito para além (ou aquém) desses jogos florais: de facto, os políticos de todas as áreas e sensibilidades demitiram-se de tecer considerações sobre as formas de percepção e representação do mundo. Uma prova? O seu lamentável, sistemático e pusilânime silêncio sobre o espaço televisivo e, em particular, sobre a degradação populista de muitos dos seus conteúdos.
Não é uma questão meramente instrumental. Num contexto em que os horrores da reality TV se tornaram um elemento nuclear da cultura televisiva dominante, trazer a arte para o domínio das nossas preocupações quotidianas seria um exercício de rudimentar profilaxia social (sobretudo quando o “social” está invadido pelas vulgaridades mais ou menos insultuosas de que se fazem as respectivas “redes”).
Numa sociedade com uma relação saudável com o trabalho artístico, desde logo no domínio do ensino, seria possível manter (e enriquecer) uma dinâmica de ideias e valores que recusasse, ponto por ponto (leia-se: politicamente), a desvergonha a que chegaram muitas práticas de raiz televisiva. Neste contexto, silenciado ou não pelo burburinho dos “famosos” e as guerras do futebol, o filme de Wiseman é um acontecimento realmente fora de série.

segunda-feira, outubro 19, 2015

Emma Stone em teledisco de Will Butler

Will Butler já tinha um teledisco de Anna (aliás, bem interessante). Agora, essa canção do seu primeiro álbum a solo (Policy) tem direito a nova e exuberante versão, com assinatura de Brantley Gutierrez — Emma Stone está no centro dos acontecimentos, numa performance de verdadeira actriz, inscrita num espaço cénico que evoca a tradição do musical cinematográfico, porventura o gosto surreal de Busby Berkeley.

domingo, outubro 18, 2015

Trevor Noah vs. CNN

Felizmente, em televisão, ainda há quem pense... a televisão: Trevor Noah, por exemplo, novo apresentador de The Daily Show — este texto foi publicado no Diário de Notícias (16 Outubro), com o título 'A CNN e os outros'.

De acordo com um poderoso cliché de natureza moral, a discussão da linguagem televisiva esgota-se num cálculo maniqueísta que, em boa verdade, marca a prática (e a mentalidade) de uma significativa maioria de profissionais da informação. Que cálculo é esse? Pois bem, decorre de uma aritmética simplista em que tudo se decide entre a “verdade” e a “mentira” que as imagens e os sons podem integrar — meio século depois, decididamente, tais profissionais ainda não tiveram um bocadinho do seu tempo para ver Pedro, o Louco (1965), de Jean-Luc Godard.
Trevor Noah, o novo apresentador de The Daily Show, tem tentado discutir tais questões, assumindo o essencial da herança de Jon Stewart. A saber: um sistemático empenho na desmontagem dos clichés da linguagem televisiva, em particular na abordagem das convulsões do universo político.
Há dias, comentou com acutilante energia um spot da CNN, promovendo a realização de um debate entre candidatos à nomeação presidencial do Partido Democrata. Em brevíssimos segundos, o espectador era confrontado com algo que mais parecia a antecipação de um combate de boxe, a ponto de Noah desabafar, com calculado sarcasmo: “Vocês não têm coração! Qualquer uma destas pessoas poderá vir a ser o próximo Presidente dos EUA!”


Infelizmente, as observações de Noah estão longe de serem válidas apenas para a CNN. Tem-se assistido, de facto, um pouco por todo o lado, a uma consagração de formas pueris de comunicação (?) em que a televisão é entendida — e, sobretudo, praticada — como uma linguagem que se confunde, ponto por ponto, imagem por imagem, com a vulgaridade dos mais primitivos padrões da publicidade. No limite mais perturbante de tal atitude está a banalização de imagens de infinita complexidade simbólica (por exemplo, a queda das torres do World Trade Center), reduzidas à função de um vulgar e intermutável clímax visual. Dir-se-ia que, por vezes, a televisão vê o mundo como uma interminável colagem de spots publicitários.