segunda-feira, setembro 14, 2015

Sob o signo de Shyamalan (1/2)

M. Night Shyamalan está de regresso ao seu melhor, com A Visita, um filme construído a partir de imagens registadas pelas próprias personagens principais — este texto foi publicado no Diário de Notícias (10 Setembro), com o título 'O assombramento e o medo segundo M. Night Shyamalan'.

Mesmo os fãs mais militantes de M. Night Shyamalan (n. 1970) terão ficado desconcertados com os caminhos que o seu trabalho estava a seguir, sobretudo depois de O Último Airbender (2010), uma grande produção juvenil, inspirada numa série animada de aventuras fantásticas. Seguiu-se uma parábola de ficção científica, Depois da Terra (2013), com Will Smith e o seu filho Jaden Smith, título que parecia confirmar um “desvio” algo incompreensível. Face à sua novíssima realização, A Visita, o mínimo que se pode dizer é que Shyamalan regressa às origens: uma história de assombramento e medo que se vai transfigurando numa invulgar experiência sensorial.
Vogamos, de facto, num universo que faz lembrar filmes anteriores de Shyamalan como Sinais (2002), A Vila (2004) ou O Acontecimento (2008), em que comunidades com limites físicos e simbólicos muito nítidos — uma família, uma comunidade rural, os passageiros de um comboio — se confrontavam com o poder maligno de forças desconhecidas, pondo em causa a sua própria sobrevivência. No caso de A Visita, tudo se passa num contexto ainda mais restrito e, por assim dizer, mais íntimo. Isto porque, no essencial, o filme se concentra em quatro personagens: os irmãos Tyler (Ed Oxenbould) e Becca (Olivia DeJonge), e os avós maternos (Peter McRobbie e Deanna Dunagan) que os recebem para uma visita de uma semana.
Lembramo-nos, claro, daquele que é o mais conhecido e, provavelmente, o melhor dos filmes de Shyamalan: O Sexto Sentido (1999). Aí, ele encenava a odisseia de uma criança (Haley Joel Osment), protagonista de um inusitado elo de ligação com um mundo habitado por entidades sem nome, para além das fronteiras da própria vida (“Vejo pessoas mortas”, era a frase que se tornou um emblema do próprio filme). Agora, Tyler e Becca vão descobrir, à sua própria custa, que a casa isolada onde vivem os avós não é exactamente um paraíso rural, mas sim um lugar de inquietantes acontecimentos, em particular a partir da barreira fatal das nove e meia da noite...
Dizer que estamos perante modelos do corrente cinema de terror será, talvez, uma sugestão favorecida pelas mensagens do próprio mercado, mas muito discutível face às singularidades da mise en scène de Shyamalan. Podemos mesmo caracterizá-lo como um contador de histórias (aliás, assumindo sempre as fundamentais funções de argumentista dos seus filmes) que inventou um sistema muito particular de narrativas em que tudo se joga através de uma tensão constante entre o que as personagens vêem e os significados que atribuem àquilo que só conseguem imaginar.
No caso de A Visita, Shyamalan explora tal tensão de forma muito peculiar e, à sua maneira, estranhamente sensual. Porque não estamos apenas perante eventos bizarros e perturbantes, como o facto de o avô depositar misteriosos restos biológicos numa arrecadação onde mais ninguém pode entrar, ou a avó passear nua pela casa durante a noite... Acontece que tais eventos nos surgem filtrados pelos olhares das duas crianças, já que, através de um elaborado trabalho de montagem, A Visita se organiza a partir das imagens que Tyler e Becca registam com as suas câmaras portáteis.
Pode dizer-se que A Visita é também uma visão insólita, misto de ironia e crueldade, das ilusões da nossa sociedade da “comunicação”. Assim, através das suas câmaras ágeis, e também do computador que lhes serve para comunicar com a mãe (Kathryn Hahn), Tyler e Becca são figurinhas típicas de um tempo em que a intensa circulação de mensagens (de imagem e som) passou a ser um dado corrente do quotidiano; ao mesmo tempo, a fruição global da tecnologia não apaga, antes parece atrair, os fantasmas mais primitivos.
Se há referências que podemos evocar a propósito da obra de Shyamalan, elas não estão no terror contemporâneo, mas sim em modelos de um outro cinema anti-realista, também ele primitivo, que teve em Jacques Tourneur (1904-1977), autor de Cat People/A Pantera (1942), um dos mestres absolutos. Com Shyamalan, a naturalidade dos lugares e das pessoas é uma porta de entrada numa paisagem em que todas as nossas certezas vacilam.