terça-feira, setembro 29, 2015

O futuro encenado por David Fonseca

David Fonseca é um caso exemplar de um criador musical que mantém uma relação sistemática e inventiva com o mundo das imagens. Muitas vezes dirigindo os seus próprios telediscos, tem vindo a fazer a apresentação do seu novo disco, Futuro Eu, através de uma série de curiosas encenações com o gosto pela variação das velocidades dos elementos visuais — o tema que dá o título ao álbum [video] é, por certo, o mais rico e elaborado, ensaiando uma ocupação lúdica de um espaço museulógico.
Futuro Eu, o primeiro registo de David Fonseca totalmente cantado em português, será apresentado em concertos em Lisboa (CCB) e Porto (Casa da Música), respectivamente a 30 e 31 de Outubro.

segunda-feira, setembro 28, 2015

Entre as Torres Gémeas

Como será The Walk, o filme de Robert Zemeckis sobre Philippe Petit, artista do arame que, a 7 de Agosto de 1974, fez a travessia entre as Torres Gémeas, do World Trade Center? Para já, o mínimo que se pode dizer é que o respectivo trailer é um objecto visualmente impressionante — The Walk tem estreia portuguesa a 8 de Outubro, com o título O Desafio (recorde-se que a odisseia de Petit foi retratada em Homem no Arame, de James Marsh, vencedor do Oscar de melhor documentário referente a 2008).

domingo, setembro 27, 2015

Pearl Jam + Beyoncé

No sábado, dia 26, teve lugar em Nova Iorque, no Central Park, a quarta edição do Global Citizen Festival, uma organização das Nações Unidas integrada no combate à pobreza (os cidadãos que deram o seu contributo através do site do Global Poverty Project recebiam entradas grátis para o festival).
Com participações de Beyoncé, Pearl Jam, Ed Sheeran e Coldplay (Chris Martin é o actual director criativo do evento), o concerto teve um momento alto quando Eddie Vedder chamou ao palco Beyoncé para uma vibrante interpretação de Redemption Song, de Bob Marley — a performance incluiu um extracto do discurso de Nelson Mandela contra a pobreza global, em 2005, na Trafalgar Square de Londres.

3 milhões de abstencionistas

PAUL KLEE
Comédia
1921
Nem os candidatos, nem os jornalistas, ninguém parece disponível ou motivado para falar sobre os abstencionistas — este texto foi publicado no Diário de Notícias (25 Setembro), com o título 'O país dos 3 milhões'.

Intermináveis e repetidos debates com as mesmas cinco ou seis figuras políticas... Reportagens de um ou dois minutos, todos os dias, a todas as horas, com essas cinco ou seis figuras a repetirem os mesmos soundbytes... Sondagens, dia sim, dia não, noutros tempos apresentadas como a máxima depuração de uma verdade científica, agora, conforme os resultados, acompanhadas pelas declarações de uma ou duas figuras (das cinco ou seis já mencionadas) que duvidam da respectiva fiabilidade...
Em Portugal, não parece haver grande disponibilidade para pensar os efeitos (sociais e políticos, numa palavra, culturais) daquilo que se repete ad infinitum, como uma espécie de mantra televisivo, supostamente para nos fazer compreender o mundo à nossa volta.
Um pouco como a velha história do cinema português não ter sucesso... Qual cinema português?... E que sucesso?... Com várias gerações de espectadores a serem (des)educadas pelos formatos telenovelescos, alguém esperaria que o belíssimo As Mil e uma Noites, de Miguel Gomes, pudesse encher estádios de futebol? Estamos a falar de quê?
Que acontece, então, com a política, e em torno da política? Por um lado, a sua hipotética dinâmica de acção e pensamento está reduzida àquelas formatações televisivas, esteticamente anódinas, filosoficamente entorpecentes; por outro lado, voltamos a viver uma campanha eleitoral em que o drama das abstenções nem sequer é aflorado na rotina pitoresca do dia a dia.
Perante o facto brutal de, em recentes actos eleitorais, mais de 3 milhões de portugueses não terem comparecido nas urnas, não seria pertinente perguntar se a actual percepção televisiva da política consegue fazer alguma coisa para contrariar tal estado de coisas? Não se trata de distribuir “culpas”, apenas de relançar uma dúvida metódica: a continuada representação da política através de estereótipos, cansados e previsíveis, talvez não seja a forma mais eficaz de sensibilizar os milhões que deixaram de acreditar na pertinência do seu voto.

sábado, setembro 26, 2015

Queer Lisboa: Eisenstein por Greenaway

Elmer Bäck no filme de Peter Greenaway
e Sergei Eisenstein durante a rodagem de Que Viva México!
Como revisitar a história de um grande cineasta sem ficar preso dos formatos tradicionais dessa mesma história? Ou ainda: até que ponto fazer história não é também, sempre, integrar o mito e os fantasmas, o real e o surreal?
Uma resposta possível está no admirável Eisenstein em Guanajuato, o filme do britânico Peter Greenaway que hoje à noite, no cinema São Jorge (21h00), encerra oficialmente a 19ª edição do Queer Lisboa — revisitando o período, finais de 1930, em que Eisenstein visitou o México para rodar um filme (que nunca foi concluído), Greenaway apresenta-nos uma parábola, ao mesmo tempo política e poética, em que a aliança do sexo e da morte se diz (e visualiza) através de um fascinante misto de crueldade e humor.
Antes, também no São Jorge (18h30), os autores deste blog apresentam mais uma sessão do Queer Pop, dedicada à enigmática dialéctica corpo/natureza no universo de BjörkCocoon (2001), realizado por Eiko Ishioka, é um dos (onze) telediscos do programa.

Woody Allen: as mulheres e os homens (3/3)

2015: HOMEM IRRACIONAL, Woody Allen
1955: A LESTE DO PARAÍSO, Elia Kazan
A estreia de Homem Irracional relança-nos no labirinto do masculino/feminino, fulcral na dinâmica dramática de todo a obra de Woody Allen — este texto foi publicado no Diário de Notícias (17 Setembro), com o título 'De Manhattan a Rhode Island'.

[ 1 ]  [ 2 ]

Na filmografia de Woody Allen, Homem Irracional é o terceiro título consecutivo em que ele opta pelo formato “largo” (correspondente ao clássico CinemaScope). Acontecera assim em Blue Jasmine (2013), com imagens a cargo do espanhol Javier Aguirresarobe, e Magia ao Luar (2014), em que a direcção fotográfica, tal como em Homem Irracional, pertence a Darius Khondji. Trata-se de um detalhe técnico? Talvez. Em todo o caso, será interessante perguntar se uma certa visão corrente de Woody Allen — como autor de retratos mais ou menos anedóticos das convulsões humanas — não se revela limitada na compreensão da riqueza do seu universo.
Com a celebração gratuita dos “efeitos especiais”, a percepção das imagens passou a estar dominada por uma adoração beata da tecnologia ou, pior um pouco, pela visão instrumental imposta pelos discursos publicitários (incluindo na sua contaminação da vida política). Por isso mesmo, importa revalorizar o facto de criadores como Woody Allen não tratarem as suas imagens como muletas “descritivas” (nada a ver com a formatação telenovelesca), antes como elementos fulcrais da narrativa, suas ideias e emoções.
A “largura” das imagens de Homem Irracional favorece, assim, uma tensão subtil: por um lado, os lugares encantados daquela cidadezinha de Rhode Island vão surgindo como sinais de um paraíso prometido ou imaginado, capaz de redimir os pecados dos seres humanos; por outro lado, quanto mais somos atraídos pela luminosidade dos cenários, mais sentimos que se adensa o negrume que envolve os protagonistas. Afinal de contas, já em Manhattan (1979) o formato largo era essencial na celebração de Nova Iorque — como se a suprema arte das palavras que distingue Woody Allen fosse um prolongamento do seu talento de desencantado pintor.
1979: MANHATTAN, Woody Allen

sexta-feira, setembro 25, 2015

Os corpos de Autre Ne Veut

O senhor Arthur Ashin, de Brooklyn, está de volta. Ou melhor, respeitando o seu cognome artístico: Autre ne Veut. Do seu novo álbum, Age of Transparency, sempre com a colaboração do realizador Aille Avital, ele traz-nos agora o tema título, numa demonstração eloquente de como as memórias mais nostálgicas do R&B podem ser combinadas com uma parábola futurista (?) em que a carnalidade dos corpos é, literalmente, posta à prova — tão indecifrável quanto envolvente.

007 cantado por Sam Smith

O mínimo que se pode dizer da canção do novo filme do agente secreto 007 é que a sua revelação imediatamente gerou um forum global de prós & contras que, mesmo quando atrai confrontos pouco ou nada musicais, é bem revelador do poder simbólico da marca James Bond. Interpretada por Sam Smith (também autor, em aliança com Jimmy Napes), chama-se Writing's on the Wall — a estreia de Spectre ocorrerá a 26 de Outubro, em Londres; em Portugal, estará nos cinemas a 5 de Novembro.

quinta-feira, setembro 24, 2015

Wayne Shorter no Lincoln Center

São cerca de 30 fabulosos minutos de jazz agora disponibilizados pela NPR. No passado mês de Maio, o saxofonista Wayne Shorter (n. 1933) esteve no Lincoln Center para revisitar algumas das suas mais emblemáticas composições. Integrado num breve 'Wayne Shorter Festival', o concerto teve a particularidade de incluir arranjos da responsabilidade de membros da Jazz At Lincoln Center Orchestra, precisamente o colectivo que acompanhou Shorter — são momentos empolgantes de um criador que revisita a sua própria música, não na ilusão de a repetir, antes expondo o futuro que já estava contido no seu passado.

360º segundo o Facebook

1. Não deitemos fora o bebé com a água do banho... Que é como quem diz: há, por certo, muitas formas de utilização do Facebook que não promovem o simplismo mental ou o pitoresco anódino, satisfazendo, inclusive, necessidades de informação e/ou comunicação.

2. Em todo o caso, não parece que isso seja uma boa razão para que os responsáveis do Facebook continuem a tratar o género humano como uma colecção de marionetas eternamente infantis, promovendo com grande pompa "revolucionária" o que não passa de variações (menores) sobre matrizes técnicas há muito experimentadas — e experimentadas com outra inteligência criativa.

3. Depois da anedótica revelação de Mark Zuckerberg, apostado em criar um botão de "dislike", chegaram os videos de 360º... De que se trata? De um novo conteúdo imersivo (a palavra justificará, por certo, alguma reflexão autónoma, de tal modo através dela se tenta anular — e des-responsabilizar — o conceito de emissor) que, em boa verdade, de forma tosca, repete dispositivos visuais há muito correntes nos mais medíocres jogos de video.


4. Daí a celebrar tamanha banalidade como um delirante acontecimento (... também tu, BBC?) vai um passo que, apesar de tudo, em nome da memória, convirá relativizar. Quem é que, entre o staff de jovens génios que sustentam o edifício ideológico do Facebook, alguma vez se dedicou a conhecer a riqueza das formas de construção do espaço no interior da história imensa, e imensamente plural, do cinema? Alguma vez se deram ao trabalho de ver Touch of Evil/A Sede do Mal (1958), de Orson Welles, e o seu prodigioso plano-sequência de abertura?


5. Será que conhecem o fabuloso trabalho de câmara de Raoul Coutard em Weekend (1967), de Jean-Luc Godard? Ou, pelo menos, dispuseram de 7 minutinhos do seu tempo tecnocrático para ir ao YouTube e ver com olhos de ver o plano circular que dá pelo nome de 'Acção musical'?


6. E sabem que, em Profissão: Repórter (1975), Michelangelo Antonioni filmou a morte da personagem interpretada por Jack Nicholson como um desafio, material e conceptual, à própria estabilidade do espaço, reduzindo as novas pobres imagens de 360º a uma brincadeira fútil para crianças que não querem pensar — ou que foram ensinadas a não pensar?


7. O problema não está tanto, entenda-se, no facto de a gestão financeira de um potentado global como o Facebook existir de acordo com uma lógica que necessita, semana sim, semana não, de alagar o planeta com uma "novidade"... O problema está no modo como fenómenos técnicos e promocionais deste género fazem tábua rasa da memória humana acumulada ao longo de muitos séculos (sim, séculos: poderíamos citar objectos da história da pintura ou da fotografia cuja sofisticação espacial reduz a pó mais este "acontecimento" do Facebook). Algum pudor, recomenda-se — se possível olhando a direito para a complexidade das coisas.
DAVID HOCKNEY
Mother
1985

Os carros abandonados do Dubai

Hipótese iconográfica e política a considerar: olhar as imagens — qualquer imagem — como uma condensação simbólica da circulação do dinheiro. No Dubai, por exemplo. Sendo o não pagamento de dívidas um crime severamente punido (incluindo a emissão de um cheque sem provisão), os faltosos tendem a fugir do país, abandonando os carros de luxo que compraram a crédito e não conseguiram pagar.
Daí este bizarro apocalipse de objectos caríssimos (mais de 3000 por ano, segundo a polícia do Dubai), definindo uma paisagem cujo absurdo adquire a dimensão de símbolo civilizacional. A muitos dos carros foram retiradas as matrículas, de modo a dificultar a eventual localização dos compradores; nalguns casos, as chaves de ignição foram deixadas na respectiva ranhura — portfolio disponível no site Afrizap.   

quarta-feira, setembro 23, 2015

terça-feira, setembro 22, 2015

A IMAGEM: David Leventi, 2015

DAVID LEVENTI
Ópera
2015

Godard — cinema e pintura

Grande acontecimento na área do DVD: a edição de Paixão (1982), de Jean-Luc Godard — este texto foi publicado no Diário de Notícias (20 Setembro), com o título 'Um trabalho próximo do amor'.

Sabemos que a cultura cinéfila foi perdendo força social e, em particular, presença mediática. E escusado será dizer que a vitalidade dessa cultura não se mantém através de ante-estreias abrilhantadas pela presença de “famosos” (palavra que, hoje em dia, se tornou sinónimo quase universal dos mais medíocres actores de telenovelas). Nem parece possível celebrar a inteligência dos filmes através de especulações demagógicas sobre o papel social da crítica (sem esquecer que a palavra “social” continua a ser todos os dias desvalorizadas pelas “redes” que se assumem como expressão unívoca, muitas vezes banalmente difamatória, da dinâmica colectiva).
Isto para dizer que o lançamento em DVD de Paixão (1982), de Jean-Luc Godard, não desencadeou grandes comoções sociais. Em boa verdade, a possibilidade de André Carrillo continuar ou não a jogar futebol em Portugal parece ser mais importante para os nossos destinos do que a existência de uma das obras fulcrais da arte (cinematográfica ou não) da segunda metade do século XX.
Ironias à parte, ninguém é tão ingénuo a ponto de esperar que algum telejornal abra com a notícia da edição de Paixão... Será preciso esclarecer que não é nada disso que está em causa? O que se lamenta pouco tem a ver com qualquer métrica da “visibilidade”. Acontece que a desvalorização da cinefilia envolve todo um apagamento de memórias que tende a supor que o carácter “revolucionário” de um filme se mede, por exemplo, pela utilização dos últimos recursos típicos dos “efeitos especiais”.
O valor simbólico de Paixão passa, afinal, pela integração de um muito antigo dispositivo dramático: tudo acontece a partir da actividade de um equipa de filmagens cujo realizador, de origem polaca, interpretado por Jerzy Radziwilowicz, procura obsessivamente a luz certa para refazer, em estúdio, as composições humanas de algumas célebres pinturas (A Ronda da Noite, de Rembrandt, é um dos quadros citados).
No universo de Godard, o confronto com as heranças da pintura não decorre de nenhuma atitude copista, muito menos desse novo-riquismo estético que julga que a dignidade do cinema passa pela imitação das artes “superiores”. Nada disso. A pintura reaparece como um universo enredado com a integração de novos recursos ligados às câmaras de vídeo (por essa altura, Godard assinara alguns notáveis trabalhos para televisão, incluindo, em 1977, a série France Tour Détour Deux Enfants). Em boa verdade, tais recursos impelem a uma reavaliação do património visual e, mais do que isso, do modo como vivemos através das imagens que produzimos e consumimos.
Numa célebre cena de Paixão, interpretando uma potencial actriz do filme que está a ser rodado, Hanna Shygulla diz a Radziwilowicz que o trabalho que ele lhe pede “está demasiado próximo do amor”. Nos dias que correm, quantos são os que produzem imagens, não para formatar o real, mas por amor da sua humana complexidade?

segunda-feira, setembro 21, 2015

Rose McGowan — um fabuloso teledisco

Figura emblemática de filmes mais ou menos bizarros, quase sempre provenientes da área independente (Gritos, À Prova de Morte, etc.), a actriz Rose McGowan estreia-se na área musical com um fabuloso teledisco, por certo capaz de reforçar a sua condição de figura de culto. A canção RM486 surge encenada como uma colagem de personagens que oscilam entre a performance teatral e as aventuras de extra-terrestres, num bailado de transfigurações magnificamente filmado por Jonas Akerlund. Mesmo não recuando para além do corrente ano, o menos que se pode dizer é que depois de ter realizado Ghosttown e Bitch I'm Madonna, ambos para Madonna, Akerlund continua em forma.

Publicidade em forma de sonho

É, de facto, um modelo de sonho recorrente, porventura dos mais universais. A saber: sonhar que se voa e, através do voo, se conquistam inusitados poderes de visão e domínio do espaço. Pois bem, a JetBlue, companhia aérea low-cost sediada em Long Island City, tomou a questão à letra, promovendo os seus voos... em forma de sonho — eis o brilhante trabalho da agência novaiorquina Mullen Lowe Group.

domingo, setembro 20, 2015

Com chancela da HBO

A série Show Me a Hero, com chancela da HBO, é um dos grandes acontecimentos televisivos do momento — este texto foi publicado no Diário de Notícias (18 Setembro), com o título '"Mostrem-me um herói"'.

Um dos mais persistentes mistérios de muitos modos de fazer televisão é a indiferença pelos recursos específicos do próprio meio — como se só se utilizasse a primeira mudança da caixa de velocidades, tentando evitar o esforço de pensar como e quando se pode meter a segunda para, num mundo utópico, arriscar utilizar a quarta ou a quinta.
F. Scott Fitzgerald
Exemplo? A notável série Show Me a Hero, símbolo da oferta do renovado TVCine & Séries (agora privilegiando o catálogo da HBO). Para além de este ser mais um caso de não tradução do título (salvo melhor opinião, ainda é possível dizer em português: “Mostrem-me um herói”), que mal viria ao mundo se, de alguma maneira, se esclarecesse a origem da expressão numa célebre máxima de F. Scott Fitzgerald (1896-1940)? A saber: “Mostrem-me um herói e eu escrevo-vos uma tragédia”.
Na prática, as esforçadas promoções que enquadram muitos programas (em todos os canais, entenda-se) raras vezes investem na valorização das componentes dos respectivos “produtos” (é assim que os profissionais do marketing passaram a exprimir-se: não há filmes nem séries, mas “produtos”).
No caso específico de Show Me a Hero, a cuja criação está ligado o nome do autor de The Wire, David Simon (outra referência não devidamente rentabilizada), seria mesmo interessante sublinhar como o espantoso retrato interior das lutas políticas e urbanísticas em Yonkers, Nova York, nos anos 1980/90, nos remete para os modelos de um certo cinema liberal que teve a sua expressão mais exemplar no trabalho de um cineasta como Sidney Lumet (1924-2011). Seria também curioso mostrar como a realização de Paul Haggis (“oscarizado” em 2006 pelo seu Crash/Colisão) retoma modelos de narrativa e montagem experimentados por Lumet em filmes admiráveis como Um Dia de Cão (1975), O Príncipe da Cidade (1981) ou O Veredicto (1982). Tudo isto, insisto, aconteceria de acordo com um modo de fazer televisão em que houvesse gosto por superar os dados imediatos, mais ou menos impressionistas, associados a cada “produto”.

sábado, setembro 19, 2015

Woody Allen: as mulheres e os homens (2/3)

A estreia de Homem Irracional relança-nos no labirinto do masculino/feminino, fulcral na dinâmica dramática de todo a obra de Woody Allen — este texto foi publicado no Diário de Notícias (17 Setembro), com o título 'Woody Allen filma as razões que a razão desconhece'.

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Num dos seus filmes menos conhecidos, Setembro (1987), Woody Allen coloca na boca de uma personagem uma observação que talvez pudesse funcionar como símbolo da sua ironia, mas também do seu profundo cepticismo: “O universo é aleatório, moralmente neutro e inimaginavelmente violento”. Tal frase não ficaria mal como apresentação do seu novo filme, Homem Irracional, revelado em Maio, na selecção oficial do Festival de Cannes (extra-competição).
É muito provável que, ao contrário do que aconteceu sobretudo nas décadas de 70/80, Woody Allen já não controle com o mesmo rigor as formas de promoção do seu trabalho. Quando do lançamento do seu filme anterior, Magia ao Luar (2014), proliferaram na Net considerações pouco simpáticas sobre a vulgaridade do grafismo dos respectivos cartazes. Agora, há qualquer coisa de desconcertante no facto de Homem Irracional, em particular através do seu trailer, ter sido internacionalmente promovido como uma comédia mais ou menos brejeira sobre a relação de um professor de filosofia, Abe Lucas (Joaquin Phoenix), com a sua aluna predilecta, Jill Pollard (Emma Stone), em ambiente tipicamente universitário.
Não se poderá dizer que Homem Irracional seja estranho ao peculiar sentido de humor cuja fama original está ligada a comédias como Que Há de Novo, Gatinha? (1965), com Woody Allen como argumentista e actor, ou O Inimigo Público (1969), Bananas (1971) e O ABC do Amor (1972), já acumulando as funções de realizador. Seja como for, a história de Abe e Jill vai-se transformando numa saga moral de componentes francamente perturbantes.
Há que ter alguma prudência nas referências às peripécias que envolvem Abe e Lucas (quanto mais não seja porque o espectador pode, e deve, descobri-las em primeira mão). Simplificando, digamos que, procurando seduzir Jill, ou apenas para contrariar o seu tédio existencial, Abe vai mantendo com ela um diálogo sobre os prós e contras da procura da justeza moral nas relações humanas. No limite, Abe formula a hipótese de agir contra uma personagem cuja malvadez é conhecida, não através das artes da persuasão ou da denúncia pública, mas consumando um acto condenado pela lei...
Que está, então, em jogo? Algo que, em boa verdade, marca muitos momentos emblemáticos da filmografia de Woody Allen, a começar por esse título revelador que é Crimes e Escapadelas (1989): trata-se de saber até que ponto a natureza humana, na sua procura de justiça e harmonia, pode atrever-se por caminhos rejeitados tanto pelos valores colectivos como pela ética individual.
Numa máxima dos seus Pensamentos, o filósofo francês Blaise Pascal (1623-1662) escreveu que “o coração tem razões que a razão desconhece”. Woody Allen poderá, talvez, aceitar tal ideia como fulcral na experiência tão extrema que Abe faz viver a Jill (ou ela a ele) — como se as ilusões românticas coexistem, silenciosamente, com a possibilidade do crime.
Se é um facto que, desde Match Point (2005), Woody Allen tem filmado sobretudo em cenários da nossa Europa, não é menos verdade que há na sua obra uma visceral dimensão americana e, escusado será sublinhá-lo, nova-iorquina — afinal de contas, algumas imagens de um filme como Manhattan (1979) tornaram-se símbolos da própria “Big Apple”. Depois de Magia ao Luar, rodado na Côte d’Azur e Alpes Marítimos, Homem Irracional representa também um regresso aos EUA, mais concretamente a uma pequena cidade universitária do estado de Rhode Island.
De novo contando com a colaboração do director de fotografia franco-iraniano Darius Khondji, Woody Allen contempla a beleza dos jardins e das casas como um sinal ambíguo, dir-se-ia perverso, dos fantasmas que se vão instalando na relação de Abe e Jill. A certa altura, nas argumentações com que procura legitimar o seu comportamento, Abe evoca mesmo (completamente fora de contexto) a célebre frase de Jean-Paul Sartre: “O inferno são os outros”. O certo é que há um inferno privado que vive dentro dele e Homem Irracional é um filme sobre esse assombramento.

Queer Lisboa abriu com "Praia do Futuro"

Praia do Futuro, coprodução Brasil/Alemanha realizada por Karim Aïnouz [trailer], foi o título oficial de abertura da 19ª edição do Queer Lisboa. Este ano, o festival prolonga-se através de um Queer Porto, a decorrer de 7 a 10 de Outubro.
Com uma programação apostada em revelar novas propostas cinematográficas de temática gay, lésbica, bissexual, transgénero e transsexual, o certame decorre no cinema São Jorge até dia 26, encerrando com a primeira apresentação em salas portuguesas de Eisenstein in Guanajuato, de Peter Greenaway.
As sessões do "Queer Pop" contarão com a participação dos autores deste blog:
— dia 20, 18h30 - Red + Hot: música por uma causa (apresentação: NG).
— dia 26, 18h30 - Björk: o corpo e a natureza (apresentação: NG + JL).

Debate na rádio — que política?

Pedro Passos Coelho e António Costa protagonizaram um debate na rádio... Ou foram à rádio para aparecer na televisão? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (18 Setembro), com o título 'Quando o vídeo matou as estrelas da rádio'.

Ao princípio da tarde de quinta-feira, cerca de três horas depois de concluído o debate radiofónico Pedro Passos Coelho/António Costa, a sua ocorrência não era motivo de destaque nos sites dos canais generalistas de televisão (na TVI, por exemplo, o acontecimento prioritário era mesmo um vídeo de Cristina Ferreira sobre “Os segredos do arroz”). Além do mais, o país real era mobilizado para a tragédia de André Carrillo não estar na lista de convocados para o jogo do Sporting com o Lokomotiv Moscovo.
Há outra maneira de dizer isto (infinitamente minoritária na sociedade portuguesa): a reflexão sobre a nossa cultura audiovisual não está na agenda político-mediática da actual campanha, sendo tabu qualquer forma de pensamento sobre o populismo televisivo que, todos os dias, estrangula a inteligência colectiva.
Vivemos, por isso, com mais de três décadas de atraso, o nosso momento MTV. Lembremos que, a 1 de Agosto de 1981, as emissões do canal que revolucionou os parâmetros musicais foram inauguradas com a passagem de um teledisco que, literalmente, proclamava a morte das estrelas da rádio às mãos (ou às imagens) da televisão — a canção da banda britânica The Buggles tinha mesmo o eloquente título Video Killed the Radio Star. Agora, no plano das linguagens audiovisuais, o que aconteceu é do mesmo teor.


Numa bizarra autofagia, as rádios não quiseram (ou não puderam) fazer prevalecer o recato próprio dos seus estúdios, transferindo-se para o cenário espectacular (?) já utilizado pelas televisões. Na prática, isso fez com que Pedro Passos Coelho e António Costa assumissem mesmo as suas intervenções finais com o olhar fixo numa das câmaras, involuntariamente emprestando realismo ao ridículo muitas vezes explorado pelo humor do notável Portugalex (Antena 1), com os magníficos António Machado e Manuel Marques a interpretarem personagens que trazem os mais variados objectos para “mostrar” na rádio...
Tudo isto envolve uma lição social, sem rede, que seria interessante enfrentar. A saber: quase tudo o que acontece na cena política é compulsivamente executado em função das imagens televisivas que pode gerar. Se a nossa má vontade não tivesse limites, diríamos que a utopia das televisões seria um político preso em casa para, à sua volta, montarem um novo Big Brother... Ups!

sexta-feira, setembro 18, 2015

Jimi Hendrix — uma efeméride

1967 (Motor City Radio Flashbacks)
Jimi Hendrix morreu aos 27 anos de idade, em Londres, no dia 18 de Setembro de 1970 — faz hoje 45 anos.
É apenas uma efeméride, um daqueles instantes fugazes em que acreditamos, ou fingimos acreditar, que algum equilíbrio efémero dos números confere coerência e perenidade aos desvarios da existência humana. Ainda assim, não recusemos o apelo simbólico das datas e (porque não?) o conforto emocional que nelas podemos encontrar. Neste caso, valerá a pena repetir que a herança de Jimi excede qualquer conceito pitoresco de versatilidade, envolvendo sempre uma relação com a guitarra em que a vibração corporal nos sugere a hipótese de uma alma — em tempos de tantos niilismos tão facilmente vendáveis e vendidos, eis uma lição cujo valor pedagógico não nos podemos dar ao luxo de menosprezar.

>>> Like a Rolling Stone (Bob Dylan), por Jimi Hendrix. 


>>> Site oficial de Jimi Hendrix.
>>> "100 maiores guitarristas" — lista da Rolling Stone.
>>> Fundação Jimi Hendrix.

Ver + ouvir:
Nicolas Godin, Orca


Nicolas Godin, um dos dois elementos dos Air, estreia-se a solo com o álbum Contrepoint, que tem a música de Bach como principal fonte de inspiração. Fica aqui um dos telediscos já criados para temas deste disco.

Novas edições:
Ezra Furman, Perpetual Motion Picture

Entre a multidão de discos que surgem todas as semanas – o que é bom a bem da liberdade criativo mas tem os seus custos na capacidade de assimilação por cada par de ouvidos – há frequentemente títulos que escapam à atenção quando saem da toca pela primeira vez. E com os meses do calor para colocar a escrita em dia, eis que finalmente dou de caras com um novo disco de Ezra Furman (editado na Primavera) que, com este Perpetual Motion Picture, nos dá inclusivamente um dos melhores discos que já ouvi este ano.

Natural de Chicago, onde nasceu em 1989 (tem neste momento 29 anos), teve uma primeira banda – Ezra Furman and the Harpoons – com a qual chegou a editar três álbuns entre 2007 e 2011. Após a digressão que acompanhou o terceiro destes discos gravou o relativamente melancólico The Year of No Returning, um álbum a solo que, mesmo sem editora (e a bênção do Kickstarter), lançaria em 2012. Seguiu-se Day of The Dog (2013), já sob um primeiro acordo editorial. Entre ambos os discos afirmava-se uma voz autoral em busca de um caminho no presente, embora claramente herdeira de várias linhas clássicas que nos transportam a memórias intensas e angulosas dos setentas. E agora, na sua estreia pela Bella Union, eis que em Perpetual Motion People alcança aquele momento em que as referências finalmente se mostram definitivamente arrumadas e uma linguagem mais segura e bem definida que suporta um conjunto de temas que, ainda por cima, revelam igualmente um passo em frente por parte do escritor de canções que soube não se repetir.

De horizontes mais alargados que os trilhados pelo disco de 2013, polindo as suas arestas mais abrasivas e abarcando igualmente os territórios menos festivos observados na estreia a solo, Perpertual Motion People é um álbum feito de uma aparente luminosidade na qual as canções de Ezra Furman aprofundam as suas reflexões sobre identidade, ansiedade e um sentido de desenquadramento perante o mundo ao seu redor que tantas vezes se abate sobre quem não se verga aos ditados normativos. Como Michael Hadreas (ou seja Perfume Genius) aqui encontramos uma voz de referência para os misfits do nosso tempo.

Musicalmente Ezra Furman encontra aqui o patamar de entendimento entre um claro encantamento que parece ter pelas memórias do doo wop (como se escuta em Lousy Connection) e de raízes clássicas da cultura rock’n’roll, convocando heranças dos cinquentas e sessentas, juntando o calor do saxofone ao som das guitarras, num conjunto mais eclético que nunca, todavia mais bem estruturado e afinado, lembrando por vezes aquele entusiasmante festim de acontecimentos que sucedia nas canções dos Violent Femmes (bem evidente num Restless Year). Um disco a inscrever entre o que de melhor acontece em terreno indie por estes tempos.

Para ouvir: Frida remisturada por Lindstrom


O single de 1982 de Frida (uma das duas vozes dos Abba) surge em remistura de Lindstrom para assinalar a reedição do álbum a solo que a cantora editou nesse ano.

Para ler: na hora de recordar os Moody Blues

O The Guardian apresentou um trabalho evocativo de um dos nomes muitas vezes esquecidos na hora de lembrar o final dos sessentas: os Moody Blues.

Podem ler aqui

quinta-feira, setembro 17, 2015

Grunge, dizem eles e elas

Eles são Steve Lack (baixo) e Jim Shapiro (bateria); elas Louise Post e Nina Gordon (ambas em guitarra e vozes) — os Veruca Salt, que se estrearam em 1994 com o magnífico American Thighs, são uma banda de Chicago que assumiu a herança do grunge num tempo ainda marcado pelas convulsões próximas dos Nirvana. Abreviando a história, digamos que, depois do segundo álbum, Eight Arms to Hold You (1997), a formação inicial se dispersou. Para se reencontrar agora, com Ghost Notes. São fantasmas, por certo, de um período cuja energia continua a guiar a criatividade deste quarteto de Chicago — eis duas canções emblemáticas, com títulos tentadores, para testar a passagem do tempo: The Gospel According to Saint Me (lyric video) e The Museum of Broken Relationships.



O futebol contra a língua portuguesa (cont.)

E a saga continua... Aliás, alaga como um oceano de lava destruidora. Como se não bastassem os atropelos à língua portuguesa perpetrados no futebol televisivo, o espaço nobre dos jornais parece não querer ficar atrás. Observe-se este exemplo extraído do jornal A Bola. Que dizer de (mais) esta utilização do infinito de um verbo, como se não houvesse construções gramaticais que garantissem a identificação da própria acção?... Talvez que Quim Machado tivesse dito que "é preciso provar que...". Ou talvez se pudesse esclarecer que "é esse o desejo de Quim Machado...".
Claro que há os erros que todos cometemos, por vezes ficando chocados com a maneira como, inadvertidamente, tratamos a língua portuguesa (eu fico, confesso). Mas fenómenos como este correspondem à instalação de uma indiferença que, antes do mais, devia ser combatida pelas orientações editoriais — somos, assim, compelidos a viver no tempo trágico da unicidade verbal.
Chegar o tempo em que tudo ser tristemente uniforme, a ponto de todos falar num só tempo verbal?

Woody Allen: as mulheres e os homens (1/3)

A estreia de Homem Irracional relança-nos no labirinto do masculino/feminino, fulcral na dinâmica dramática de todo a obra de Woody Allen — este texto foi publicado no Diário de Notícias (15 Setembro), com o título 'Homens e mulheres assombrados por verdades e mentiras'.

É bem verdade que associamos a obra do realizador Woody Allen à presença do actor Woody Allen. Há razões fortes para que tal aconteça, a começar pelo facto de muitas das suas personagens, mesmo não sendo explicitamente autobiográficas, espelharem, de forma literal ou perversa, as suas ideias e sensibilidade. Em todo o caso, não deixa de ser curioso referir que, dos quinze títulos que já dirigiu no século XXI, de A Maldição do Escorpião de Jade (2001) a Homem Irracional (2015), Woody Allen apenas tenha surgido em cinco deles (a última vez ocorreu em 2012, com Para Roma com Amor).
Provavelmente, podemos dizer que muitos dos seus protagonistas masculinos são derivações, ora dramáticas, ora paródicas, de um padrão que terá estabelecido em 1977, com Annie Hall. Ao interpretar Alvy Singer, um actor que tenta reencontrar o equilíbrio afectivo com a personagem de Annie Hall (Diane Keaton), Woody Allen condensa uma atitude existencial que nasce de uma espécie de pragmatismo sarcástico face às agruras da existência.
A certa altura, Alvy diz a Annie: “Sinto que a vida está dividida entre o horrível e o miserável. São duas categorias. O horrível está, sei lá, nos casos terminais, pessoas cegas, estropiadas. Não sei mesmo como é que conseguem viver. É qualquer coisa que me espanta. Os miseráveis são todos os outros. Por isso, deves agradecer o facto de ser miserável, porque ser miserável é ter muita sorte”. Não parece que Annie tenha a mesma visão de Alvy. Há mesmo uma cena, na Califórnia, em que ela se mostra encantada com o ambiente: “Aqui é tudo tão limpo”. Mas nada disso comove Alvy: “Isso é porque eles não deitam fora o lixo, despejam-no nos programas de televisão”.
As mulheres dos filmes de Woody Allen são, quase sempre, um eco ambíguo dos silêncios e assombramentos que circulam pelo universo dos homens. Intimidade (1978), por certo a sua mais explícita homenagem ao mestre Ingmar Bergman, é especialmente revelador. Centrado no divórcio de um casal já na terceira idade (E. G. Marshall/Geraldine Page), o filme observa as reacções das três filhas adultas, interpretadas por Diane Keaton, Kristin Griffith e Mary Beth Hurt, cada uma delas projectando nos pais as atribulações das suas próprias histórias emocionais.
Dir-se-ia que a obra de Woody Allen se expõe à possibilidade de ser lida através das mulheres que partilharam a sua intimidade, quanto mais não seja porque na sua obra há, de facto, um período Diane Keaton e outro centrado em Mia Farrow. Aliás, este último desemboca num filme de sofisticada crueldade, Maridos e Mulheres (1992), que na altura do seu lançamento não pôde deixar de suscitar paralelismos com a separação do par Allen/Farrow (também em 1992).
Ainda assim, evitemos as típicas grosserias do mediatismo “cor de rosa”: se há algo de confessional na obra de Woody Allen, não é no plano mais ou menos picaresco das “peripécias”. Se os seus heróis masculinos, mesmo os mais divertidos, podem tender para uma dilaceração criminosa (observe-se a complexa e perturbante personagem de Joaquin Phoenix que justifica o título Homem Irracional), há nas suas principais personagens femininas uma capacidade de distanciamento que, pelo menos até certo ponto, lhes confere o papel de consciências morais (reais ou ilusórias) dos homens com quem convivem.
Isso é particularmente nítido nos seus mais complexos filmes “corais” (em que assistimos ao cruzamento de muitas histórias interligadas, sem que uma se sobreponha a qualquer outra), com destaque quase inevitável para o fascinante Ana e as Suas Irmãs (1986), protagonizado por Mia Farrow, Barbara Hershey e Dianne Wiest. Aí encontramos um novo trio de irmãs enredadas numa teia de verdade e mentira, não apenas com os homens, mas também entre si. Woody Allen filma-as ainda com alguma crença na transparência das relações humanas, embora também com o cepticismo de quem não cultiva ilusões redentoras. Como ele próprio diria, numa das suas máximas mais desencantadas: “Confiança é o que temos antes de ter compreendido o problema”.

A IMAGEM: Patrice Chappatte, 2015

PATRICK CHAPPATTE
Chegada à Europa
New York Times, 15 Set. 2015

Capela Sistina vs. Lego

Entre os muitos e fascinantes anúncios que a agência Jung von Matt, de Hamburgo, tem criado para a Lego inclui-se esta recriação da "Criação de Adão", composição que integra o tecto da Capela Sistina, pintado por Miguel Ângelo entre 1508 e 1512 — ou como a história (não) se repete.

quarta-feira, setembro 16, 2015

Sob o signo de Shyamalan (2/2)

M. Night Shyamalan está de regresso ao seu melhor, com A Visita, um filme construído a partir de imagens registadas pelas próprias personagens principais — este texto foi publicado no Diário de Notícias (10 Setembro), com o título 'Jogo de espelhos'.

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Com os nossos olhares todos os dias agredidos pelo “naturalismo” televisivo, A Visita não se esgota enquanto acontecimento cinematográfico — é um verdadeiro objecto de resistência. A quê? Pois bem, à chantagem moral segundo a qual devemos aceitar como inquestionável a “transparência” do audiovisual. Ao construir o seu filme através das imagens (e sons) que os seus jovens heróis obtêm através das respectivas câmaras, M. Night Shyamalan monta um verdadeiro jogo de espelhos que nos leva a reavaliar duas verdades muito antigas, hoje em dia frequentemente menosprezadas, ou tidas mesmo como escandalosas: primeiro, que representar o mundo é também uma forma de o pensar; segundo, que aquilo que vemos, avaliamos e interpretamos como evidente ou racional não passa de uma das infinitas possibilidades de figuração desse mesmo mundo (como diz a linguagem cinematográfica, quase sempre ignorada pelos dispositivos televisivos, há sempre um mais além da imagem que está “fora de campo”).
Contra a desvalorização corrente de qualquer forma de pensamento, importa acrescentar que, ao explorarem as fronteiras da complexa vida das imagens (e sons), autores como Shyamalan não estão a fazer “tese” para abrilhantar programas “culturais”. Nada disso. Há neste cinema um humor genuíno e radical que, no essencial, procura desafiar o espectador para o prazer de pensar — como sabemos, esse prazer faz medo.

Mark Zuckerberg no país do "like"

> De acordo com notícia publicada no New York Times, Mark Zuckerberg, co-fundador e director executivo do Facebook, admitiu publicamente que o botão "like" pode não ser suficiente para exprimir um ponto de vista sobre um determinado assunto. Exemplo? A "crise dos refugiados". Ah...

> Ainda bem que temos tão preciosa ajuda para conhecermos o mundo à nossa volta. Drasticamente limitados na capacidade de pensar, ficámos assim a saber que talvez, quem sabe, porventura, talvez haja outras maneiras de nos relacionarmos com os factos da vida... Ou seja, "é importante dar às pessoas mais opções para além do like" — Zuckerberg dixit.

> Mas como? Como superar a perturbação gerada nas nossas limitadas mentes por tão revolucionária descoberta? Como? Na sua vigilante magnitude, Zuckerberg já deixou uma pista. Ou seja: o Facebook está a avaliar a possibilidade de criar um botão que corresponda a... "dislike"!!!

> Nem tudo está perdido! É bom saber que estamos protegidos por uma mente superior a que só podemos exprimir um "like" vitalício.

> E se houver uma terceira maneira de nos relacionarmos com um determinado assunto? Quem sabe, uma quarta ou uma quinta?... Zuckerberg está vigilante e, a seu tempo, encontrará uma solução capaz de garantir que tenhamos sempre um botãozinho disponível, evitando usar essa coisa perniciosa, nada social, que é a inteligência.

terça-feira, setembro 15, 2015

Leonel Vieira contra Orson Welles

O MUNDO A SEUS PÉS (1941)
De que falamos quando falamos de O Pátio das Cantigas? Da "crítica"? Dos CTT? Da cerveja Sagres? Ou apenas dessa coisa bizarra que dá pelo nome de cinema? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (13 Setembro).

E reencontramos O Pátio das Cantigas. Valerá a pena dizer alguma coisa a propósito das considerações de Leonel Vieira sobre aquilo que ele chama a “crítica”? (Notícias Magazine, 6 Set.). Creio que sim, quanto mais não seja porque assistimos à renovação de um discurso de difamação pessoal que, no plano profissional, conheço há mais de 40 anos.
Quando um realizador de um filme que já teve meio milhão de espectadores aplica esse número como um argumento para denegrir o pensamento de “quatro ou cinco pessoas” (sic) que formularam juízos de valor negativos sobre o seu trabalho, o que se procura é apenas desvalorizar o acto de pensar. Na prática, o sistema mental de Leonel Vieira confere legitimidade a mim e a Jorge Leitão Ramos (somos os dois citados na pergunta que lhe foi colocada) para aplicar o mesmo modelo de silogismo. Poderia, por exemplo, referir os leitores que me vieram dizer: “Gostei muito do que escreveu — que péssimo filme!” Será que é esse tipo de chicana que ele tenta protagonizar e, sobretudo, generalizar?
Considerando eu que O Pátio das Cantigas é um descendente directo da banalidade de linguagens que, desde 1977, tem sido imposta à maioria dos cidadãos/espectadores através do domínio narrativo e financeiro das telenovelas, seria também importante esclarecer se 2 ou 3 milhões de espectadores medidos em cada noite são suficientes para relegar o meu pensamento para o reino da estupidez.
Como alguns outros cineastas portugueses, a Leonel Vieira não basta a boa performance comercial do seu trabalho. Aparentemente, só ficaria satisfeito se todos os que se exprimem no domínio público se regessem pela mesma atitude difamatória. Ninguém lhe perguntou, por exemplo, se a promoção de O Pátio das Cantigas através de vouchers familiares adquiridos nos CTT é uma proposta para resolver os complexos problemas de produção do cinema português. Como ninguém especulou sobre a justeza narrativa da monumental proliferação de garrafas de cerveja Sagres nas imagens do filme. Seria interessante, ou pertinente, afunilar as ideias nesse sentido?
Pessoas como Leonel Vieira parecem querer sugerir que a vitalidade social (do cinema ou de qualquer outra actividade criativa) resulta de fenómenos de absoluta homogeneidade de postura e pensamento. É uma pobre utopia, tipicamente televisiva. Eu vivo bem com o facto de O Pátio das Cantigas render nas bilheteiras — aliás, há décadas que digo e escrevo que a reconstrução de uma massa regular de espectadores nas salas deve ser uma prioridade do mercado.
Mas não escrevo na qualidade de técnico de contas. De acordo com o discurso de Leonel Vieira, um dia destes alguém vai querer obrigar-me a dizer que O Mundo a Seus Pés (1941), de Orson Welles, é um mau filme porque foi um apoteótico falhanço comercial. Desculpem, mas isso não... O que não me impede de defender o direito de Leonel Vieira fazer e refazer O Pátio das Cantigas como muito bem entender.

A tradição segundo Gary Clark Jr.

Nascido em 1984, sediado em Austin, Texas, o guitarrista, compositor e cantor Gary Clark Jr. é um caso muito sério de relação criativa com uma tradição plural: as suas raízes estão no território imenso do blues, mas não o impedem, bem pelo contrário, de colher inspiração no R&B, soul, rock & roll & etc., dando agora origem ao magnífico The Story of Sonny Boy Slim — para ver e ouvir, eis o teledisco de Church, dirigido por Danny Clinch.

Cartazes... quais cartazes?

Primeiro, foi a discussão em torno dos cartazes do PS. Em boa verdade, tal discussão mascarava a falta de criatividade que une na mesma sensaboria a existência visual dos partidos políticos.
Agora, circulando pelas nossas ruas, a poluição iconográfica assalta-nos de todos os lados, com cartazes que, além de parecerem noticiar tempos remotos do século passado, conseguem ser menos inventivos que as mais correntes campanhas dos hiper-mercados — como se todos eles tivessem sido feitos pela mesma agência internacional de "comunicação", promovendo o consumo para além de qualquer fronteira... Aliás, hoje em dia, perante a esmagadora maioria das "acções" que por aí andam, passou a ser claro que, salvo honrosas excepções, para políticos e publicitários "comunicar" é apenas o nome de um gadget.