terça-feira, agosto 25, 2015

Foi você que disse "economia real"?

1. A crise económico-financeira de 2008 e os seus muitos ecos são tudo menos simples ou transparentes. A respectiva percepção, difusa e ansiosa, pelo "cidadão comum" (lugar que, na ambivalência das simbologias agregadoras, todos ocupamos) é mesmo uma das grandes questões culturais e comunicacionais do tempo presente — vale a pena ler, a esse propósito, o leque de reflexões de Daniel Carrapa, começando por um de vários posts no seu blog 'A Barriga de um Arquitecto'.

2. Apesar disso — corrijo: precisamente por causa disso —, creio que seria pertinente questionar as linguagens correntes, nomeadamente no espaço televisivo e na Internet, que os analistas tendem a empregar. Veja-se este video de dois jornalistas do jornal Le Monde sobre as convulsões da bolsa chinesa. Respeito da complexidade do que está em jogo? Certamente. Rigor e seriedade? Não é isso que está em causa. De onde vem, então, a persistência (mais do que isso: o automatismo) da noção de "economia real"? A economia, perversa e predadora, que está a matar os nossos valores de civilização será, então, "irreal"?


Chine : pourquoi la bourse dévisse por lemondefr

3. Não é, entenda-se, um mero problema de perspectiva analítica que está em jogo. Um pouco como a utilização anédotica (a meu ver, em última instância, culturalmente irresponsável) da noção de "justiça" para avaliar os resultados dos jogos de futebol... A questão, nunca respondida pelos comentadores, é outra: que sistema legal torna "injusto", logo passível de emenda e punição, o facto de uma equipa jogar "mal" e ganhar um jogo? Como é que os comentadores se atrevem a proclamar que um resultado é "aceitável"? Não o sendo, sugerem que a equipa derrotada recorra aos tribunais? Em nome de que conceito social e moral põem a circular a ideia segundo a qual uma equipa (e os seus adeptos, hélas!) pode não aceitar um resultado?

4. Para além da miséria conceptual do anedotário futebolístico, os modelos correntes das reportagens televisivas, com os relatores inseridos (embedded) numa determinada "acção", são intensamente reveladores. Assim, o permanente e demagógico subtexto proclama que o "nosso" repórter está lá a transcrever os acontecimentos... Será preciso relembrar que, ao longo dos últimos 120 anos, quem tenha gasto cinco segundos de inteligência a reflectir sobre o que é uma câmara (filme, video, etc.), sabe que não existe transcrição audiovisual? Dito de outro modo: as imagens (e os sons!) não repetem o real, antes o ampliam e reconvertem, em última análise reconfigurando as nossas relações com tudo aquilo que representam.

5. O drama analítico da "economia real" é, por tudo isso, também um drama de linguagem. A maior parte dos protagonistas do espaço mediático não quer pensar a sua própria linguagem porque sabe que a persistência do valor de imanência do seu "naturalismo" constitui uma visceral forma de poder. Sobre quem? O espectador.