domingo, agosto 23, 2015

A versão televisiva de Mourinho

Como é que uma personalidade se torna "mediática"? Ou ainda: como é que a televisão tende a atribuir a outros as responsabilidades da sua própria linguagem? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (21 Agosto), com o título 'José Mourinho manipulador?'.

1. Há um curioso tique que sempre funcionou nos debates televisivos (admito que haja excepções, mas nunca encontrei uma). Assim, sempre que algum dos intervenientes refere que a avaliação do tema, seja ele qual for, não pode omitir a sua percepção através das linguagens televisivas (e dos meios de comunicação em geral), o moderador recorda que não é isso que está a ser discutido... e passa à frente.

2. Há outra maneira de dizer isto: a ideologia dominante em televisão não tolera que o próprio dispositivo televisivo seja questionado. Avaliando o espectador como distraído, ou apenas estúpido, tal ideologia sente-se ameaçada sempre que haja qualquer sugestão que desnaturalize a televisão — nada mais se passaria a não ser a “transcrição” passiva, imaculada e inocente do mundo à nossa volta.

3. Exemplo da perversa sugestão de significações que as linguagens televisivas podem envolver surgiu na transmissão britânica do jogo Manchester City – Chelsea (BenficaTV). Assim, todo o conceito da realização supunha a insistente apresentação (e representação) de José Mourinho como único protagonista. O Chelsea falhava um golo... vinha a imagem de Mourinho. O City construía uma jogada de perigo... imagem de Mourinho. Um jogador do Chelsea caía aleijado... imagem de Mourinho. O árbitro apitava um lance... imagem de Mourinho. O City marcava um golo... imagem de Mourinho!!! Não admira que Mourinho continue a ser vergonhosamente vilipendiado como “manipulador” dos meios de comunicação — de facto, o que linguagens deste teor fazem (para além da sua indesmentível competência técnica) é definir Mourinho como carrasco automático de tudo o que possa acontecer num jogo do Chelsea. Fiquei até com pena de Manuel Pellegrini, a ponto de pensar que algum resfriado tinha obrigado o treinador do City a ficar a ver o jogo em casa... Do lado de cá, convictos na sua felicidade semiológica, os comentadores iam dissertando sobre tudo e mais alguma coisa.