terça-feira, agosto 25, 2015

À chegada das Mil e uma Noites

Miguel Gomes
Chega, finalmente, às salas, As Mil e uma Noites, de Miguel Gomes: uma aventura realista portuguesa elaborada através de uma aposta máxima na fantasia — este texto foi publicado no Diário de Notícias (20 Agosto), com o título 'Quando o cinema fala do nosso aqui e agora'.

O primeiro volume de As Mil e uma Noites, intitulado O Inquieto, estará nas salas a partir de quinta-feira (dia 27). O segundo (O Desolado) e o terceiro (O Encantado) chegarão a 24 de Setembro e 1 de Outubro, respectivamente. Ao surgir esta primeira parte, talvez seja inevitável dizer que o filme de Miguel Gomes se oferece ao seu espectador enredado numa teia simbólica sem um fim à vista. Aliás, em rigor: sem procurar “solução” para a sua deriva. No sentido mais desconcertante, e também mais fascinante, que tal opção pode envolver.
Que se passa, então? É preciso conhecer o primeiro filme para compreender o segundo? E o segundo para decifrar o terceiro?... E que vai acontecer aos espectadores que vejam os três de forma não linear?
São interrogações que não encontrarão nenhuma resposta de senso comum, quanto mais não seja porque As Mil e uma Noites é um filme feito contra o senso comum, quer dizer, contra os mecanismos que trabalham para criar uma pueril ilusão comunitária. Quais? As chamadas redes “sociais” em que, tantas vezes, deixa de haver indivíduos para apenas existirem links e likes. E também, claro, o império da telenovela, essa matriz narrativa que impôs a sua estética ditatorial há mais de três décadas.
Num certo sentido, As Mil e uma Noites é uma novela ou um folhetim (e escusado será dizer que a sua divisão em capítulos envolve tal sugestão). Mas é-o no sentido em que a acumulação de episódios gera, não uma normalização de temas e personagens, antes a sua frondosa diversificação, num processo em que a seriedade da narrativa é sempre cúmplice de um contagiante humor.
O próprio Miguel Gomes encena-se neste primeiro volume como um cineasta em fuga. Não exactamente da realidade, mas da própria equipa. É, obviamente, um intermezzo paródico que, em qualquer caso, envolve uma sugestão pedagógica: não se trata apenas de mudar de histórias, mas de arriscar mudar as maneiras de contar histórias.
Crista Alfaiate
Daí a convocação das Mil e uma Noites e da sua personagem emblemática, Xerazade (Crista Alfaiate) — ela ressurge, afinal, como aquela em que o desejo de contar histórias é tão só uma variação da vontade de sobrevivência. Daí também o paradoxo maior do trabalho de Miguel Gomes: por um lado, tudo se organiza em nome da fantasia inerente à colagem festiva das mais contrastadas peripécias; por outro lado, desde a crueza da situação dos desempregados até ao primeiro banho do ano, passando por um exterminador de vespas que atacam as abelhas, a fantasia não rasura, antes parece atrair, as marcas de um país que reconhecemos como o território, real ou imaginado, do nosso aqui e agora.
É um facto: sentimo-nos algo perdidos no meio destas Mil e uma Noites. Mas se queremos narrativas certas, formatadas, empenhadas em promover uma linguagem de intermináveis estereótipos, será melhor ligarmos o televisor por volta das nove e meia da noite... Aqui, somos convocados para uma perdição que implica a discussão de todos os padrões narrativos — como filmar este país que é o nosso? E também uma reavaliação do próprio prazer de ser espectador — como sermos dignos da loucura branda de Xerazade?