sexta-feira, junho 26, 2015

A Europa segundo Rossellini

ROMA, CIDADE ABERTA (1945)
A chamada "Trilogia da Guerra", assinada por Roberto Rossellini, já está disponível em DVD — este texto foi publicado no Diário de Notícias (21 Junho), com o título 'Repensar a Europa através do cinema de Rossellini'.

Num mundo acelerado, marcado pela exaltação do efémero e do fait divers, a questão da preservação da memória cinematográfica é mais actual do que nunca. Por alguma razão, a secção de clássicos do Festival de Cannes — no essencial, dedicada à apresentação de cópias restauradas de filmes historicamente significativos — foi-se transformando num espaço privilegiado do maior certame cinematográfico do mundo.
De facto, importa relembrar que a celebração dos filmes mais ou menos “antigos” nada tem a ver com o simplismo pitoresco com que tantas vezes o cinema surge abordado no espaço televisivo. Bem pelo contrário, trata-se de dar a ver tais filmes, não como objectos abstractos de um museu de curiosidades anedóticas, antes através da sua inserção num contexto particular, por certo essencial para entendermos as suas propostas temáticas e também as suas opções narrativas.
Recentemente, no espaço da exibição cinematográfica, houve dois “ciclos” especialmente importantes para nos ajudar a (re)pensar as complexas heranças da Segunda Guerra Mundial. Num deles pudemos ver O Último dos Injustos, de Claude Lanzmann, obra na senda do seu monumental Shoah (1985), a par, por exemplo, de A Noite Cairá, de Andre Singer, recuperando imagens dos campos de concentração que, no labirinto das opções diplomáticas do pós-guerra, tinham ficado por divulgar. Noutro, em cópias impecavelmente restauradas, revisitámos três títulos essenciais de Roberto Rossellini: Roma, Cidade Aberta (1945), Paisà – Libertação (1946) e Alemanha, Ano Zero (1948). Agora lançados em DVD, com a designação consagrada de “Trilogia da Guerra de Roberto Rossellini”, são filmes que nos ajudam a problematizar a herança da guerra e, no limite, a repensar as convulsões da história europeia vivida a partir das gerações dos nossos pais e avós.
Dir-se-ia que Rossellini antecipou algumas das questões fulcrais do nosso presente audiovisual. Roma, Cidade Aberta, centrado numa inesquecível composição de Anna Magnani, é o título mais célebre: nele encontramos as raízes do neo-realismo cinematográfico, numa crónica de guerra que se transfigura em parábola moral. Paisà explora, em seis episódios, os relatos dos combates, de alguma maneira antecipando as linhas de força de muitos filmes de guerra que se iriam produzir até finais da década de 50. Enfim, Alemanha, Ano Zero segue o pequeno Edmund (Edmund Moeschke) na sua saga para encontrar alimentos para a família, tendo como cenário a devastada cidade de Berlim.
Neste caso, o modo como Rossellini filma Berlim envolve uma lição de exemplar actualidade crítica. Assim, ao contrário do que procura fazer crer a linguagem televisiva dominante, colocar uma câmara em cenários reais não envolve nenhuma garantia de incontestável realismo: a verdade existencial de Alemanha, Ano Zero nasce de uma dinâmica que o faz ser, de uma só vez, um documentário e uma ficção sobre Berlim do pós-guerra.