quinta-feira, abril 30, 2015

"House of Cards" — crime & política

House of Cards reflecte muito da nossa descrença na política e nos políticos, funcionando, nessa medida, como um espelho perturbante — este texto foi publicado no Diário de Notícias (26 Abril), com o título 'Retrato íntimo do político como assassino'.

Em Fevereiro de 2014, no momento da estreia da segunda temporada de House of Cards (as duas primeiras temporadas passaram a estar disponíveis no mercado português do DVD), Beau Willimon, criador e argumentista da série, deu uma entrevista a Chris Harvey, do jornal britânico The Guardian, condensando de modo radical os temas em jogo, em particular na ascensão da personagem de Frank Underwood (Kevin Spacey) nos bastidores de Washington. Dizia ele, sobre a ânsia de poder de Underwood: “Todos os políticos são assassinos ou têm de possuir a vontade de assassinar. O que encontramos aqui é uma dramatização dessa coisa que lhes permite fazer o indizível, seja facilitar a morte de um congressista ou mandar 100 mil soldados para a guerra”.
São palavras que metem medo. Por mais cândida que seja a nossa visão da minoria dos seres humanos que governam os destinos da maioria, algo em nós questiona até onde podemos generalizar as palavras de Willimon. Até porque recorda também que os efeitos da acção dos políticos transcende, e muito, a relação com a instituição militar: “As pessoas podem morrer doutras maneiras. Podem morrer de desespero. A pobreza continuada pode levar-nos ao cemitério. Feitas as contas, a política é uma indústria de vida ou morte”.
Não tenhamos ilusões. House of Cards é, de facto, um primoroso feito televisivo, envolvendo talentos do cinema como David Fincher (produtor executivo e realizador dos dois primeiros episódios). Em qualquer caso, o seu impacto global não pode ser desligado de um sentimento de descrença no trabalho dos políticos que, sabêmo-lo bem, circula muito para além de qualquer fronteira geográfica ou cultural. Aliás, convém lembrar que House of Cards transpõe para o contexto americano a série homónima da BBC, criada em 1990 por Andrew Davies e Michael Dobbs, a partir de um romance de Dobbs (colaborador e conselheiro de Margaret Thatcher).
Provavelmente, e para além da desgastada confiança com que contemplamos muitas personalidades da cena política, um dos factores decisivos para a nossa projecção emocional nas personagens de Frank e sua mulher Claire Underwood (Robin Wright) é de natureza muito íntima. Mais do que íntima: pulsional. Em boa verdade, nada do que Frank ou Claire fazem pode ser desligado de uma procura obstinada e, à sua maneira, aristocrática das mais secretas formas de prazer.
Será preciso acrescentar que tudo isso confere a House of Cards uma dimensão visceralmente “shakespeariana”? E não apenas porque Macbeth e Ricardo III são, aliás, peças frequentemente citadas como inspiração da série original. Sobretudo porque contemplamos aqui a tragédia mais radical do exercício do poder político: qualquer forma de representação do colectivo através de um quadro de dirigentes implica uma secundarização, prática e simbólica, dos representados. Tal não bastará para deitarmos fora a democracia com a água da governação, mas convenhamos que somos impelidos a questionar muitas das nossas tradicionais certezas políticas. Até porque, sejamos honestos, não conseguimos não gostar de Frank Underwood.

quarta-feira, abril 29, 2015

Soft Machine, 1974

Figuras essenciais da cena musical de Canterbury, cruzando rock progressivo, psicadelismo e experimentalismos vários, os Soft Machine há muito fundiram história e mitologia. E se é verdade que a sua discografia oficial encerra em 1981, com Land of Cockayne, não é menos verdade que as edições mais ou menos oficiais nunca deixaram de pontuar as décadas seguintes. Switzerland 1974 é, justamente, um registo que andava "perdido": um concerto realizado a 4 de Julho de 1974, no Festival de Montreux, confirmando a reinvenção jazzística da banda, numa altura em que Robert Wyatt já tinha abandonado, destacando-se as presenças emblemáticas do teclista Mike Ratledge e do guitarrista Allan Holdsworth — este é o trailer de apresentação de tão épica performance.

Homens, mulheres e robots (1/2)

Alex Garland estreia-se na realização com Ex Machina, um filme que relança os temas e assombramentos das histórias de seres humanos e robots — este texto foi publicado no Diário de Notícias (25 Abril), com o título 'Aventuras de uma mulher-robot num mundo de homens'.

Será que existe uma tradição cinematográfica centrada nas personagens de robots? A pergunta ressurge a propósito da estreia de Ex Machina, filme que marca a estreia na realização de Alex Garland, o autor do romance A Praia (filmado, no ano 2000, por Danny Boyle, com Leonardo DiCaprio no papel principal).
Ex Machina é, acima de tudo, um invulgar exercício cinematográfico — e tanto mais quanto sabe usar os mais modernos efeitos especiais de acordo com uma lógica bem diferente das correntes aventuras de super-heróis, visualmente menos agressiva e, no plano simbólico, muito mais subtil. Em todo o caso, não se pode dizer que o tema da convivência de seres humanos e robots seja uma novidade — podemos mesmo considerar que nele encontramos uma variante do confronto entre homens e máquinas que, em boa verdade, pontua toda a história do cinema.
Será preciso recuar aos tempos heróicos do cinema mudo e relembrar o exemplo fascinante da fábula futurista Metropolis (1927), de Fritz Lang, em que a personagem de Maria, interpretada pela lendária Brigitte Helm, era “duplicada” em forma de robot? E que dizer do insólito Gort, no filme O Dia em que a Terra Parou (1951), de Robert Wise, delicioso exemplo à beira do kitsch da ficção científica da década de 50 e dos seus cenários apocalípticos? Isto sem esquecermos, por exemplo, a personagem de Ash (Ian Holm) cujo corpo de fios e circuitos se revelava dramaticamente em Alien – O Oitavo Passageiro (1979), de Ridley Scott. Ou o imponente Arnold Schwarzenegger em O Exterminador Implacável I e II, ambos dirigidos por James Cameron, respectivamente em 1984 e 1991. Ou ainda esse robot infantil, frágil e comovente interpretado por Haley Joel Osment em A. I. – Inteligência Artificial (2001), de Steven Spielberg.

terça-feira, abril 28, 2015

Jon Stewart e o poder

Jon Stewart vai deixar The Daily Show e vamos, por certo, sentir a falta da sua capacidade de desmontar as vulgaridades e demagogias de muita informação televisiva — este texto foi publicado no Diário de Notícias (24 Abril).

Como é sabido, Jon Stewart decidiu abandonar The Daily Show (tendo divulgado esta semana a data do seu derradeiro programa: 6 de Agosto). Há dias, numa entrevista ao jornal britânico The Guardian, depois de reconhecer que já não fazia o trabalho com a mesma “satisfação”, não deixou de referir que o fim das suas tarefas o vai libertar da obrigação de ver todos os dias os canais informativos americanos, primeiríssimo alvo do seu contundente humor (em particular a Fox News), assim deixando de executar o trabalho de “mineiro de excrementos” (numa tradução voluntariamente aligeirada).
Dá que pensar a verve humorística de Stewart. A sua incessante desmontagem das retóricas informativas — e das alianças, assumidas ou tácitas, da classe política com o respectivo funcionamento — ajudou-nos, ao longo dos anos, a compreender a mais escandalosa das verdades jornalísticas. A saber: fazer notícias, difundir informação não é uma “transcrição” da realidade, mas sim a construção de um dispositivo de conhecimento em que, de um modo ou de outro, se elabora uma visão do mundo. Este é um ponto tanto mais importante quanto, hoje em dia, há muitas formas (e formatos) de informação que se apresentam como mecanismos de pura “transparência”, sancionados pelo simples facto de as câmaras terem ido para a rua. Mais do que nunca, importa lembrar que não se trata de bloquear a discussão do poder televisivo de informar na oposição entre “verdade” e “mentira”. Trata-se, isso sim, de compreender como esse poder define o quotidiano e, em muitos aspectos, o faz funcionar.

segunda-feira, abril 27, 2015

San Fermin: experimental, ma non troppo

Sobre os San Fermin, vale a pena fazer uma breve revisão da matéria dada:
— Auto-definindo-se como "pastiche de post-rock, chamber pop e composição clássica contemporânea", estrearam-se com o álbum homónimo, liderados por Ellis Ludwig-Leone, de Brooklyn, discípulo de Nico Muhly;
— foram uma das grandes revelações de 2013;
— começaram este ano a revelar temas do seu segundo registo, Jackrabbit, além do mais apoiados numa sofisticada iconografia animal.
Pois bem, Jackrabbit aí está [para escutar aqui em baixo, na íntegra], com chancela da Downtown Records, superando de forma brilhante a "maldição" do segundo álbum: são sons que podemos classificar como "alternativos", "barrocos" e "sinfónicos". Mas são, sobretudo, composições que conservam uma paixão pelo modelo-canção, sem que isso as impeça de possuir o intimismo de uma antiga música de câmara, a par de um sereníssimo gosto experimental. Na primeira estrofe de Philosopher, a voz cristalina de Charlene Kaye diz assim:

When I grow up, I think that I can be an actress
I'll let the camera find the truth
In these little eyes
And I could feel what it was like to be electric
And let the people hear me scream and shout
With this little mouth


>>> Site oficial de San Fermin.

No país do Capitão Falcão

É bem verdade que, globalmente, a relação do cinema português com a história de Portugal parece ser algo sempre em défice [nota em baixo, publicada no Diário de Notícias]. Ou porque há filmes que investem essa história a partir de um primarismo simbólico, de vulgar sobre-significação; ou porque o fazem com uma alegria pueril em que qualquer componente histórica só é imaginável num plano banalmente caricatural. Capitão Falcão, de João Leitão, é um objecto em que tais caminhos parecem convergir, consagrando um modelo de humor que se impôs através da conjugação de factores paradoxais: combina a fragmentação do YouTube com uma espécie de irrisão festiva que, em todo o caso, procura algum efeito historicista — são sinais de uma cultura "juvenil" e "televisiva" que, há que reconhecê-lo, se tornou social e mediaticamente dominante.

* * * * *

Revisitar as memórias do Estado Novo em registo satírico? Por que não? O problema não é esse e não adianta penalizar Capitão Falcão por aquilo que não tem para dar: uma perspectiva histórica (seja ela qual for) que tente olhar para a ditadura salazarista como algo mais do que um buraco negro sem gente viva lá dentro. Infelizmente, o projecto esgota-se na criação de uma personagem — um “super-herói” ao serviço de Salazar — que tem a espessura e a duração de um clip do YouTube. É pena, quanto mais não seja porque se sente que estamos perante uma produção executada com know how técnico e também porque não deixa de ser penoso ver actores com o talento de Gonçalo Waddington a tentarem sustentar um universo à deriva. Reabre-se, assim, a reflexão sobre as diferenças entre inventar “bonecos” mais ou menos caricaturais e construir uma narrativa cinematográfica.

domingo, abril 26, 2015

Cinematógrafo faz 120 anos (2/2)

Uma exposição em Paris sobre os irmãos Lumière serve de pretexto para uma evocação dos tempos fundadores do cinematógrafo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (20 Abril), com o título 'Quando o cinema era uma invenção sem futuro'.

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A exposição permite conhecer os 1422 filmes que constituem o património cinematográfico dos Lumière, a par de uma minuciosa reconstituição, da responsabilidade do decorador Jacques Grange, do Salon Indien do Grand Café, onde se realizou a primeira sessão. A contextualização histórica da saga dos Lumière envolve também um regresso à figura emblemática do seu pai, Antoine Lumière (1840-1911), pintor e fotógrafo, decisivo inspirador dos filhos. E não apenas no plano estético, também no desenvolvimento das técnicas fotográficas, em particular na criação de um sistema de placas (a partir das chamadas “placas secas” de gelatina) que tornava a obtenção e revelação de fotografias muito mais acessível — uma célebre imagem de 1888, registada por Louis, com o irmão Auguste a pular sobre uma cadeira, serviu de símbolo promocional do novo sistema.
O sucesso desses materiais foi de tal ordem que, em 1892, a Fábrica Lumière se tornou a maior empresa europeia de placas fotográficas, apenas superada a nível mundial pela Kodak (a empresa manteria a sua actividade, com o nome Lumière, até 1982, altura em que foi integrada pela Ilford France).
São muitos e fascinantes os capítulos que, ao longo do séc. XIX, conduziram à invenção das primeiras máquinas de filmar. A começar pelas experiências de Étienne-Jules Marey e Eadweard Muybridge que, com as suas cronofotografias, anteciparam as bases técnicas do movimento cinematográfico. Como se escreve nas notas da exposição do Grand Palais, a “espingarda fotográfica” de Marey, concebida em 1882, permitiu-lhe registar, a partir de um mesmo ponto de vista, 12 imagens num segundo, dando a ver de modo radicalmente novo os movimentos de seres humanos e animais.
No séc. XXI, com a generalização do digital, desde as fases de produção dos filmes até à sua projecção nas salas, a herança dos Lumière adquire uma inusitada dimensão simbólica, porventura contribuindo para gerar novas leituras do cinema, da sua relação com as matérias que regista e também das suas componentes sociais e mitológicas. Para já, podemos supor que as celebrações em torno da sua herança vão encontrar algum eco na cada vez mais importante programação de clássicos do Festival de Cannes — até porque Thierry Frémaux acumula as suas funções no Instituto Lumière com a de delegado geral do certame da Côte d’Azur.

sábado, abril 25, 2015

Richard Corliss (1944 - 2015)

Personalidade emblemática da crítica de cinema nos EUA, foi durante mais de três décadas um nome ligado à revista Time: Richard Corliss faleceu em Nova Iorque, a 23 de Abril, vítima de ataque cardíaco — contava 71 anos.
O seu lema era "tudo merece ser visto". Na Time, ao longo de 35 anos, e em várias outras publicações, incluindo a Film Comment (onde desempenhou a função de editor entre 1970 e 1990), Corliss distinguiu-se sempre pela agilidade e inteligência com que deambulava entre géneros e autores, espectáculos de massas e filmes mais ou menos esotéricos. Publicou vários livros, incluindo monografias sobre Greta Garbo e o filme Lolita (1962), de Stanley Kubrick, respectivamente em 1974 e 2008, além de um ensaio sobre argumentistas (Talking Pictures: Screenwriters in the American Cinema, 1975) e uma evocação das figuras maternas na história de Hollywood (Mom in the Movies, 2014). A sua derradeira crítica publicada na Time tem data de 15 de Abril e é sobre o filme Child 44.

>>> Obituário na Time + New York Times.
>>> "Existe um futuro para a crítica?" — Richard Corliss na Film Comment (Março/Abril 1990).
>>> Steven Spielberg (E.T. + Poltergeist), por Richard Corliss (Time, 31 Maio 1982).

Batman, Superman, trailers & etc.

De que falamos quando falamos da promoção dos filmes? Ou para que servem os trailers? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (19 Abril), com o título 'Batman, Superman e a morte do gosto cinéfilo'.

O leitor terá lido as notícias sobre a divulgação prematura do trailer de Batman v. Superman: Dawn of Justice, com Ben Affleck e Henry Cavill. É mais um episódio de pirataria audiovisual na Internet que, obviamente, veio abalar os planos de lançamento do estúdio produtor, Warner Bros. Além dos muitos meses que faltam para a estreia (em Março de 2016), o material divulgado, resultante de um precário registo de telemóvel, era de fraquíssima qualidade técnica. Tentando minimizar os seus efeitos negativos, a Warner decidiu divulgar oficialmente o trailer.


Entre as reacções que o episódio desencadeou na imprensa cinematográfica dos EUA, leio um curioso texto de Graeme McMillan (The Hollywood Reporter, 17 Abril), reflectindo sobre as consequências na audiência de fãs dos super-heróis. O articulista sublinha, em particular, o facto de a escolha de Affleck para a personagem de Batman continuar a ser um assunto polémico nessa “base de apoio” mais ou menos identificada pelo alarido das chamadas redes sociais...
Não tenho dúvidas que McMillan toca em problemas que atormentam as secções de contabilidade de qualquer estúdio. Em todo o caso, a análise apresentada é cúmplice de um sintoma sobre o qual vale a pena reflectir: a dinâmica da indústria passou a depender de um imaginário típico de clube de fãs. A certa altura, o artigo reconhece mesmo que os trailers não passam de “truques” para convencer o espectador da ilustração de um conceito pré-formatado. McMillan define a mensagem essencial de um trailer através desta frase pueril: “Hey, este filme é exactamente aquilo que você quer ver!”.
Como lidar com isto? Não se trata de sugerir que a vida industrial e comercial dos filmes possa dispensar os equilíbrios de uma verdadeira estratégia económico-financeira. Aliás, a pergunta que importa fazer tem mesmo a ver com a importância de tal estratégia: será possível manter vivo um mercado de cinema e televisão (nos EUA, em Portugal ou em qualquer outro país) unicamente a partir da repetição de produções que implicam investimentos astronómicos e que, por isso mesmo, correm o risco de gerar sistemáticos factores de ruptura em todas as frentes do mercado?
Se os filmes são pensados apenas em função daquilo “que você quer ver”, isso implica, em última análise, a agonia mortal do gosto cinéfilo. Bem sabemos que a estupidez corrente gosta de proclamar que a defesa do gosto cinéfilo é apenas a consagração do gosto da “critica”. Será preciso relembrar que os críticos não são um rebanho e que, bem pelo contrário, no seu espaço de intervenção há muitas e insolúveis clivagens?
Acontece que a cinefilia se constrói, não a partir das promoções dos filmes, mas de uma abertura constante à sua pluralidade (histórica, temática, estética, etc.). O cinéfilo não procura nos trailers aquilo “que quer ver”. E sente-se gratificado por encontrar um trailer que lhe diga: “Hey, este filme quer oferecer-lhe aquilo que nunca viu!”.

quinta-feira, abril 23, 2015

Kurt Cobain à flor da pele

Eis um filme literalmente à flor da pele: Kurt Cobain: Montage of Heck, de Brett Morgen (em período limitado de exibição em várias salas), convoca-nos para uma viagem às memórias trágicas de Kurt Cobain (1967-1994), a partir de uma impressionante colecção de materiais de arquivo — filmes de super 8, cassetes com montagens sonoras (como aquela que dá o título ao filme), desenhos, páginas de diário, recortes de imprensa, etc.
Pode, até certo ponto, ser definido como um clássico filme biográfico. Ao mesmo tempo, porém, face à profusão de elementos que tem para trabalhar, Morgen sabe fazer-nos sentir que Cobain, com e sem os Nirvana, foi uma personagem paradoxal, e paradoxalmente assombrada, da sua própria angústia — um ser à deriva, embora consciente da sua errância, procurando, afinal, conquistar o poder de escrever/cantar a irredutibilidade da sua própria história.
Concebido a partir dos materiais cedidos por Courtney Love, com produção executiva de Frances Bean Cobain (filha de Kurt e Courtney, nascida em 1992), Kurt Cobain: Montage of Heck consegue essa proeza rara de lidar com um ser a que se colou uma poderosa mitologia, retirando-lhe as redundâncias, devolvendo-o à terra — é um puro e precioso documentário que nos ensina a compreender que documentar não é "reproduzir" uma história já adquirida, mas sim consolidar, pacientemente, com rigor e amor, a sua possibilidade.

7 x Oliveira (3)

Benilde ou a Virgem Mãe (1975)
[ Douro, Faina Fluvial ]  [ Acto da Primavera ]

Glória de Matos e Jacinto Ramos enclausurados na geometria rude e austera de Benilde ou a Virgem Mãe, por certo um dos mais fulgurantes e também mais esquecidos filmes de Manoel de Oliveira — adaptando a peça homónima de José Régio, o cineasta tocava no cerne de uma fantasia onírica cujas raízes são, hélas!, intensamente sexuais. Rodado nos estúdios da Tóbis, é um dos derradeiros exemplos daquilo que era (ou poderia ser) uma das bases de um cinema realmente pensado também na sua dimensão industrial. Quase ninguém o viu porque, por uma ironia macabra, digna de uma comédia do próprio Oliveira, estreou em Lisboa, na sala do Apolo 70, no dia 21 de Novembro de 1975... Hoje em dia, muitos respeitáveis cidadãos não saberão sequer identificar que, quatro dias mais tarde, houve um "25 de Novembro" político-militar, nem mesmo que existiu um cinema Apolo 70 — em todo o caso, vivemos num país em que toda a gente tem opiniões sobre Oliveira...

Schubert por David Fray

David Fray fotografado por Paolo Roversi
Um grande acontecimento schubertiano — o pianista francês David Fray tinha já um notável registo dos Improvisos de Schubert, lançado em 2009, pela Virgin; agora, com chancela da Erato, Fray apresenta Fantaisie, tendo como peça nuclear a Sonata a que o editor deu, precisamente, a designação de "Fantasia". Uma Melodia Húngara e duas peças para piano a quatro mãos — com Jacques Rouvier, que foi professor de Fray — completam esta notável gravação, rica de modulações que resistem a qualquer aceleração mais ou menos "virtuosa". Para se ter um pouco a noção das nuances dramáticas da performance de Fray, eis um video sobre o álbum, enriquecido por algumas ponderadas observações do pianista.

quarta-feira, abril 22, 2015

Cinematógrafo faz 120 anos (1/2)

Auguste e Louis Lumière
Uma exposição em Paris sobre os irmãos Lumière serve de pretexto para uma evocação dos tempos fundadores do cinematógrafo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (20 Abril), com o título 'Quando o cinema era uma invenção sem futuro'.

Em França, no mês de Junho, graças a uma iniciativa conjunta do Instituto Lumière e da France Télévisions, será lançado em DVD e Blu-ray um conjunto de filmes restaurados com assinatura dos irmãos Lumière. A notícia envolve tanto de celebração como de ironia: a obra dos pioneiros Auguste (1862-1954) e Louis Lumière (1864-1948), chega, assim, aos sofisticados suportes da era digital.
E por mais que admiremos o seu fulgor criativo, não parece possível que, ao promoverem a primeira sessão pública em que se projectaram filmes — a 28 de Dezembro de 1895, no Grand Café do Boulevard des Capucines, em Paris —, os Lumière tenham imaginado que pudéssemos aceder à sua obra, em casa, através de um simples (?) disco de 12 cm de diâmetro.
Os 120 anos dessa primeira apresentação pública do cinema estão a ser apaixonadamente assinalados em França. A exposição “Lumière! O Cinema Inventado”, patente no Grand Palais até 14 de Junho, constitui o evento nuclear das comemorações, e tanto mais quanto o seu projecto ultrapassa qualquer visão meramente pitoresca dos inventores de uma máquina em que, afinal, não depositavam grandes esperanças.
Foi o próprio Louis que, ao contratar Félix Mesguish, um dos primeiros operadores que, com as suas câmaras, registou actualidades em todo o mundo, proferiu essa célebre e desencantada frase — “O cinema é uma invenção sem futuro” — que, por sarcástica perversidade, se transformou em emblema da cinefilia (Jean-Luc Godard integrou-a mesmo, em 1963, numa cena de O Desprezo, em versão italiana: Il cinema è un' invenzione senza avvenire).
Na prática, o cepticismo dos Lumière não os impediu, bem pelo contrário, de construírem um universo de produção e difusão muito para além dos dez filmezinhos (cada um deles com cerca de 45 segundos) que projectaram aos atónitos espectadores desse dia lendário de 1895. Vale a pena recordar que o primeiro desses filmes mostrava, justamente, a saída dos trabalhadores da Fábrica Lumière, em Lyon, local onde hoje está instalado o Instituto Lumière.


Num texto de apresentação da exposição do Grand Palais, os respectivos comissários, Thierry Frémaux (director geral do Instituto Lumière) e Jacques Gerber (crítico de cinema), sublinham a curiosa circularidade da história. De facto, foi também no Grand Palais, no âmbito da Exposição Universal de 1900, que as proezas dos Lumière encontraram uma decisiva plataforma de divulgação. Mais do que isso: foi a partir daí que as suas múltiplas actividades no campo das imagens — incluindo a invenção da fotografia a cores, através dos chamados “autochromes”, em 1903 — começaram a ser conhecidas e emuladas, afinal conduzindo à espectacular consolidação do cinema como a maior indústria cultural do século XX.

Ultron, Ultron, Ultron...

1. Convenhamos que deixou de ser uma mera rotina. Tornou-se um fenómeno que merece análise jornalística. Porquê? Porque, pelos vistos, os jornalistas são os primeiros (os únicos?...) visados pelo marketing do filme Os Vingadores: A Era de Ultron.

2. Que acontece? Há meses, muitos meses, sou um dos que recebe pendularmente mails sobre esse filme. Informações? Nem tanto: a 3 de Março, enviaram-me um novo poster do Capitão América... a 16 de Março, um novo poster de Ultron... a 1 de Abril, uma descrição do Homem de Ferro e de Hulk... Hoje mesmo, 22 de Abril, aparece-me Scarlett Johansson com ar ameaçador a avisar que falta 1 semana...

3. As informações escritas (quando as há) são de uma pobreza franciscana, parecendo considerar que os jornalistas — incluindo essas perigosas personagens que são os críticos de cinema — têm idade mental de três anos (talvez dois e meio). Exemplo: O impetuoso, mas brilhante bilionário Tony Stark regressa ainda a lutar contra as consequências emocionais da Batalha de Nova Iorque, que aconteceu em "Os Vingadores". Tony agora financia o seu “dream-team” de super-heróis, num esforço contínuo para proteger o planeta das forças do mal que sabe que andam por aí. Stark carrega o peso do mundo nos seus ombros, o que o leva a juntar-se...

4. Será preciso dizer que o que está em causa não é o facto de este (ou qualquer outro filme) poder ser "bom" ou "mau"? O que está em causa é de outra natureza. É que, pelos vistos, as ideias dominantes de marketing se esgotam na noção de que quanto mais mails com muitos bonecos se enviarem aos jornalistas, mais ecos se produzirão, em especial na Net... Não duvido que a estratégia possa gerar resultados palpáveis, mas a proliferação de sites, blogs, plataformas (ou o que lhes quiserem chamar) que se limitam a reproduzir os materiais promocionais dos filmes não tem nada a ver com jornalismo.

5. O marketing não pode ser unilateralmente responsabilizado pela degradação de muitos padrões jornalísticos (mesmo quando tais padrões parecem poder adequar-se aos seus objectivos). Em todo o caso, seria interessante reflectir um pouco sobre as potencialidades das formas de difundir/vender filmes — creio que o marketing se enriqueceria com isso, e o jornalismo não ficaria indiferente. Assim, lamento muito, mas as "consequências emocionais da Batalha de Nova Iorque" é pouco.

Ryan Adams no Carnegie Hall

Um dos grandes registos de concertos dos últimos tempos: o álbum Live at Carnegie Hall contém nada mais nada menos que 42 faixas através das quais Ryan Adams faz o périplo de uma obra fascinante, ancorada na tradição folk, mas com derivações tão singulares que o conduzem, com naturalidade, da serenidade da balada à crueza do punk. O registo diz respeito a duas noites (15 e 17 de Novembro de 2014), incluindo alguns temas do álbum homónimo, lançado em Setembro do ano passado — este é o audio de Friends; em baixo, recorda-se Gimme Something Good (no Late Show de David Letterman).



Sob o signo de Bergman

Eis uma boa revelação da cinematografia austríaca, intimista e "psicológica", a que não é estranha a herança de Ingmar Bergman: este texto foi publicado no Diário de Notícias (16 de Abril).

Será que existe, não apenas uma memória viva, mas também uma herança activa da obra fascinante de Ingmar Bergman (1918-2007)? Vendo um filme como Outubro Novembro, do austríaco Götz Spielmann, apetece responder que sim.
Não se trata de fazer qualquer aproximação valorativa que esqueça a imensidão irrepetível da obra do mestre sueco. Acontece que Spielmann, também responsável pelo argumento, parece tocado por uma obsessão dramática e filosófica, visceralmente bergmaniana. A saber: as relações humanas tendem a desenvolver-se para além da bondade programada pelas instituições (a começar, claro, pela instituição familiar), expondo uma incompatibilidade dos seres que, por vezes, se cruza com as mais radicais manifestações de amor.
Outubro Novembro envolve o confronto de duas irmãs que se reencontram devido ao precário estado de saúde do pai: uma delas (Ursula Strauss) vive numa região rural com o marido, o filho e o próprio pai; a outra (Nora von Waldstätten) é uma actriz que chega de visita. O mais fácil seria transformar o seu frente a frente numa oposição moralista entre a “cidade” e o “campo”, solução que Spielmann sempre evita, mesmo quando os seus efeitos preconceituosos podem condicionar as relações entre as personagens.
Estamos, afinal, perante um processo de mútua descoberta, em que não poucas vezes cada uma das irmãs resiste a reconhecer aquilo que a outra nela evoca ou desencadeia. E mesmo se o termo não está muito na moda, importa dizer que Outubro Novembro corresponde a um modelo de cinema “psicológico” capaz de contrariar os valores correntes que reduziram as personagens a derivações de formatos televisivos ou, no pólo oposto, a marionetas dos filmes ditos de “efeitos especiais”. Afinal de contas, vale a pena lembrar que a Áustria também tem cinema.

terça-feira, abril 21, 2015

'Piece of Kate'

O portfolio chama-se 'Piece of Kate' e obedece à ideia segundo a qual também a Kate Moss se pode aplicar o princípio segundo o qual o todo excede a soma das partes. Ou ainda: combinando fragmentação e erotismo, perversidade e pudor, Craig McDean fotografou Kate Moss como um puzzle, por assim dizer reinventando a unidade imaginária do corpo — as imagens estão na revista W e provam que, ao aproximarmo-nos da pele do outro, cada detalhe abre para uma nova galáxia.

Ver + ouvir:
Sufjan Stevens, Should Have Known Better



Imagens (oficiais) para acompanhar um dos temas do belíssimo Carrie & Lowell, o álbum que Sufjan Stevens editou há poucas semanas e que é um dos mais belos ciclos de canções que chegaram a disco nos últimos tempos.

Uma noite com os Kraftwerk
(que não se esgotou na tecnologia 3D)


Onze anos depois o regresso foi magistral. E quem reduz a experiência às projeções 3D então não ouviu a música, que foi mesmo a peça central do concerto, deixando claro que mesmo entre temas compostos entre 1974 e 2003 não é de nostalgia que se fala quando se fala dos Kraftwerk. Escrevi sobre o concerto na Máquina de Escrever. E começava assim...

Era um pequeno disco voador. Depois de cruzar o espaço para além do grande ecrã, cortesia das projeções 3D, encaminhou-se para a superfície do planeta. Instantes antes, e já ao som de Spacelab, as imagens, que antes mostravam a Terra como um todo, tinham focado atenções sobre a Península Ibérica, mais adiante claramente mostrando Lisboa como sendo o seu destino… A sala, à pinha, aplaudia entusiasmada com o cartão de visita… Mas ninguém estava ainda a imaginar que, segundos depois, o mesmo ecrã suspenso por detrás dos quatro músicos, mostrava aquele disco voador branco e polido a aterrar em pleno Rossio. Ou seja, ali mesmo a uma rua de distância do Coliseu de Lisboa. A estratégia de comunicação fez lembrar o uso da bandeira ou do cachecol da seleção nacional que frequentemente gera empatia evidente em tantos concertos pop/rock, embora aqui numa alternativa devidamente enquadrada no contexto dos sons, das imagens e da própria personalidade da obra e seus autores. Afinal eram os Kraftwerk quem. protagonizava a noite. E quem achava que eram banda sem humor ou a funcionar em piloto-automático, saiu dali desiludido. Na verdade deram um concerto magistral, com um alinhamento onde coube a surpresa, numa noite que ficou longe de ser uma viagem nostálgica pelas sonoridades que inventaram uma pop feita com electrónicas nos anos 70, mas onde todas essas recordações também ali couberam.

Podem ler aqui o texto completo

Para ouvir: nova canção dos Blur

Aproxima-se a data de lançamento do álbum. E mais um tema chega para escutar em streaming (numa altura em que alguns territórios têm já o disco para pré-escuta nas respetivas lojas iTunes). Por aqui escutamos hoje o tema My Terracota Heart.

Podem ouvir aqui.

Para ler: Sonia Delaunay na Tate Modern

Deve ser uma das grandes exposições deste ano, e já abriu as portas na Tate Modern, em Londres. Podem ler aqui a reportagem publicada no Guardian.

Podem ler aqui o artigo

segunda-feira, abril 20, 2015

Richard Anthony (1938 - 2015)

Foi um dos símbolos da canção popular francesa dos anos 60, nos tempos do twist, tendo vendido ao longo da sua carreira mais de 50 milhões de discos: Richard Anthony faleceu no dia 19 de Abril, vítima de cancro do cólon — contava 77 anos.
Desde muito cedo, tentou impor-se através de versões francesas de sucessos de outros cantores, tendo começado por gravar, em 1958, Tu M'étais Destinée, adaptando You Are My Destiny, de Paul Anka, e Peggy Sue, de Buddy Holly. O sucesso apenas surgiu com Nouvelle Vague, versão de Three Cool Cats, de The Coasters — apesar de não haver qualquer proximidade, não deixa de ser irónico que tal título tenha surgido em 1959, precisamente o ano de eclosão da Nova Vaga francesa, nomeadamente com os primeiros filmes de Jean-Luc Godard (O Acossado), François Truffaut (Os 400 Golpes) e Alain Resnais (Hiroshima, Meu Amor).
Para a história, Richard Anthony ficou como um dos símbolos dos cantores yé-yé, através de versões tão contrastadas como Sa Grande Passion (His Latest Flame, Elvis Presley), C'était Plus Fort que Tout (I Can’t Stop Loving You, Ray Charles) e Écoute dans le Vent (Blowin' in the Wind, Bob Dylan). Entre os momentos mais emblemáticos da sua discografia está Itsy Bitsy Petit Bikini (Itsy Bitsy Teenie Weenie Yellow Polka Dot Bikini, Brian Hyland) — eis a respectiva encenação televisiva.


>>> Obituário no jornal Le Monde.

A comédia que ficou por acontecer...

Há filmes condenados a contar a história do seu falhanço: Amor Acidental, de David O. Russell (aliás, de Stephen Greene...) é um desses filmes — este texto foi publicado no Diário de Notícias (16 Abril), com o título 'A comédia assinada por um cineasta que nunca existiu'.

É bem verdade que a proliferação de histórias mais ou menos adolescentes, com personagens patetas e patéticas a debitar gags obscenos, não tem ajudado muito ao prestígio de alguma comédia americana. Dir-se-ia que Amor Acidental poderia ser uma hipótese para tentar contrariar esse estilo (?), talvez devolvendo o género a um misto de observação social e crueza moral que, idealmente, podemos associar à riquíssima herança de um mestre como Billy Wilder (1906-2002).
Esta é a história de uma Alice (Jessica Biel) que acede a um bizarro país das maravilhas. Isto porque um dia é vítima do mais insólito dos acidentes: uma pistola eléctrica das que se usam para colocar pregos dispara na direcção da sua cabeça. Simplificando, digamos que acontecem duas coisas igualmente dramáticas (ou talvez não): por um lado, ela não tem um seguro de saúde que permita custear a operação para retirar o prego; por outro lado, o seu cérebro começa a revelar alguns funcionamentos “desviantes”, em particular no domínio sexual...
Compreende-se que David O. Russell se tenha interessado pelas potencialidades mais ou menos burlescas desta odisseia. Afinal de contas, tanto no puro drama (The Fighter-Último Round, 2010) como na farsa política (Golpada Americana, 2013), ele tem sido um paciente e sagaz analista de microcosmos que reflectem as convulsões de uma América enredada nos valores da sua própria mitologia — neste caso, a aventura mental de Alice é mesmo uma porta aberta para a contemplação de uma pequena comunidade agitada pelos seus fantasmas...
É ou podia ser. De facto, tudo correu mal na rodagem de Amor Acidental (que começou por se chamar Nailed, aludindo ao prego espetado na cabeça de Alice). As primeiras filmagens datam mesmo de 2008, vindo a ser interrompidas por problemas de financiamento nada mais nada menos que nove vezes. A certa altura, a Screen Actors Guild pronunciou-se mesmo oficialmente, recomendando ao elenco — que, além de Biel, inclui nomes como Jake Gyllenhaal, James Mardsen, Catherine Keener e Tracy Morgan — que abandonasse o projecto.
Resultado prático: Amor Acidental surge assinado por um cineasta que nunca existiu, Stephen Greene (pseudónimo escolhido pelo desiludido David O. Russell). Mesmo com alguns momentos em que os actores conseguem tirar bom partido do absurdo cómico (em particular, o magnífico Tracy Morgan, nosso conhecido da série televisiva 30 Rock), os resultados práticos reflectem o caos, já não da comédia, mas apenas de uma produção sem eira nem beira.
Para a história do cinema “sem autor”, a assinatura de Stephen Greene fica, assim, como uma variante do clássico (!) Alan Smithee, nome tradicionalmente usado em Hollywood para os projectos abandonados, ou não reconhecidos, pelos respectivos realizadores. Uma das últimas proezas de Smithee tinha sido a versão remontada para televisão de Heat – Cidade sob Pressão (1995); neste caso, o original de Michael Mann existe... e recomenda-se.

domingo, abril 19, 2015

Marcelo: comentador ou candidato?

Marcelo Rebelo de Sousa comenta os candidatos à Presidência da República ou é, ele próprio, um candidato? Ou será comentador e candidato? — esta crónica de televisão foi publicada no Diário de Notícias (17 Abril), com o título 'Comentador ou candidato?'.

Há qualquer coisa de profundamente incómodo em deparar, semana após semana, com Marcelo Rebelo de Sousa (TVI) a comentar os candidatos, anunciados ou hipotéticos, à Presidência da República. Porque das duas uma: ou o comentador é um potencial candidato, ou não é. Se é, em nome de que deontologia está a exercer esse poder discursivo? Se não é, porque é que não afirma, de forma inequívoca e definitiva, a sua exterioridade em relação ao processo?
Não se trata de transformar a sua figura mediática em pretexto de (mais) uma algazarra “social”, com ou sem redes, envolvendo reguladores e regulamentos — já basta o que basta. Seja como for, também não pretendo esconder que considero o discurso televisivo de Marcelo Rebelo de Sousa uma cristalização retórica de um entendimento rudimentar da política, reduzindo todas as eventuais clivagens ideológicas a peripécias mais ou menos frívolas e fulanizadas.
O que está em causa é de outra natureza. Acontece que a postura televisiva de Marcelo Rebelo de Sousa não passa de uma variante da imensa pobreza cultural que encontramos à direita e à esquerda. A começar pela patética ausência de pensamento sobre a própria inscrição da política em televisão.
Se tivéssemos uma classe política genuinamente disponível para pensar o imenso poder inerente a alguns dispositivos televisivos, há muito que todos os partidos — a começar pelo partido a que pertence o comentador — teriam suscitado uma salutar reflexão sobre as intervenções de alguém que é parte interessada (ou, pelo menos, não explicitamente excluída) de um processo eleitoral que passou a ser tema constante dos seus comentários.
No limite, a situação criada pode atrair a mais perversa das leituras: a de que a condição de comentador televisivo pode constituir um elemento específico de uma estratégia para chegar à Presidência da República. A acontecer, isso quererá dizer que passámos a viver num país em que a televisão se substituiu à própria República.

Heranças da Segunda Guerra Mundial

Chegaram às salas mais dois filmes marcados pelas heranças traumáticas, individuais e colectivas, da Segunda Guerra Mundial — este texto foi publicado no Diário de Notícias (16 Abril), com o título 'A guerra para além do filme de guerra'.

Durante décadas, em particular na Europa e na América, o padrão dominante do filme de guerra foi o do filme sobre a Segunda Guerra Mundial. Mais do que isso: numa generalização necessariamente redutora, mas sugestiva, podemos considerar que o filme de guerra foi também aquele que, directa ou implicitamente, contrapôs os cenários de combate às convulsões da retaguarda.
Duas das estreias desta semana, ambas provenientes da produção alemã — Phoenix, de Christian Petzold, e Labirinto de Mentiras, de Giullio Ricciarelli —, são sintomas esclarecedores de como esse padrão tem vindo a ser, não exactamente contestado, mas em boa verdade ignorado. Aliás, não é verdade que até mesmo Sacanas sem Lei (2009), de Quentin Tarantino, envolvia a ideia de uma decomposição interna do próprio género, agora conduzido a um registo em que tragédia e paródia podem ter os mesmos direitos narrativos?
O caso de Phoenix distingue-se pela perturbação inerente aos factos que encena. Estamos perante a saga de uma mulher, Nelly (a notável Nina Hoss), sobrevivente de um campo de concentração: operada ao rosto, adquire feições que a transformam numa estranha para o próprio marido (Ronald Zehrfeld), situação tanto mais tensa quanto terá sido ele o responsável pela denúncia que levou os nazis a prendê-la. Aquilo que começa por ser uma crónica histórica sobre o período inicial da reconstrução da Alemanha transforma-se numa deambulação intimista em que, escusado será sublinhá-lo, o sentimento da fragilidade dos corpos contamina todos os seres e todas as relações — no limite, a verdade de um corpo, da sua história, da sua irredutibilidade, pode ser insustentável.
Algo de semelhante acontece em Labirinto de Mentiras, por certo mais tradicional na sua construção, mas não menos inovador na abordagem de um contexto marcado pelo peso de um silêncio mentiroso. Falamos de quê? Pois bem, de uma Alemanha em finais da década de 50 em que prolifera um terrível desconhecimento da dimensão dos crimes nazis e, em particular, da existência e do modo de funcionamento dos campos de concentração. O filme possui uma estrutura em parte devedora dos modelos tradicionais de inquérito policial, uma vez que a personagem central, Johann Radmann, é um procurador de justiça que se envolve num processo dantesco de reunião de provas do Holocausto, sobretudo do que aconteceu no campo de Auschwitz. Curiosamente, o excelente intérprete de Radmann, Alexander Fehling, assumia também um pequeno papel em Sacanas sem Lei.
É certo que o mercado cinematográfico nem sempre tem sabido trabalhar filmes com estas características, nem mesmo tirando partido da coincidência (?) das respectivas estreias. Seja como for, o espectador atento poderá compreender que estamos perante obras que pertencem a uma “tendência” que liga, por exemplo, o admirável Lore (2012), de Cate Shortland, sobre a sobrevivência dos filhos de um oficial nazi, a Suite Francesa, de Saul Dibb, a adaptação do livro de Irene Némirovsky que chegou há uma semana às salas.
Para lá das suas diferenças, todos estes filmes integram uma vontade de realismo que aponta, no essencial, para uma revalorização dramática das personagens. Trata-se de representar cada ser humano como uma presença irredutível a qualquer cliché “ideológico” ou “psicológico”. E é significativo que tudo isso aconteça através de uma revalorização do trabalho dos actores, tanto mais importante quanto já não encontramos heróis redentores, mas sim figuras errando pela crueza da própria história.

sábado, abril 18, 2015

"Mundo Jurássico" chega em Junho

Depois de algumas sequelas mais ou menos rudimentares, será possível recuperar o sentido de espectáculo e a energia simbólica que Steven Spielberg soube investir no original Parque Jurássico (1993) e, sobretudo, na sua magnífica continuação, O Mundo Perdido (1997)?
O menos que se pode dizer de Mundo Jurássico (a 11 de Junho nas salas portuguesas) é que tem este sugestivo cartaz, com Bryce Dallas Howard a contemplar um vizinho que não parece muito dado à vida social. E que o trailer propõe uma variação sugestiva sobre a evolução laboratorial dos dinossauros — a realização é de um profissional até agora pouco conhecido, Colin Trevorrow; no elenco, além de Dallas Howard, surgem também os nomes de Chris Pratt, Vincent D'Onofrio e Judy Greer.

Miguel Gomes na Quinzena dos Realizadores

As Mil e uma Noites, o novo filme (em três partes) de Miguel Gomes [foto] vai ter a sua estreia mundial na Quinzena dos Realizadores, no âmbito do Festival de Cannes. Em comunicado oficial, Edouard Waintrop, delegado geral do evento, escreve:

>>> "As Mil e uma Noites, o filme, ou melhor os três maravilhosos filmes de Miguel Gomes, serão programados na Quinzena dos Realizadores. Esta soberba série inspirada pelas histórias contadas por Xerazade e acontecimentos ocorridos no Portugal dos anos 2013 e 2014, país nesse período submetido a uma política de negação de qualquer justiça social, ritmará a nossa programação. Cada filme encenado com uma fantasia delirante e uma grande liberdade terá o seu dia."

A 47ª edição da Quinzena começa a 14 de Maio, um dia depois do arranque do festival, terminando no dia 24 — o seu filme de abertura será L'Ombre des Femmes, de Philippe Garrel.

They Might Be Giants, opus 17

Senhores de um universo criativo que vai desde as divagações mais alternativas do rock até à música para crianças, os americanos They Might Be Giants ilustram, há mais de três décadas, um gosto experimental que nunca perdeu o sentido da ironia e da autocrítica. O seu 17º álbum de estúdio, Glean, nasce de um processo de difusão que a banda impôs como uma espécie de imagem de marca: chama-se 'Dial-A-Song' e corresponde a uma base de canções regularmente partilhadas com os visitantes. Na prática, Glean é um exercício poético de muitos contrastes, como o ilustra o indefinível e sedutor teledisco de End of the Rope.


Vale a pena recordar o teledisco de You're on Fire, do álbum anterior da banda, Nanobots (2013), protagonizado por Lauren Lapkus — a atracção por uma certa "distorção" das matérias vivas (ou mortas...) parece ser uma assinatura do universo visual dos They Might Be Giants.

Max Richter, 2004

A reedição de The Blue Notebooks (2004), segundo álbum a solo do compositor alemão Max Richter, permite-nos revisitar um singularíssimo projecto. Não apenas um exercício incrustado a meio caminho entre um certo classicismo e algumas modernas derivações electrónicas, mas também uma serena coabitação entre instrumentos musicais e voz humana (Tilda Swinton lendo extractos de Kafka).
Para a história, este foi um disco cujo conhecimento ficou muito ligado à inserção de uma das suas faixas, On the Nature of Daylight, no filme Shutter Island (2010), de Martin Scorsese — aqui fica a respectiva memória.

sexta-feira, abril 17, 2015

Lane Bryant e a palavra sexy

A. Ciclicamente, regressa a discussão sobre os padrões de beleza no imaginário feminino da moda (ou no imaginário da moda feminina). Não poucas vezes, com ramificações mais ou menos dantescas que chegam ao ponto de tentar definir as imagens das mulheres no universo global do entertainment a partir de uma "legitimidade" que seria conferida (ou não) pela idade — observe-se, em particular, como Madonna tem sabido reagir aos discursos que a querem encerrar, isto é, silenciar nos seus 56 anos.

B. Há, de facto, em alguns discursos sociais (muitas vezes, em rede) uma censura mais ou menos implícita a todos os modelos — leia-se: a todos os corpos — que não reproduzam padrões que foram tornados absolutos e, nessa medida, restritivos. Não se trata de um problema pueril. Não se trata de saber se Gisele Bündchen é "mais" ou "menos" bonita... Trata-se tão só de celebrar a pluralidade do factor humano, quer se exprima no feminino ou no masculino (ou ainda em qualquer matriz sexual que não caiba num sistema maniqueísta de figuração/pensamento do mundo à nossa volta).

C. Por vezes, o próprio mundo da moda tem sabido reagir à estreiteza dos preconceitos, em última instância favorecendo a proliferação possível de imagens que não esmaguem a identidade daqueles ou daquelas que mostram. Sob o lema #ImNoAngel, a campanha que a marca Lane Bryant tem desenvolvido em torno de corpos "atípicos" é, nessa perspectiva, exemplar — ou como a universalidade da lingerie feminina se pode dizer e mostrar de outro modo, evitando ilusões angelicais e sem deitar fora a palavra sexy.

Madonna & Akerlund

O teledisco de Ghosttwon é mais um exemplo brilhante da colaboração de Madonna com o realizador Jonas Akerlund — este texto foi publicado no Diário de Notícias (12 Abril), com o título 'Madonna reinventa-se em cenário pós-apocalíptico'.

Há dias, Madonna esteve no programa da NBC, The Tonight Show, numa conversa com Jimmy Fallon, deambulando desde as singularidades do novo álbum Rebel Heart até à sua estreia como “profissional” de stand-up comedy. Com um guarda-roupa recheado de objectos metálicos, habitualmente associados ao rock mais hard, usava também rendas e meias que, afinal, evocavam a sua imagem de marca no começo da carreira, em meados da década de 80. Aliás, num delicioso exercício revivalista, Madonna, Fallon e The Roots (banda residente do programa) interpretaram uma divertida versão de Holiday, tema de 1983 agora recriado apenas com instrumentos utilizados no ensino infantil da música.
Todos estes elementos reflectem um método de trabalho que Madonna tem apurado e depurado ao longo dos anos, por certo adquirindo uma nova dimensão simbólica no interior do seu próprio envelhecimento (completará 57 anos no dia 16 de Agosto). Habitualmente reconhecida como protagonista de novas tendências, geradora de muitos efeitos de moda, ela só o é através de uma invulgar e inventiva capacidade de integração de elementos mais ou menos primitivos da cultura popular e, em particular, dos seus sistemas iconográficos.
O mais recente exemplo desse vai-vém está no magnífico teledisco de Ghosttown, divulgado também esta semana. A canção pode ser definida como a celebração de um par no cenário pós-apocalíptico da “cidade fantasma” a que se refere o título — a letra descreve os protagonistas como “duas almas” a sobreviver depois da destruição “total” (When it all falls down / We’ll be two souls in a ghost town).
Usando vestes de inspiração vitoriana, Madonna surge num cenário que, por calculado paradoxo, evoca componentes da ficção científica cinematográfica, por fim encontrando um homem (Terrence Howard, protagonista da série televisiva Empire) cuja ameaça se vai dissolver num súbito apelo à dança. Perpassa por Ghosttown um desejo de harmonia que, através da presença de uma criança, envolve a hipótese de reconversão do próprio espaço familiar (numa curiosa rima com o teledisco de Secret, dirigido por Melodie McDaniel em 1994). Mais do que isso: a paisagem urbana, mesmo em ruínas como aqui acontece, volta a emergir como cenário “natural” de Madonna.
Certamente não por acaso, o teledisco de Ghosttown tem assinatura do sueco Jonas Akerlund, tão importante na sua encenação como personagem urbana, desde logo nessa obra-prima que é o teledisco de Ray of Light (1998), numa performance a meio caminho entre o documental e o fantástico cujo tema é, afinal, a pulsação de uma grande metrópole. Akerlund filmou-a, por exemplo, em Music (2000) e Jump (2006), variações irónicas sobre os sinais da cultura urbana, sem esquecer que é também de sua autoria o prodigioso teledisco de American Life (2003), cuja versão original permanece “censurada” (embora disponível no YouTube). Madonna segundo Akerlund é, de uma só vez, uma figura realista e um fantasma errante — a cultura pop vive dessa ambivalência.

Jazz — à espera de Agosto

O Jazz em Agosto regressa à Fundação Gulbenkian e promete, uma vez mais, não desiludir (este ano começando ainda em Julho, no dia 31, e prolongando-se até 9 de Agosto). E vale a pena, destacar, desde já, duas especialíssimas presenças: Mats Gustafsson, saxofonista sueco de muitas e admiráveis transfigurações (estará em dois concertos, com formações distintas) e, sobretudo, o trompetista americano Wadada Leo Smith para interpretar The Great Lakes Suites, obra de fôlego sinfónico, visceralmente jazzística, que foi um dos grandes discos de 2014 — eis a faixa Lake Superior desse álbum.

quinta-feira, abril 16, 2015

Ilusão e felicidade [citação]

>>> A guerra de 1939 tinha um significado espiritual, tratava-se da liberdade, da salvaguarda de um bem moral, e lutar por algo com sentido torna o ser humano duro e decidido. A guerra de 1914, pelo contrário, nada sabia das realidades, estava ainda ao serviço de uma ilusão, do sonho de um mundo melhor, mais justo e mais pacífico. E só a ilusão, não o conhecimento, traz felicidade. Por isso as vítimas daquela época marchavam, ébrias de júbilo, para o matadouro, coroadas de flores e com folhas de castanheiro nos capacetes, e as ruas ressoavam e cintilavam como se de uma festa se tratasse.

STEFAN ZWEIG
in O Mundo de Ontem — Recordações de um Europeu