terça-feira, março 31, 2015

Rossellini x 10

Anna Magnani — A Voz Humana (1948)
São dez filmes para ver e rever, descobrir ou redescobrir, a obra imensa de Roberto Rossellini — este texto foi publicado no Diário de Notícias (26 de Março), com o título 'Dez filmes para redescobrir Rossellini e... Anna Magnani!'.

O menos que se pode dizer do ciclo dedicado a Roberto Rossellini — começou no dia 26, em Lisboa (Espaço Nimas); a partir de 9 de Abril, no Porto (Teatro Municipal Campo Alegre) — é que através dos seus filmes será possível contrariar qualquer visão banalmente museológica da grande tradição cinematográfica italiana. Estamos perante uma dezena de títulos — de Roma, Cidade Aberta (1945) a Índia (1959) — que envolvem as transformações práticas e conceptuais do neo-realismo, ao mesmo tempo que rasgam os caminhos da modernidade cinematográfica.
Rossellini foi o arauto de uma revolução do olhar que, pelo menos transitoriamente, dispensou os artifícios tradicionais dos estúdios, celebrando as possibilidades humanas e narrativas de relação com a pulsação dos lugares. É bem certo que tal opção resultava também da realidade crua da guerra: em meados dos anos 40, os estúdios italianos estavam em ruínas e, como a sociedade em geral, careciam de reconstrução. Em todo o caso, quando Rossellini filma Alemanha, Ano Zero (1948), na sua crueza documental, a desolação da cidade de Berlim é também o princípio de uma elaborada dramaturgia. Ou quando coloca em cena Ingrid Bergman, por exemplo em Stromboli (1950) ou Viagem em Itália (1954), a luminosidade da actriz nasce do confronto das singularidades de um corpo com a magia da
paisagem (o vulcão, no primeiro caso, as ruínas de Pompeia, no segundo).
Neste nosso tempo tantas vezes seduzido pela desumanização figurativa do digital (o que, entenda-se, não envolve qualquer resistência de princípio às transformações do cinema através do digital), faz sentido sublinhar que a modernidade de Rossellini passa também por essa disponibilidade, estética e afectiva, para encontrar os caminhos dos filmes através dos actores.
As primeiras sessões do ciclo são mesmo dominadas por Anna Magnani (1908-1973). Não será ainda com a sua mais lendária interpretação com Rossellini, Roma, Cidade Aberta (primeira apresentação em Lisboa a 2 de Abril), mas sim através de um filme algo esquecido, O Amor (1948), reunindo duas histórias de muitos ecos simbólicos: A Voz Humana, sobre uma mulher ligada a um telefone de muitas angústias, adapta a peça homónima de Jean Cocteau; O Milagre centra-se numa mulher que, depois de aceitar água de um peregrino, acredita estar grávida de São José — o homem é interpretado por Federico Fellini, também autor da história original (as sessões de O Amor incluem também A Força e a Razão, registo de 1973, para a RAI, de uma conversa de Rossellini com Salvador Allende).
Antecipando o modelo de “filme-de-episódios”, muito popular durante a década de 60, O Amor envolve uma celebração dos dotes de representação de Anna Magnani (aliás, homenageada numa legenda assinada pelo próprio Rossellini). Mais do que isso: nos seus dois breves capítulos, especialmente em A Voz Humana, a relação carnal entre a actriz e a câmara de filmar condensa o fascínio radical do cinema como máquina de reprodução e recriação do mundo.