quinta-feira, março 19, 2015

Retratos de Nicole Kidman

RETRATO DE UMA SENHORA (1996)
Através de dois novos filmes — Antes de Adormecer e Paddington —, redescobrimos a admirável versatilidade de Nicole Kidman — este texto foi publicado no Diário de Notícias (14 Março), com o título 'As muitas vidas cinematográficas de Nicole Kidman'.

Em Maio do ano passado, no Festival de Cannes, Nicole Kidman não era uma estrela feliz. Perante a respeitadora frieza com que foi recebido o seu filme Grace de Mónaco, a actriz enfrentava os jornalistas de todo o mundo num tom prudentemente defensivo: segundo as suas palavras, a realização de Olivier Dahan tinha respeitado o mais possível as memórias de Grace Kelly, lenda de Hollywood e Princesa do Mónaco, tentando evitar qualquer alusão que favorecesse especulações gratuitas.
O filme não se livrou da indiferença oficial do Principado do Mónaco e, mesmo tendo tido honras de abertura oficial do certame da Côte d’Azur, foi rapidamente secundarizado nos media franceses e internacionais. Em todo o caso, o episódio deixava uma pequena lição artística: mesmo interpretando figuras verídicas, o talento de Nicole Kidman não depende de qualquer caução (histórica ou biográfica), exprimindo-se sempre melhor quando a actriz pode apropriar-se de uma personagem, transfigurando-a em coisa sua. Recordemos o revelador paradoxo: não é verdade que foi a sua elaborada composição de Virgina Woolf que lhe valeu um Oscar, em As Horas (2002)?
Os dois filmes com Nicole Kidman esta semana lançados nas salas portuguesas são significativos da sua agilidade: Antes do Amanhecer, dirigido por Rowan Joffe, adapta um “best-seller” de S. J. Watson centrado numa mulher que acorda todos os dias sem saber o que lhe aconteceu na véspera, ao mesmo tempo que pressente ter vivido uma tragédia que a sua memória teima em não lhe devolver; num registo bem diferente, ligado a uma tradição britânica simultaneamente literária e cinematográfica, Paddington, escrito e realizado por Paul King, centra-se na personagem do urso Paddington, saído dos livros de Michael Bond, e na sua demanda de um lugar para viver, viajando das profundezas da América do Sul para a casa de uma típica família de Londres.
A composição de Nicole Kidman em Paddington corresponde ao clássico conceito de “estrela convidada” (guest star), assumindo a personagem de Millicent, a má da fita que só vê o urso aventureiro como um espécimen susceptível de ser sujeito às suas artes de taxidermista. O filme ilustra, aliás, um modelo de espectáculo em que a verdadeira estrela é o próprio universo fantasista em que tudo acontece, aliás recuperando uma sofisticada tradição de estúdio a que também pertencem, por exemplo, os títulos clássicos da dupla Michael Powell/Emeric Pressburger.
O caso de Antes de Adormecer é bem diferente, quanto mais não seja porque a realização de Rowan Joffe possui as vantagens, mas também as limitações, de um modelo que procura tão só garantir o funcionamento do mistério que a história instala desde as primeiras cenas. Nicole Kidman enfrenta, assim, o desafio de representar uma personagem que, literalmente, não sabe contextualizar aquilo que vê. Não por acaso, torna-se uma obcecada acumuladora de imagens — a começar por aquelas que obtém através de uma pequena câmara digital —, tentando organizá-las de modo a encontrar a narrativa que possa definir toda a sua existência.
Mesmo considerando que está longe de ser um filme fulcral na trajectória da actriz — longe, por exemplo, de títulos como Disposta a Tudo (1995), de Gus Van Sant, ou De Olhos Bem Fechados (1999), de Stnaley Kubrick — Antes do Amanhecer, corresponde a um labor de extrema solidão criativa, quanto mais não seja por esse desamparo que define a personagem central. Nessa perspectiva, podemos, talvez, aproximá-lo de outras performances de Nicole Kidman, por exemplo em Retrato de uma Senhora (1996), adaptação de Henry James assinada por Jane Campion, ou Birth – O Mistério (2004), insólito e fascinante exercício introspectivo em que Jonathan Glazer encenava a experiência surreal de uma jovem viúva que recebia a visita de um rapaz, garantindo-lhe que era o seu marido reencarnado...
As muitas vidas cinematográficas de Nicole Kidman ilustram uma evolução da sua carreira que, afinal, a afastou da linha da frente dos grandes estúdios (americanos, pelo menos), mesmo se nunca lhe retirou visibilidade nos mercados internacionais. Ironicamente, na última década, o seu maior sucesso nas bilheteiras é mesmo um filme em que ela... não aparece: Happy Feet (2006), de George Miller, delicioso desenho animado sobre o mundo dos pinguins (Kidman dá voz à figura da mãe, de nome Norma Jean).
Uma das mais prodigiosas composições de toda a sua carreira está em Rabbit Hole (2010), de John Cameron-Mitchell, interpretando com Aaron Eckhart um casal que tenta enfrentar a perda do filho num acidente. Apesar de lhe ter trazido mais uma nomeação para o Oscar de melhor actriz, o filme passou quase despercebido em todos os mercados (em Portugal, nem sequer chegou às salas, tendo sido lançado directamente em DVD com o infeliz título O Outro Lado do Coração).
Pode mesmo dizer-se que, com frequência, a actriz passou a adoptar uma atitude “experimental”. Este ano, por exemplo, deverão estrear mais dois filmes com Nicole Kidman que correspondem a estreias na realização cinematográfica: são eles Genius, de Michael Grandage, sobre o editor Max Perkins, e Lion, de Garth Davis, centrado na odisseia de uma criança indiana adoptada por um casal australiano.